Gerardo Mello Mourão
Alexandre cavalga
Alexandre cavalga
e às vezes é
a bússola amorosa dos anjos
e ao aroma dos jasmineiros o aroma
da nuca de Carmen, do botão dos seios
de Margarida e de Francisca
e às vezes é a bússola do ódio
e dia e noite e noite e dia através
noites e dias
Alexandre cavalga:
e os cavalos cansados param mortos
e o coração cavalga a fúria
e seu rastro se chama vingança.
Vicente Lopes de Negreiros
a raça de André Vidal de Negreiros
matara de tocaia a Manuel, irmão de Alexandre Mourão
e à sombra de uma palmeira da Serra dos Cocos
tinha dezesseis anos
o corpo ensangüentado do adolescente moreno
era belo e terrível e seus olhos
vidrados
pediam vingança ao irmão.
Vicente de Negreiros, chamado Vicente da Caminhadeira
furou o mundo e Alexandre
Mourão no rastro dele
andou duas mil léguas e o Maranhão
e o Piauí e o Ceará e o Rio Grande e Pernambueo e a Paraíba
celebraraxn o tropel de seu cavalo
o furor de sua vendetta
e o trom de seu bacamarte de boca de sino
e os sinos dobraram por duzentos mortos
e os soldados de Xenofonte — Anábasis — não podiam dormir
por causa da tristeza e da saudade
"ouvindo o tiro, nós que estávamos na luta, corremos e achamos nosso irmão morto
e não pudemos mais dormir
ali o deixamos e
fizemos todas as diligências
e não foi possível achar mais o assassino
nesta mesma noite segui em procura
e depois de sete dias e sete noites de minuciosa diligência
informaram estaria sob a proteção do Tenente Coronel João da Costa Alecrim e do tio
Vigário Manuel Pacheco Pimentel, em Vila Nova
risquei o cavalo na porta do Vigário
e de sua alpendrada trinta e oito dias de viagem num cavalo bralhador
até Pedras de Fogo — extremas da Paraíba e Pernambuco
de lá noventa dias a cavalo ao Piauí
e em noventa noites o sertão
espreitado palmo a palmo conheceu
o ódio sábio e inútil de meus olhos:
terral, aracati, nordeste, graviúna, todos
os ventos do país dos Mourões a crina
de meu cavalo conheceu.
O Coronel Diogo Salles comprara um sítio para situar-se no Maranhão aonde se mudara
por certos desgostos:
Coronel Diogo, filho de meu parente Capitão Xavier, a
quem assisti em seus desgostos,
é possível esteja o inimigo em sua Fazenda do Serrote?
— Nem no Serrote do Piauí nem no Serrote do Ceará
e se acaso meu pai o acolheu
não o há de matar na rede de hóspede
mas vai pô-lo a caminho quando saiba
quem é Vicente da Caminhadeira.
— Não, meu parente, não se apeou à minha porta.
E na Fazenda Santa Cruz, a caminho de Quixeramobim,
dois de seus cabras se entregaram à morte de joelhos aos pés de minha
madrinha Francisca
e ela mandou espreitar a casa e as fazendas do Capitão-Mor Lessa
e em cinco dias e cinco noites de espreita — nada;
passei a Crateús e por suspeita
voltei ao Serrote do Capitão Salles
passei a noite ao pé da casa espreitando os movimentos dela
e entrei no alpendre com o primeiro sol
fui honrado pelo Capitão, comi sua coalhada, o requeijão e a tapioca
descansei em rede cheirando a capim santo
segurei-me com o velho ele não proteger Vicente Lopes
que enquanto eu vivesse, meu serviço era procurá-lo onde quer que soubesse dele.
Talvez o bandido esteja na casa do sogro em Poço d'Agua:
foram vinte e nove dias até Poço d'Agua, Piauí,
com os cavalos, os vaqueiros e a matutageiú de meu irmão Eufrosino:
tomei o velho de improviso e nada achei
apertei-o pelo genro, descobriu que há seis dias
dali tinha partido a chamado do Alecrim
que saía tal dia de muda para Pedras de Fogo, Paraíba,
voltei, segui ao Alecrim
antes de chegar a Vila Nova soube que estava no Serrote do velho Salles
ali mesmo fui procurá-los
Vicente da Caminhadeira estava fora da casa invadida por minha fúria
o Coronel Alecrim escapou num paiol de algodão, onde perdeu o nariz que era suposto:
nada fiz e fico contando com mais dois inimigos fortes.
Voltei para Pitombeiras, fazenda de meu irmão Eufrosino, sete léguas,
ia despachar um positivo a Pedras de Fogo
chega uma carta de mulher, inimiga de Vicente Lopes:
— "quer notícias certas, me apareça — "
apareço
apresentou-se um homem
vinha de Nossa Senhora do Ó e dava certeza de estar Vicente Lopes
na Vila de Igarassu, Pernambuco
voltei, preparei-me e segui para Igarassu
pois enquanto eu vivesse, meu serviço era procurá-lo onde quer que soubesse dele
E depois de duzentas e tantas léguas de viagem
cheguei a Nossa Senhora do Ó
tomei a casa de meu parente, Capitão André Cursino Cavalcanti
e aconselhou-me:
devia seguir para o Engenho Monjope, de nosso parente, Capitão-Mor João
Cavalcanti de Albuquerque
o senhor mais rico e forte daquelas terras
contei-lhe meu destino
não quis mais que eu saísse:
seus homens é que vão a Igarassu para a missão
e um dos meus para reconhecer:
Vicente Lopes estava tocando viola num forrobodó
— "é aquele":
os homens de meu parente dão duas voltas no salão e o tocador de viola cai
com o peito varado e a bala ainda traspassou o coração de uma rapariga da festa:
na sala grande do Engenho Monjope
o Capitão-Mor abriu a garrafa de vinho do Porto
bebemos em honra de meu defunto irmão
e a Sinhá acendeu no oratório uma vela
à sua alma desagravada.
"Capitão, antes de voltar, quero ir eu mesmo a Igarassu
enfiar o dedo e o cano de minha garrucha no buraco da bala de Vicente Lopes de
Negreiros"
chamou de novo os homens que juraram:
"vá em paz, meu parente, o morto é morto e se ressuscitar em qualquer parte,
de Pedras de Fogo para cá, terras de Pernambuco,
deixará de ser vivo:
vá em paz, os meus homens não mentem"
E depois de onze meses
considerei
descansar meu irmão na sepultura e minha
fadiga em minha casa:
meu pai deu provimento.
Naquele tempo
preparava Eufrosino uma cavalaria para Vila dos Brejos
e Antônio Mourão urna outra
para ir a Caxias, Maranhão:
lá podia comprar terras de uma herdeira de meu avô
anexas às de meu pai e eu podia
escolher um sítio e situar-me entre os irmãos.
Vicente Lopes havia passado a viola
e dançava na sala
o outro tocador morreu por ele
e enquanto eu vivesse, meu serviço era procurá-lo, onde quer que soubesse dele,
Soube na Boa Esperança e não estava
soube em Uruburetama
meus homens andaram vinte e oito léguas desde Vila Nova
e meu pai recebeu uma carta:
"Menezes e Vicente da Caminhadeira tiveram notícia de que
Antônio e Alexandre Mourão
atravessaram o rio Parnaíba com trinta e um cabras armados, rumo a Poço d'Agua"
mandei quatorze homens à Capela dos Humildes
um tiro empregou a bala na carne de meu ombro
a luta a ferro frio durou das três às seis da tarde
e o sangue dos irmãos e dos cabras de Vicente Lopes empapara o curral
e ele fugira
e enquanto eu vivesse, meu serviço era procurá-lo, onde quer soubesse dele
nem o cadáver de seu irmão entre os garrotes assombrados e as varejeiras
lambendo sangue
valia o corpo airoso de Manuel
Segui para Capela, Residência, Pequizeiro e Boa Esperança
esquadrinhava sozinho as grotas da serra e um morador me advertiu a medo:
— "meu Senhor, não siga por este caminho, que os logares estão semeados de
Mourões"
e a semente do amor de meu irmão, de minha raça e
a semente do ódio
germinavam e em meu peito
buliam. E buliam
ao chouto do cavalo
as balas no embornal.
Na terra semeada de Mourões
nunca antes chorou um macho em minha raça
duas lágrimas tive sobre a areia onde
o corpo de Manuel fora plantado
e nos grotões da serra e no ventre das fêmeas
eram semeados os Mourões
naquele tempo.
E enquanto eu vivesse, meu serviço era
semear a morte no caminho
de Vicente da Caminhadeira
à porta de sua fazenda
empinei, afinal, os meus cavalos:
chegamos de rojo e de punhal na mão
pisei-lhe no peal
morreram dois homens e a mulher do coito
e pus o resto, seis homens e duas mulheres, debaixo de ordem.
Corrigi a cabeça e o pé-da-serra
seguimos para Uruburetama
voltamos por Meruoca
subimos a Ibiapaba
descemos por Vila Nova
fomos ao Barriga
voltamos pelo Irapá
sangrei com minha mão e minha parnaíba um cabra dos que o acompanhavam
no dia em que matou Manuel
e enquanto eu vivesse, meu serviço era procurá-lo, onde quer que soubesse dele
no caminho de Crateús derrubei cinco com minha clavina francesa e fugiram
vinte de seus acostados
e entrei na Vila do Príncipe imperial com o botim de seus cavalos
e eu tinha dois bacamartes a tiracolo e um deles se chamava Luar da Serra e o outro
Galo de Campina
e o Governador Alencar e o Presidente do Piauí, um poltrão que me devia a cadeira,
depararam guerra
à raça dos Mourões.
Comecei a levantar os povos
contra os tiranos:
Piranhas, Oeiras, Canindé, os Inhamuns, Pernambuco e Piauí
governei o Ipu
e fui bater os Bentevís no Maranhão
e enquanto me ocupava com a guerra dos maranhotos
meus engenhos "Bacamarte" e "Por Enquanto" eram pilhados
e a tropa imperial retomava o Ipu na minha ausência
e prendia meus irmãos para matar
tornei num raio da Parnaíba e
em trinta e seis combates
atravessei a Ibiapaba e à bala
e a ferro-frio
reassumi o lpu:
devastei quartel, cadeia
e a bala feriu
o peito de José de Barros, meu irmão e doeu
no coração de Eufrosino:
segui sozinho para a casa do Delegado
nem a outros daria esta tarefa
rodeei-lhe a casa e derrubei-lhe as portas
e eu mesmo fui matá-lo com minhas mãos e dei
a festa por acabada,
E de todas as janelas
as serranas me sorriam
chapéu de couro virado
floreado o peitoral
todas as armas de prata:
desci as ruas sozinho
e as raparigas achavam
que eu era o deus da cidade
em meu argel bralhador.
Juntaram-se os exércitos
e minha cabeça foi apreçada em dez mil cruzados
e na Aroeira e no Ingá e nas outras dezesseis fazendas de meu irmão Joaquim
Mourão do Piauí ao Ceará
tocavam violas e azeitavam clavinas
em meu louvor
e eu era
louvado e blasfemado
recebia cartuchos e homens
e organizava esquadras
e à margem do Parnaíba
a emboscada nos colheu
e todos se entregaram e eu
resisti sozinho
nas mãos do inimigo não cai vivo um macho
da raça dos Mourões
não me lembrei dos peixes e das cobras ferozes
a rês bargada
atravessava a nado o Parnaíba imenso
por onde passa o boi, passa o vaqueiro
fui ter ao outro lado do rio
nu, com um patacão no dente
e o punhal na mão.
Voltei:
enquanto eu vivesse, meu serviço era procurá-lo onde quer que soubesse dele
nas fazendas de Eufrosino e nas minhas,
no Gurguéia, no Cortume e na Canabrava dos Mourões
e as ladeiras da Serra Grande — a Serra dos Mourões serranos e a Serra da Joaninha
dos Inhamuns ao Piauí
e a Pajeú de Flores, Pernambuco,
os caminhos estavam tomados de piquetes e cabras do cangaço
E o meu cavalo relinchou e esfregou-se
nas ancas da égua reboleira
e a lua-cheia se derramava no terreiro
e a lua fazia lama na estrada
e com o juizo atolado no luaçal
suspendi todos os meus sentidos por saudade dela a cem léguas dali
e entendi partir para uma noite
e repetir a noite que há tempos lhe ensinara à beira dum açude
e andei duzentas léguas
não me aplacavam as fêmeas da beira do caminho e só ela.
Tubiba, Pé-da-Serra, Passagem-Franca e Sobral
o Barão de Icó, meu bom amigo, mandou pedir:
"preciso de seu braço para erguer a política da província,
apresente-se à Justiça do Ipu e será absolvido e garantido"
recolhi-me com meus cavalos e meus homens à cadeia do Ipu e apenas para dela
sair pelas estradas livre
assobiando em meu argel baralhador
ao encontro da amada
no mesmo dia se convocara o júri e eu
já passeava na prisão do Ipu com minha espada na mão pronto para sair
e fui traído e Eufrosino
com os cabras dos Mourões arrebentou os muros
e entraram a cavalo na cadeia e seguimos
a galope pelo meio das ruas
e nos recolhemos ao Coité para juntar tropa
e derrubar o Governo
e Eufrosino de chibata e espora até no sono
atropava cabras e em meus olhos lia
o desejo dela:
"não vá — disse o irmão prudente — e em dois dias, o tempo que quiseres,
mandarei deitá-la em tua casa",
A bússola amorosa me guiava
só me satisfazia vê-la e para vê-la
havia que voltar
ali onde sem falta era o perigo
e à noite, a ocultas deixo
minhas armas
nem do punhal
me lembrou
e era bom esquecer o perigo e lembrar o amor
o maldito fraco que sempre tive por mulher moça
mandei-a vir, à lua-cheia, ao meu Engenho Corrente
de longe ela sentada na areia recostada a testa na mão
não seria mais bela a lua-cheia
apresso os passos no desejo de abraçá-la
me aproximo dela ponho-lhe as mãos por cima do ombro e dei-lhe
o último beijo
os soldados emergem das moitas
e a traidora recebeu dez mil cruzados
e Eufrosino e seus homens acostados em nossa Fazenda Curralinho
chegaram tarde
na prisão da Fortaleza a escolta do Imperador
depositou meu coração maguado e na prisão
me deixaram guardar
a espada e o sangue ardente e as fêmeas
vinham dormir no cárcere comigo."
E aqui termina a crônica do bravo:
silenciou seu bacamarte e Pedro
e o Coronel e meu avô Galdino
conheceram o calabouço e a liberdade e a vida e a morte
e forte e velho
Alexandre morreu quando
semeava Mourões no ventre de uma fêmea
nos Inhamuns, Ceará, naquela parte do país dos Mourões onde dorme meu pai, onde
começa o país dos Calabaças, Muquém, Vertentes, terras de minha madrinha
Donana Mourão
ali se apartaram touros e novilhos de meu cabedal e ali
florescem Antonino e Doninha Mourão e outros Mourões da linha tronco até à flor.
E à esquerda e à direita derrubamos tantos
e os que morrem plantando filhos, Alexandre,
ressuscitam
se o amor servir de guia, terás êxito
disse a Teseu o oráculo de Delfos
e à esquerda e à direita derrubamos tantos
frustrada foi a morte de Vicente Lopes de Negreiros
e o rosto moreno de Manuel
à bússola amorosa dos anjos se repete
no rosto de Gonçalo e Antônio José
e também eu, amor,
da raça de Alexandre
dos que não deixam a vida à mão dos inimigos
vou deixá-la na ilha de teu ventre
para sempre.
E para sempre
estarão os logares semeados
de Mourões
E assim como era no princípio agora e sempre
pelos séculos dos séculos
o touro sobre ti
e à nossa volta e de nossa
semente
o mundo.
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