Gerardo Mello Mourão


Nasci tocando viola

Nasci tocando viola sou Mourão das Ipueiras, dos Mello do pé-da-serra reinador destas ribeiras tanto canto em minha terra como em terras estrangeiras As cordas desta viola são meus pés e minha mão: no galope a beira-mar nos oito pés em quadrão; em martelo e gemedeira em gabinete e mourão. Devoto fiel de Apolo cantador de profissão, vou cantar o deus da lira de minha religião quero contar sua vida fazer sua louvação. E tanto o canto em sextilhas como em versos espondeus, que era Apoio sobre a terra Deus e homem e homem-deus pois a fêmea que o pariu pariu do sêmen de Zeus Quando Jesus veio ao mundo nessa noite do Natal, Maria, pra dar a luz só encontrou um curral — me ajoelho e peço a bênção e faço o pelo-sinal. Pois canto a história de Apolo falho de Zeus e de Leto, foi seu berço uma palmeira e o céu de Delos seu teto: mamou nos peitos de Temis nectar puro e mel do Himeto. Só Delos teve coragem de oferecer o seu chão, pois Hera, mulher de Zeus, prometia maldição a quem ajudasse o parto na terrível solidão Foi ali aos nove dias que o Deus Apolo nasceu Artemis, sua irmã gêmea, antes dele apareceu, vestido de linho e ouro a doce lira tangeu Pela folhinha dos gregos faço a conta e não me engano, foi dia sete de Bysios que nasceu o deus humano: fevereiro — entre oito e nove — do calendário romano. Até então era Delos uma ilha flutuante, quando nela um deus nasceu, Poseidon, no mesmo instante, firmou-a no chão com quatro colunas de diamante. Apenas nascido Apolo os cisnes em revoada sete vezes deram volta sobre a ilha abençoada e cantaram glória aos deuses e paz à terra sagrada. Mas Hera, mulher de Zeus, contra a mãe de Apolo irada ferida pelo ciúme pela paixão desvairada: contratou uma serpente traiçoeira e envenenada: Era a serpente Python com cabeça de dragão: contra Leto, mãe de Apolo, sem a menor compaixão, dia e noite ela movia terrível perseguição. Era Apolo deus e homem em todo o seu esplendor, e como homem — valente, e como Deus — vingador: pela honra da mãe armou-se com seu ódio e seu amor. Atrás da serpente pérfida percorreu terras sem conta, disposto a lavar em sangue a miserável afronta, nas cordas do arco de prata a flecha certeira pronta. Pelas bandas do Parnaso foi a serpente ferida, levou três flechas no lombo mais inda saíu com vida, no lugar santo de Delfos escondeu-se espavorida. E alí ao lado do oráculo, da gruta sagrada à porta, um rugido pavoroso racha a terra e os ares corta: com sua flecha certeira, Apolo deixou-a morta. É três, é quatro, é cinco, é seis, é sete, é oito, é nove, é dez, pegou o couro da cobra cortou de frente e viés e com ele fez o assento da cadeira de três pés. Era a trípode sagrada o trono da profetisa, no umbigo do mundo o céu e a terra fazem divisa, e a voz dos deuses se escuta na boca da Pythonisa. Pois o deus tomou à cobra pele e nome por botim: Apoio Pythio o chamaram e eu também o chamo assim: da história do mundo sabe o começo, o meio e o fim. E para purificar-se do sangue dessa serpente, com Artemis foi a Creta lavou-se n'água corrente, Karmanor lhe aspergiu o corpo e a alma inocente. Montou um delfim no mar, veio a Delfos no outro dia, arrebatou ao deus Pã a arte da profecia e pela boca da Pythia seus oráculos dizia. Afoito, ao bosque dos deuses veio um gigante malvado, quis violar sua mãe e Apolo ficou irado: chamou Artemis, a irmã, e o pacto foi combinado. Saíram os dois divinos no arco a flecha certeira, alvejaram o bandido oculto numa touceira e o corpo com duas flechas rolou pela ribanceira. Um dia o sileno Mársias desconheceu seu lugar e a pura lira de Apolo pretendia superar soprando a flauta de Atena que o ensinara a soprar. Os deuses e as musas foram o tribunal julgador do desafio insensato feito ao divino cantor e decretaram a Apolo a palma de vencedor. Para glória da poesia, para dar uma lição, Febo Apolo esfolou Mársias e arrancou-lhe o coração, que o desrespeito a um poeta nunca pode ter perdão. De outra feita ele tocava contra Pã numa função, Midas prefere o pastor, e ao dar esta opinião, duas orelhas de burro lhe crescem por punição. Há cantadores famosos nas feiras do Cariri, Jacó Alves Passarinho de Mutamba, Aracatí, há Romano de Mãe d'Água, Sinfrônio do Jabotí, Azulão em Pernambuco e Inácio da Catingueira, Serrador, Cego Aderaldo e mais Anselmo Vieira que foi o melhor de todos por ser filho da lpueira. Na viola e na rabeca eu também sou cantador, mas somos pobres mortais, eu, Anselmo ou Serrador, não vamos desafiar Apolo, Nosso Senhor. A todos os que ofenderem o poeta e sua glória, sejam reis ou coronéis, dos potentados a escória, deixaremos pendurados nos postes podres da história. Mas canto é Apolo formoso suas batalhas de amor, com musas, ninfas e deusas e raparigas em flor, nem escaparam mancebos de seu leito sedutor. Passou nos peitos Cirene, Coronis, Ária e Thalía, Naiades, Graças, Driopes e a mãe de Dorus, Phytía, Urânia, Clítia e Kimene e as nove Musas que havia. Recusou-lhe a pura Dafne seu lírio de castidade, transformada num loureiro Pasifae — na flor da idade, as verdes folhas consagra na doce dor da saudade. Jacyntho, o belo mancebo era seu lúdico amor, quando morto cai na relva pelo Zéfiro traidor, inconsolável Apolo o transforma numa flor, Pois o amor, a flor e a morte são obra de sua mão, são água do mesmo rio, são fonte do coração, por onde o sopro de Apolo rege a humana ordenação. Seu espírito divino, mais sábio que Salomão, sabia a ferida e o bálsamo, a doçura da canção, pois era senhor da vida, da morte e ressurreição. Para remédio das almas, fundou a Pythia divina, para remédio do corpo inventou a medicina, foi o pai de Asclépio, médico, mestre em sua disciplina. E quando o raio de Zeus fulminou este seu filho, na corda tensa do arco mostrou das setas o brilho, matou todos os Ciclopes como quem mata um novilho. Expulso por Zeus do Olimpo, foi ser pastor de carneiros, pastoreava cantando os rebanhos campineiros e era o cordeiro de Deus entre fontes e loureiros. Exilado sobre a terra, filho de Deus humanado, sua canção governava o bosque, as flores, o prado, o mar, as fontes, os rios, por todo o povo estimado. Os deuses então sentiram de seu prestígio temor, voltou por isso ao Olimpo, com todo o seu esplendor, pastor do sol, das estrelas, dos homens o Bom Pastor. Um dia a Zeus fez um susto, para dar-lhe uma lição, com outros deuses no Olimpo fèz uma conspiração, e quase derrubou Zeus, mas foi só por diversão. Sustentou Heitor em Troia, salvou Enéas da morte, uniu os povos da Grécia desde o sul até o norte e a liberdade dos homens cresceu, floriu, ficou forte. Proferiu as leis divinas, disse os preceitos humanos, esmagou os opressores mandou matar os tiranos, não há ricos, não há pobres, — são iguais em seus arcanos. Tudo na terra se curva e lhe rende adoração: galo, grifo, cisne, gralha a cigarra e o gavião, o mirto, o plátano, o zimbro e a palmeira do sertão. Das flores quer o jacinto e o girassol altaneiro, o lotus, o heliotrópio, e das folhas o loureiro, pois com ele é que coroa a testa do violeiro. Quer dos legumes da várzea a fava branca e o feijão, das montanhas a oliveira, dos pinheiros o pinhão, e das frutas a maçã, a mesma que quis Adão. Dos homens quer o poeta e o doutor que dá saúde, o marinheiro, o artista, o tocador de alaúde, o virtuoso do belo e a beleza da virtude. O lobo, a corsa, o delfim, são bichos de seu quintal, traz sempre a lira de ouro em sua mão sideral, e o tenso arco de prata e as flechas num embornal. Tenso é o arco, tensa a lira, tenso o Deus da formosura, tenso o poeta que canta e que pede à flecha pura a sábia coincidência da presença e da lonjura. Pois em Febo, Febo Apolo, eu estou e não estou, junto ao seu carro de fogo tanto sou como não sou, e quando ele risca as nuvens aos Hiperbóreos me vou. Busco nos céus uma estrela, busco no mar um farol, onde estão os Hiperbóreos onde se acende o arrebol, onde sempre desabrocha a mera rosa do sol. Terra de luz e calor, caem estrelas em cacho, será em Mourão-de-Cima, será em Mourão-de-Baixo, pois lá no norte do norte Apolo, vejo teu facho. Era de lá que descias no lombo das verdes emas, da aurora das Ipueiras, da manhã das Iracemas, do azul da Ibiapaba, da rosa das Borboremas. Palmares de Pernambuco, Limoeiro de Anadía, do Piauí das Oeiras ou de Alagoas descia, trazendo a Delos e Delfos o verbo da profecia. Hiperbóreos, Hiperbóreos, teu sol eterno, onde está? País da cobra de fogo, planeta do Boitajá, é nosso roteiro, Apolo de Delfos ao Ceará. Será em Mourão-de-Dentro, Mourão-de-Fora será, banda da Várzea dos Mello, das Ipueiras pra lá, toca viola nas serras Apolo do Ceará. Esta é a história de Apolo que se conta no sertão: à sombra das oiticicas na concha de sua mão, bebe o sol das Ipueiras como água do riachão, para levar aos países do frio e da solidão, seu oráculo de fogo a flor de sua canção, deixando o rastro da lira nas várzeas daquele chão, o violeiro que assina Apolo Mello Mourão.


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