Gerardo Mello Mourão


Coronel, estou vendo neste momento

Coronel, estou vendo neste momento os cabras sangrarem o Padre Joaquim Mourão, daqui lá umas duzentas léguas, no Maranhão" e a vidente negra levou a mão ao velho seio onde mamaram os filhos dos Mourões e caiu com os olhos fulgurantes; o Coronel mandou encher de paçoca os alforjes de couro e encher de água da serra a borracha de sola no arção da sela o terçado de cabo de ouro na carona de vaqueta bordada sob os coxonilhos cinqüenta contos de réis o rifle na lua da sela a matolagem e os capangas fiéis quinze dias depois tirava o chapéu de couro e dobrava o joelho diante da sepultura do Padre Mourão: de duzentas léguas o sangue esguichara sobre os olhos da vidente que lhe dera o seio e os cabras no caminho de volta retiravam sob o suadouro das cangalhas a manta de carne de sol e enquanto mastigavam os nacos sapecados na cachaça inflamada nos pratos de balança das bodegas da estrada ruminavam a morte; e as veredas se enchiam de cruzes e ao sacrifício dos padres inocentes a bravura dos Mourões se celebrava in illo tempore e ungidos de Deus vamos morrendo e flagelos de Deus vamos matando. O mulato Tobias Barreto escrevia cartas em alemão ao filósofo alemão Emanuel Kant e escreveu também a Monsenhor Gadelha Mourão, deputado do Império e doutor de Roma: "os padres deste país nem latim sabem mais, pois, como Vossa Reverendíssima, aprendem é a mandar matar" os assassinos do Padre Joaquim, de fato, estavam mortos cum Christo erant e o Monsenhor tirou uma edição de seu jornal político em São Luís do Maranhão, toda em latim e remeteu ao prodigioso mulato e veio a carta pedindo perdão: "nunca li, Monsenhor, latim tão puro" e uma nova edição explicava: o latim era péssimo e cheio de eiva e fora escrito apenas para colher o elogio do sr. Tobias Barreto e provar que ele, sim, não sabia latim: Tobias fuit cum Christo: causa mortis — raiva apoplética contra Monsenhor Mourão — testemunha Cynobelino. Sabedora da morte, soberana da vida a raça dos Mourões preparava o chão e duro e puro o espaço do cristal se construía na clavina dos fortes e no sarcasmo dos sábios in illo tempore.


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