Gerardo Mello Mourão


Caminhavam sobre meu corpo

Caminhavam sobre meu corpo as de Goiás e do Piemonte uma delas costumava fincar a lança de seu pé no sítio do coração — outra rodopiava sobre o pênis taciturno e num salto certeiro cravava as ancas ao grito lancinante e engolia nas entranhas o príncipe fremente: florescia em suas bocas compunha o lábio formoso e a língua estudiosa mas não pisavam minha pele — ego poeta em floretes de sopro as sustentava e a sombra de suas pernas tecia túnica a meu corpo. Os que sabem de mim me lembram como um pequeno rei arteiro e moribundo entre amantes de todas as raças. Todas elas me possuíram ao longo das noites. E a noiva sérvia, as crinas do Danúbio sobre os ombros — e a princesa de Túnis com seus olhos de avelã e a puta de Araguari com seus seios salubres — todas me possuíram por dias e noites e anos me possuíram. E fui eu mesmo meu próprio preço: por isso tantas vezes me resgatei — e nunca as possuí — nem mesmo a pequena alemã de Blumenau nas noites de setembro. E Isabella era Lúcia Isabella. Quando pensei tê-la afinal dominada e possuída, metamorfoseou-se em rosa — melancólica rosa amarela num jarro de porcelana. De outras, desapareceram o rosto e o peito, todo o corpo transformado num pequeno sexo na palma da mão, uma crisálida, uma borboleta ou uma pomba, e fugiram voando para o teto da igreja de São Paulo. Outras ainda se transformaram em defuntas e eu as sepultei chorando num monte de lírios desolados — no entanto, eu as criara, ego poeta, de meu barro e meu sopro, pois antes de mim não existiam: quando sílaba à sílaba alguma noite pronunciei seus nomes Ma — da — le — na Ma — ri — e — le — na I — sa — be — la só então elas se ergueram com seus umbigos vertiginosos e nada mais pude dizer e seus nomes me esgotaram as veias e os pulmões. E quando eu lhes perguntava de onde vinham, para onde viajavam, de que pessoas ou lugares traziam ou buscavam notícias, respondiam simplesmente: — Apolo — e quando diziam o nome santo, voltavam de repente ao que eram: Isabella se incorporava em sua rosa amarela, a puta de Araguari se erguia de sua borboleta ou de sua pomba e as defuntas, sacudindo os lírios dos cabelos, se punham de pé sobre seus caixões azuis. — E todas me possuíam de novo Possesso delas — ego poeta produzia o vinho e o vinho produzia o bêbado — e o bêbado produzia a música e a música produzia a regência do ser em dança sobre os tornozelos em tomo delas — pois seus olhos guardavam o rosto de um deus e sua boca um nome — Apolo — e ao sagrado nome novamente se metamorfoseavam e a pequena alemã de Blumenau era uma égua ruça e a puta de Araguari uma poldra baia e emparelhadas com arreios de prata arrastavam entre as constelações o carro do deus. Entre Alpha e Beta de Capricómio o deus era arrastado pelas potrancas vertiginosas. O galope sideral atravessava as flechas do Sagitário, as rodas do carro de ouro deslisavam sobre o ruivo riacho da Coma de Berenice e as éguas se empinavam afinal, de narinas ciumentas, na colinas de Delfos onde Lúcia Isabella transfigurada, em Maira la Perra transfigurada, lambia a mão do deus com sua astúcia de irish-setter. E de repente assumiam outras formas e brotavam dos agapantos e dos crótons e luxuosas serpentes coleavam na relva com seus crótalos pressagos. Pois Lúcia lsabella era uma verde cascavel de olhos dourados, vertical e longa, meneando a cabeça e a puta de Araguari armava o bote de sua pele malhada e Jéssica e Elisabeth enrolavam o lustroso coral de seu dorso, enquanto Adriana e as outras lambiam os dentes perigosos. Ego, poeta, tenho a mão sagaz e arteira do Serpentário e empunho o sustento e encanto as serpentes enroladas no pênis em meu leito de rosas pois as rosas sideradas vão con- siderando o ouro e a praia das serpentes na mão do Serpentário onde ainda uma vez a cabeça dourada de Isabella. volta à antiga flor de seu sorriso pois et nunc et semper as auroras devolvem Lúcia Isabella do sítio da memória à ilha do coração de Apolo. Por isso peregrino a memória ego, poeta, romeiro do coração adonde parti retomo — e estudo minha esperança: de minha própria esperança estudioso sobre a podridão das horas planto a rosa e a maçã e habito a distância de sua primavera e seu outono: pois do lombo de capricórnio salto — ego, poeta a galope neste Monte Real la belle province e guardo sempre a língua — e é bom morrer restam algumas horas de vida — tant mieux pois não verei o estrangeiro plantar sua palavra onde plantei teu nome ao vento da montanha repetido entre as folhas do érable: pois ao morrer teu nome em minha boca terei cumprido a minha própria morte: na língua estou vivendo here lived and labored e os turistas atônitos e Agnes e Carole e as outras ouvirão do porteiro do hotel a evocação do poeta: from here sailed out to die as verdes águas escrevendo na vela as letras lancinantes de teu nome alí — satélites — meus olhos pois de Águas Be L as e Pa L mares e Pa L meira dos Indios a Be L grado me voy e eras o vale e o céu de Ia Be LL e Province e eras o nome de la Be LL e Province e a noite de Guatema L a e a lua de teus seios enluarava as laranjas nos jardins maduros de Teguciga L pa Teguciga L pa! en el cerro de plata tres mejülas de oro à janela dessa calle del Olvido rias o riso de cristal e prata de Tegucipalga e as colinas estudavam ali teus seios teus quadris e o vento aprendeu a mover-se em teus quadris e assim por Montes Claros e Diamantina onde bailavam nas suas manjeronas rescendentes Cristina e Júha. Por esta flor passou um beija-flor por esta relva um calcanhar por este lago uns pés: na flor na relva na água crescera o calcanhar da raiz do rastro teu talhe de palmeira desde até.


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