Gerardo Mello Mourão


Olho com olho

Olho com olho tua pupila dura sobre a beleza feroz de tua boca acompanhou meu canto — e não sei se pouco a pouco ou de repente começaram a nascer em tua pele umas flores azuis — e brotaram em teu rosto e invadiram tua cabeça e cobriam teus olhos e teus lábios e cresciam em tufos nas orelhas e se abriam sobre as narinas e a nuca e o seio e as pernas e formavam uma touceira de madressilvas onde eram antes os ásperos pentelhos e os beija-flores e as abelhas acendiam a tesoura de suas asas fulgurantes e sorviam o mel em teu semblante rosa — margarida — violeta e eu disse em vão teu nome — pois as corolas cambiavam de cor à minha voz Açucena e Magnólia e às vezes te desabrochavam da cútis milhões de miosótis multicores — e outras — eras toda um girassol de ouro — pois de tua pele estão nascendo flores — de tuas virilhas o antúrio vive — e um dia de teu hálito à tua voz se irão compondo nos lábios os gerânios rosas-moiras e grinaldas. de lavanda silvestre — e ao teu aroma brotarão de meus dedos e de meu umbigo e do sexo farejante narinas insaciadas Pois começaram a me nascer narizes por todo o corpo e me passeias os pulmões e aspiro e inspiro tua presença odorífera — e a doçura do orvalho orvalha agora as violetas onde fora a dura pupila de ouro Também contemplo as tuas dimensões pois ás vezes também me nascem, Godo, dois miserandos olhos sobre a nuca e quando pergunto o meu futuro responde o meu passado e quando contemplo o meu passado vejo o meu futuro — e assim caminho e sou eu mesmo a minha própria órbita mísero misérrimo vazio e cheio de misericórdia misericordioso pranto cerca os horizontes e arrastando-me na areia arrasto um Deus pelos cabelos e interpelo Apolo, Apolo mostra ao cego iluminado onde o passado começa e o futuro termina pois o mísero poeta prisioneiro nem de seu passado nem de seu futuro se liberta e em vão vê o cesto das horas encher-se em vão da água de seus dias Uma noite a rapariga de Serajevo apontou-me os Balkãs e por vinte dinars começou a ler a minha mão esquerda ao pé de um poste sob a lua de repente calou-se e passou a ler em silencio — ou rezava talvez — e começou a chorar — e as lágrimas caíam de seus olhos ciganos e o pranto vinha de longínquos países e ela banhava com ele a minha mão Perplexa e beijava e enxugava em seus cabelos e eu não sei de outra palavra senão a que naufragou em sua pupila e se despedaçou em seu soluço quando o cálamo vivo de seu dedo se erguia do mapa de minha palma e apontava no ar não sei se as serras dos Balkãs não sei se as serras da Lua não sei se os montes de Vênus ou. as estrelas de Capricórnio E assim, amor, em teus olhos transidos tenho lido a estrofe e a catástrofe de minha peripécia: velhas terras me envenenam os pés sobre o fio dos passos me devolvo del mezzo del cammin e não me perco na selva escura onde, Ariadne, o chão musgoso guarda a memória sábia do caminho me Venerem quarente per talos et paludes: pela planta dos pés me envenenaram esses doces venenos e rorejo dos poros o suor deste mel — e das pupilas oh dulce lacrymarum donum in quo salus salus mundi salutat — pois Apolo Apolo pai, Apolo filho, Apolo pneuma caminha só entre as estrelas nos outubros salubres do país.


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