Quinto
andar, a janela abre-se para um dia que mal se esboçou.
Lá
fora, há um céu de Magritte. A luz entra sorrateira, tomando
cada dobra do quarto como silencioso invasor. A moça dorme os últimos
instantes antes da partida. Os braços lentamente se estendem num
balé surdo, tocando um instrumento improvável. A música
é o sono que acaba.
De
repente, as paredes se tingem de tons de verde,
como
os olhos da moça que desperta. Um roçar de nuca nos lençóis,
um travo de noite nos lábios e uma centena de horas a percorrer.
O corpo inunda-se de sensações.
Sem
palavras, seus gestos ainda são tímidos. Mas têm fome.
De tudo. Ao colocar os pés no chão, está acordada
e pronta.
(in
Encontros Necessários, 1997)
Somos
seres náuticos, de um mar oceano que há muito secou. A rosa-dos-ventos
cravou o nosso caminho. A bússola marcou o teu Norte no meu e enlouqueceu
o magneto. Cruzamos além da borda do mapa e não encontramos
nenhum monstro marinho. Apenas nós mesmos.
(in
Encontros Necessários, 1997)
Após
tanto tempo, talvez não tenhamos mais a simetria dos anjos, porém
ganhamos a densidade dos seres.
Temos
a geminiana cumplicidade que a tudo suporta e compreende. Podemos ter perdido
nossas asas, mas ainda sabemos voar.
(in
Encontros Necessários, 1997)
Duas
horas da manhã. A casa submersa em relativo silêncio. Como
um vigia atento, sei que ainda não estás aqui. Quem fez esta
noite pastosa e úmida, tragando em seu ventre desejos e saudades?
A
casa submersa em relativo silêncio, sons distantes, um choro, talvez
um grito, muitos carros. A noite é um esperar de notícias,
um jornal ainda não impresso, páginas em branco esperando
pelas formas que são tuas. Da noite, ouvem-se uivos e gemidos, e
um zumbido que ricocheteia pelas paredes como um tiro. A espera torna a
noite ainda mais longa enquanto o sono teima em se esquivar.
A
casa submersa em relativo silêncio, portas e bocas trancadas. O ladrão
entrou e já se foi, carregando consigo uma parte de nós mesmos.
Tudo segue vagarosamente como pena a ser cumprida. "O instante virá
por acréscimo", dizes. E aguardo notícias, grávido
de mim mesmo.
(in
Encontros Necessários, 1997)
Somente
existem os enigmas que inventamos. Quando te vejo cobrir com as mãos
a tua intimidade, desfaço teu mistério.
Desnudo
teus seios e tua pulsação altera-se no instante em que afasto
teus cabelos e te beijo a nuca, enrubescendo tua face de camafeu. Esfinge
faminta, te dou de comer com as mãos em concha, observando desapareceres
lentamente para o fundo de um coração de vidro.
(in
Encontros Necessários, 1997)
Há
uma orquídea sobre o dorso claro da mulher. Verdes e vermelhos,
os pigmentos se misturam à pele e exalam o perfume tatuado. Ao toque,
a flor se abre e as costas -- imenso jardim -- se curvam e se revoltam,
um tumulto de espasmos que distendem vértebras e músculos.
Há
uma orquídea sobre o dorso claro da mulher. A flor plantada no lado
direito do corpo, carregando o prenúncio da estação.
Carne e flor fundidas no mesmo festim, carne e flor confundindo-se num
mesmo sabor.
Há
uma orquídea sobre o dorso claro da mulher. Seu desenho gravado
para sempre.
(in
Encontros Necessários, 1997)
Invento
uma nova hora, tecendo no imponderável as fábulas que exorcizam
teus medos, as tramas que apaziguam a alma de quem não pode dormir.
Murmuro palavras que só a ti pertencem, som de dedos úmidos
sobre o vidro, sufocada interjeição noturna.
(in
Encontros Necessários, 1997)
Murmuro
no escuro palavras que não tenho coragem de pronunciar pela manhã.
Acaricio tuas costas e deixo meus dedos escorregarem até os limites
do teu corpo, fingindo desatenção enquanto memorizo tuas
formas. Te deixo livre para agir, o tempo inerte nas paredes sem ponteiros.
(in
Encontros Necessários, 1997)
Onde
se esconde tua natureza de menina da noite, se percebendo no escuro, descobrindo
nas reentrâncias do corpo a fonte adormecida?
Teu
prazer é fugidio e buscas na carne o que permanece na alma, oscilando
os quadris em espasmos que te levam além. Não há pecado
quando te olhas no espelho e te achas bela, mulher em eterna formação,
transcriação de tudo o que já foi dito. O pecado é
uma invenção alheia e a nós tudo é permitido.
Não há mal quando escovas teus cabelos, massageias com creme
tua pele e te despes para dormir. Nem há mal quando me deito de
costas, olhos fechados e ansiosos, esperando teu corpo eclipsar o meu.
(in
Encontros Necessários, 1997)
Estendo
as mãos, gesto instável que procura captar o astro que se
desloca em atividade. Como um cometa, passas em curvatura, tangenciando
meu corpo, brilhando e desaparecendo, deixando atrás de ti a poeira
que guardo como etéreo troféu. A janela, porém, se
mantém aberta, à espera de uma nova revolução
dos céus que te traga de volta e junte pó e alma em um mesmo
ser.
(inédito)
As
pernas prolongam-se em direção ao oceano, elementos gêmeos
que viajam paralelos e que se fundem no momento final. Abrem-se ângulos,
redesenham-se catetos, torturam arestas. Na pele que se enruga esperando
as águas, há o eterno gesto de se doar e de receber o que
o planeta te oferece, vastos mundos em mutação.
(inédito)
As
linhas traçadas não levam a nenhuma parte e a todas. Em teu
labirinto, confundes e afagas aqueles que ousam cruzar teu umbral. Anjo
tatuado, deixas de lado as asas e crias escamas, subjetivo ser aquático,
que se movimenta em espasmos rumo ao abissal esconderijo onde preservas
tua própria imagem.
(inédito)
Alongada,
a serpente distende suas vértebras em direção à
margem, esguia entidade que a tudo domina. Ser ancestral, inspirador de
pecados, não tem mais o Paraíso como morada, nem as patas
para a ação. Possui apenas a sensualidade dos movimentos
rasteiros e a eternidade para se fazer perdoar.
(inédito)
O pássaro
abre suas asas na areia, ser (re)desenhado no traço sutil. Diagrama,
criatura rupestre, linhas entorpecidas pelo calor. A criação
está pronta, ser alado, mas se recusa a voar. Planar para quê?
O céu não é distância intangível, e sim
inspiração. Com os olhos prontos, criamos nosso próprio
céu. Voar, então, é apenas detalhe.
(inédito)
São
Tomé das Letras
Tua
cidade erguida em pedra guarda segredos que não são apenas
teus. Duvidas de quê? Tens a totalidade do tempo, a rocha fria escalavrando
caminhos, paisagens outras que te levam adiante. Duvidas de quê?
Tuas palavras escritas em signos, mensagem eternamente encravada nas montanhas
do teu olhar.
(inédito) |