Gerardo Mello Mourão


Jà vou atravessando a província formosa e a Musa

Jà vou atravessando a província formosa e a Musa é contígua aos países longínquos: o prisioneiro é aquele que era livre o morto o que era vivo entre o cão e o cano linheiro da espingarda o caçador alinha o olho sagaz e a narceja selvagem tomba do azul do céu a asa pendida de seu fio de sangue — e sempre por um fio de sangue Eleutheria Ariadne convulsa a liberdade encontra o caminho da morte — poeta solus poeta tantum — só o poeta pranteia sua bela narceja derrubada na paisagem lacustre: maldito seja o estampido maldita seja a mão que afaga o gatilho e a pupila que endurece à pontaria maldita seja quando o tiro quebra as asas aflitas e ao peso da descarga de chumbo a flor alada se rebenta no chão e cai come corpo morto cade Já peregrinei essas províncias formosas vi a lua romena sobre os Kárpatos e as colinas dos Kárpatos onde os monjes serenos de Sinaia e o pátio de seu mosteiro sobre vales e colinas da Transilvânia montada em sua cítara de nuvens — vi a lua e a branca mão de Artemis sempre virgem caçadora de estrelas fere a noite no firmamento azul a seta sagrada e pulsa o coração da luz: ali quem sabe, Apolo, para teu rastro um rastro pois tu mesmo foras talvez apenas o buscador de teu próprio rastro pousam primeiro os olhos no caminho e ali onde pousaram pisam os pés nas pupilas onde ao chão da relva virgem se sugere o rastro que virá: e assim andei a Dácia e a Trácia e o Ponto Euxino e na montanha búlgara à chama crepitante desse rastro arderam calcanhares — e o vento desmanchou em cinza a pulcra perna varonil: não já sobre teu pé — sobre teu rastro se lança o corpo divino as estrelas desabrochavam da terra, Jonathan, e os firmamentos caíam dentro de um oceano de jardins: pois consultei as rosas de outono da Bulgária e os cravos de Istambul e naveguei o Bósforo o Mar Negro e o Mar de Mármara esse Ponto Euxino onde Ovídio Publius Ovidius Naso poeta fuit — e velejei as costas da Dardânia onde foi Troia onde Heitor domava os cavalos e onde a corda de tua lira regia a lança do mais doce dos homens — do guerreiro puro — Naveguei o Adriático e o Tirreno o Egeu e o Mar da Jônia e o Atlântico e o Pacífico e as ilhas e as antilhas e o mar do Caribe e o Mar do Norte e o Mar Mediterrâneo e o meio das terras e as terras ignotas e as terras filiorum dei e cavalguei o lombo do Ontário o São Lourenço e o Amazonas e o São Francisco e o Mississipi e o Paraguai e o Paraná e o Prata e as cataratas e os outros lagos e os outros rios o Danúbio e o Tibre o Jaguaribe e o Sena e o Pó e a ribeira do Arno por onde caminhava o poeta e o Reno e o Meno por onde cantava o demente divino e o Tejo de onde celebrava Camões as caravelas rumo aos mares nunca dantes navegados e às ilhas nunca depois reencontradas onde as ninfas se entregavam aos guerreiros enumero os caminhos — e seus nomes celebram a viagem aos tempos matinais pois navego a matina dos tempos onde apenas o som da lira e os cabelos de Melpômene vestiam a glória fálica de teu corpo nu na escritura do chão a memória de meus pés das serras do Ceará Grande e Mel Redondo às serras de mel do Himeto — pois pisei a água e o solo e não pisei a flor o anjo a oliva nem os filhos dos homens e odiei os lugares do ódio e os lugares do sangue sobre o chão dos algozes me cravei de espinhos e busco os caminhos do amor Esta é a memória de meus pés por onde a liberdade peregrina — por onde as columbas arrulham a paz por onde os adolescentes colhem as belas raparigas que adormecem nuas — por onde corre o vinho alegre e os homens e os deuses bebem no mesmo copo à saúde dos pássaros das colinas dos lagos e das árvores das cidades das ruas — à saúde dos circunstantes e dos transeuntes: Até breve, Apolo.


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