Gerardo Mello Mourão


Digo o que vi — pois vi os anjos

Digo o que vi — pois vi os anjos montados no lombo das poldras azuis galopando nos potreiros ao redor da cidade — e digo o que ouvi — pois ouvi dizer que as deusas moribundas voltavam à adolescência no crepúsculo e se entregavam aos anjos no lombo das poldras azuis e muitas outras coisas sei de ver e de ouvir dizer sobre anjos e deuses alguns deuses: subi à montante do rio dos jaguares no dorso dos crocodilos e achei a nascente das águas — e escanchado no espinhado dos sáurios passei a divisa das águas — perguntei todos os caminhos do mar ao abismo à espuma à latitude e à longitude — pois habitei minha própria lonjura e meu álibi: a corrente das águas carregando a imagem de meu rosto por onde a figura se configura — pois habito meus próprios álibis: ali estou onde desejo estar — e desejo o caminho de teus rastros onde confinado e livre confino o mundo — pois o prisioneiro engenha a liberdade — engenheiro do dia e da noite aloeste a sudeste a nornordeste e quem queira encontrar-me há de seguir a rota dos abismos — pois incola do abismo — o abismo é meu porto e minha pátria ego poeta cidadão do abismo pois mordi, Apolo, a fruta de teu nome e, conheci o sal e o mel e o vinagre e a pimenta da palavra — o sangue dos seres e das coisas e seu vinho e sou o bêbado dos abismos onde veraneio os meses entre demônios cartomantes: — um moço louro a traição periga há uns papéis confusos longas viagens dinheiros curtos a mulher morena em lágrimas uma solteira uma casada e lágrimas pela porta da rua outra mulher mais outra empalidece e treme o valete de espadas uma ruiva pela porta da. rua por onde as já citadas lágrimas risco de morte uma herança uma estrela seus astres e desastres: — "embaralhe o baralho" — e a mão astuta arqueava as cartas e embaralhava os naipes descia ao abismo de seus signos cercado de profecias por todos os lados pois enxergava sempre a musa ali e o coração estremecia aos olhos da pythia alcovitada — e às vezes fulgurei em seus olhos e em meus olhos conheci minha verônica — pois o que sei de mim sei por uma sibila, pelas cartomantes pelas ciganas rastreando as linhas de minha mão e o que sei do mundo é o que sei de mim pelos profetas é o que sei de mim por ouvir dizer é o que sei dos defuntos na lívida escritura de seus rostos hirtos entre cravos e rosas quando meus olhos se agoniam sobre seus pergaminhos — entre o hieróglifo de seus dedos rúnicos e o silêncio pulcro de seus lábios rupestres Mas um dia rompo o meu silêncio — e as rosas começam a cair de minha boca as rosas e as estrelas e os circunstantes atônitos me tiram reverentes o chapéu e dobram os joelhos e me beijam os pés e quando se erguem escarnecem de mim e de si mesmos pois já não se vê mais que a poeira de um rastro a aparição e a desaparição — e as rosas voltam a fechar-se em seus botões de silêncio diante das estejas apagadas pelo sopro do vento e sou apenas o que fui — e fui apenas o que serei na boca dos profetas dos contadores de lendas eterno toda vez que as cartomantes inventem ao olhar de uma trêmula mulher o perigo de um príncipe a caminho e na palma da mão entre o monte de Vênus e a linha do destino — o presságio de meu nome alegrará um coração que espera a chegada da esperança. Não sou — já fui não fui — serei serei o que teria sido num país que carrego nas pupilas ego, poeta, Pigafetta meus olhos pisam meu chão e caminho pisando os próprios olhos meus pés escrevem no celeste espaço com o coruscante stil nuovo do pentestrelo minha bitácora — pois escrivão de Capricórnio tenho por nome meu pseudônimo —Caramuru ou Monteverde? —


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