Mario Vargas Llosa
Jorge Luis Borges, o grande
personagem borgiano
Depois da fama, alcançada nos anos 60,
o escritor se tornou uma ilusão, um simulador
19.06.1999
A França comemorou o centenário de
Borges (1899-1999) em grande estilo: números monográficos de
revistas e suplementos literários, chuva de artigos, reedições de
seus livros e, suprema glória para um escritor, seu ingresso na
Pléiade, a biblioteca dos imortais, com dois volumes compactos e um
álbum especial com imagens de toda a sua biografia. Na Academia de
Belas Artes, transformada em labirinto, uma vasta exposição
preparada por Maria Kodama e a Fundação Borges documenta cada passo
que ele deu, desde o seu nascimento até sua morte, os livros que leu
e escreveu, as viagens que fez e as infinitas condecorações e
diplomas que lhe foram concedidos. No dia de abertura da exposição,
segundo testemunhas locais, rutilavam luminares intelectuais e
políticos e, acreditem ou não, algumas moças lindas vestiam
camisetas pólo brancas e pretas estampadas com o nome de Borges.
Nenhum país desenvolveu melhor do que
a França a arte de detectar o gênio artístico estrangeiro e
apropriar-se dele, entronizando-o e irradiando-o. Vendo a
exuberância e a felicidade com que os franceses celebram os cem anos
do autor de Ficções, tive, nesses dias, a estranha sensação de que
Borges foi patrício não de Sarmiento e Bioy Casares, mas de
Saint-John Perse e Válery. Bem, mesmo que não tenha sido, é justo
reconhecer que, sem o entusiasmo da França por sua obra, talvez ele
não tivesse obtido - não tão depressa - o reconhecimento que, a
partir dos anos 60, o converteu em um dos escritores mais
traduzidos, admirados e imitados em todas as línguas cultas do
planeta.
Tenho a garridice de acreditar que fui
testemunha do coup de foudre, o amor à primeira vista dos franceses
por Borges, nos anos de 1960 e 1961. Vim a Paris para participar de
uma homenagem a Shakespeare, organizada pela Unesco, e a intervenção
deste ancião precoce e semi-inválido, a quem Roger Caillois
apresentou com efervescência retórica, surpreendeu a todo o mundo.
Antes dele haviam falado o engenhoso Lawrence Durrell, comparando o
bardo a Hollywood, e depois Giuseppe Ungaretti, que leu, com talento
histriônico, suas traduções para o italiano de alguns sonetos de
Shakespeare.
Mas a exposição feita por Borges em um
francês polido, fantasiando por que alguns criadores se tornam
símbolos de uma cultura - Dante, da italiana; Cervantes, da
espanhola; Goethe, da alemã - e sobre como Shakespeare se eclipsou
para que seus personagens fossem mais nítidos e livres, seduziu por
sua originalidade e sutileza. Dias depois, sua conferência no
Instituto da América Latina, além de ter lotado o salão, atraiu um
grupo de escritores da moda, entre os quais se incluía Roland
Barthes.
Aquela foi uma das palestras mais
tocantes que já ouvi. O tema era a literatura fantástica. A palestra
foi ilustrada com breves resumos de contos e novelas - de diversas
línguas e épocas - , os recursos mais freqüentes de que este gênero
se vale para "fingir a irrealidade". Imóvel atrás da tribuna, com
uma voz intimidada, como se estivesse pedindo desculpas, mas, na
verdade, com soberba desenvoltura, o conferencista parecia ter na
memória a literatura universal e desenvolvia sua argumentação com
elegância e astúcia. "Certamente este escritor vem do país dos
gaúchos", exclamou um ouvinte maravilhado, enquanto aplaudia com
entusiasmo (Borges havia posto ponto final na sua conferência com
uma pergunta de efeito: "E, agora, decidam os senhores se pertencem
à literatura realista ou à fantástica").
Sim, ele vinha do país dos gaúchos,
mas não tinha nada de exótico nem de primitivo, e sua obra não fazia
alarde das cores locais. Já havia escrito várias obras-primas, mas
ainda era conhecido só por pequenos grupos de admiradores, inclusive
no seu país, e seus contos e ensaios circulavam em edições pouco
menos que familiares. A França o tirou da catacumba em que ele
enlanguecia.
Sucesso na França - Depois daquela visita, a revista L'Herne dedicou
a ele um número memorável e Michael Foucault iniciou o livro de
filosofia mais influente da década - Les Mots e les Choses - com um
comentário borgeano. O entusiasmo foi ecumênico: de Le Figaro a Le
Nouvel Observateur, de Les Temps Modernes, de Sartre, a Les Lettres
Françaises, de Aragon. E, como ainda sucede atualmente em assuntos
de cultura, quando a França legislava o resto do mundo obedecia. Os
latino-americanos, os espanhóis, os norte-americanos, os italianos,
os alemães, etc., começaram, na retaguarda dos franceses, a ler
Borges. Assim começou a história que culmina, agora, com as
trombetas e a pompa do centenário.
O Borges que, durante aquela visita a
Paris, resignou-se a conceder uma entrevista (uma entre mil) ao
obscuro jornalista da Radiotelevisão Francesa, que era este escriba,
ainda não era esse Borges público, essa persona de gestos, palavras
e atitudes um tanto estereotipados em que logo se converteria,
obrigado pela fama e para se defender de seus estragos.
Era, contudo, um sensível e tímido
intelectual portenho, apegado às saias da mãe, que não conseguia
entender a crescente curiosidade e admiração que despertava,
sinceramente incomodado pela enxurrada de prêmios, elogios, estudos,
homenagens que lhe caiam em cima, embaraçado com a proliferação de
discípulos e imitadores que encontrava onde quer que fosse. É
difícil saber se ele chegou a acostumar-se com esse papel.
Talvez sim, a julgar pelo desfile
vertiginoso de fotos da exposição de Beaux Arts, nas quais ele é
visto recebendo medalhas e homenagens e subindo a todas as tribunas
para fazer palestras e recitais.
Mas as aparências enganam. O Borges
das fotografias não era ele, e sim, como o Shakespeare de seu
ensaio, uma ilusão, um simulador, alguém que andava pelo mundo
representando Borges e dizendo as coisas que se esperava que Borges
dissesse sobre os labirintos, os tigres, os "compadritos", as facas,
a rosa do futuro de Wells, o marinheiro cego de Stevenson e as Mil e
Uma Noites. A primeira vez que falei com ele, naquela entrevista de
1960 ou 1961 (lembro-me de sua resposta a uma de minhas perguntas -
"O que é a política para você, Borges?" : "Uma das formas do
tédio"), estou seguro de que, pelo menos em algum momento, realmente
falei, me conectei com ele.
Nunca mais voltei a ter essa sensação
nos anos seguintes. Eu o vi muitas vezes, em Londres, Buenos Aires,
Nova York, Lima, e voltei a entrevistá-lo, e até o recebi em minha
casa por várias horas na última vez.
Mas em nenhuma dessas ocasões senti
que conversávamos. Ele já tinha apenas ouvintes, não interlocutores,
e talvez um só ouvinte - que mudava de rosto, de nome e de lugar -
diante do qual ia desfiando um monólogo curioso, interminável, atrás
do qual se havia recolhido ou enterrado para fugir dos demais e até
da realidade, como um de seus personagens. Ele era o homem mais
homenageado do mundo e dava uma tremenda impressão de solidão.
Lucidez - Os franceses o fizeram mais feliz, ou menos
infeliz, tornando-o famoso? Não há meios de saber isso. Mas tudo
indica que, contrariamente ao que poderiam sugerir as atitudes de
sua persona pública, ele carecia de vaidades terrenas. Tinha dúvidas
genuínas sobre a perenidade de sua própria obra e era demasiadamente
lúcido para sentir-se cumulado de reconhecimentos oficiais.
Provavelmente, só teve prazer lendo, pensando e escrevendo; o resto
foi secundário, e ele se prestou a isso graças à boa criação
recebida, salvando muito bem as aparências, embora sem muita
convicção. Por isso, aquela famosa frase que escreveu (ele foi,
entre outras coisas, o melhor escritor de frases de seu tempo) -"Li
muitas coisas e vivi poucas" - o retrata de corpo inteiro.
É certo que, apesar de ter passado os
últimos 20 anos de sua vida em meio a multidões, Borges nunca chegou
a ter consciência cabal da enorme influência de sua obra sobre a
literatura de seu tempo, e ainda menos da revolução que a sua
maneira de escrever significou para a língua castelhana. O estilo de
Borges é inteligente e límpido, de uma concisão matemática, de
adjetivos audazes e idéias insólitas, no qual, como não sobra nem
falta nada, deparamos, a cada passo, com esse mistério inquietante
que é a perfeição.
Contrariando algumas de suas
afirmações pessimistas sobre a incapacidade do espanhol para a
precisão e o matiz, o estilo que ele criou demonstra que a língua
espanhola pode ser tão exata e delicada quanto a francesa, tão
flexível e inovadora como a inglesa. O estilo borgiano é um dos
milagres estéticos do século que termina, um estilo que desinflou a
língua espanhola da elefantíase retórica, da ênfase e da reiteração
que a asfixiavam; que a depurou até quase a anorexia e a obrigou a
ser luminosamente inteligente. (Para encontrar outro prosista tão
inteligente como ele é preciso retroceder até Quevedo, escritor que
Borges amou e do qual fez uma preciosa antologia comentada.) Pois
bem, na prosa de Borges, por excesso de razão e de idéias, de
contenção intelectual, há, também, como na de Quevedo, algo de
desumano. É uma prosa que lhe serviu maravilhosamente para escrever
seus fulgurantes relatos fantásticos, a ourivesaria de seus ensaios
que transmutavam em literatura toda a existência, e seus poemas
arrazoados. Mas com sua prosa seria tão impossível escrever novelas
como com a de T.S. Elliot, outro extraordinário estilista cujo
excesso de inteligência também entremeou sua percepção da vida.
Porque a novela é o território da experiência humana totalizada, da
vida integral, da imperfeição.
Nela se mesclam o intelecto e as
paixões, o conhecimento e o instinto, a sensação e a intuição, a
matéria desigual e poliédrica que as idéias, por si sós, não bastam
para expressar. Por isso, os grandes novelistas nunca são prosadores
perfeitos. Esta é, sem dúvida, a razão da antipatia pertinaz que
Borges sentia pelo gênero novelesco, que definiu, em outra de suas
frases célebres, como "desvario laborioso e empobrecedor".
As brincadeiras e o humor sempre
rondaram seus textos e suas declarações e causaram inúmeros
mal-entendidos. Quem carece de senso de humor não entende Borges.
Ele foi um esteta provocador, na sua juventude. Embora logo depois
tenha-se retratado pelo "equívoco radical" (falava em "equivocación
ultraísta") dos anos de sua mocidade, nunca deixou de levar consigo,
escondido, o insolente vanguardista que se divertia soltando
impertinências. Estranha-me que entre os infinitos livros que foram
publicados sobre ele não tenha aparecido nenhum que reúna uma boa
coleção das impertinências que disse - como chamar Lorca de "um
andaluz profissional", falar do "poeirento Machado", alterar o
título de uma novela de Mallea (Todo Leitor Perecerá) e homenagear
Sábato dizendo que sua obra "pode ser posta em mãos de qualquer um
sem nenhum perigo". Durante a Guerra das Malvinas, disse outra
frase, mais arriscada e não menos divertida: "Esta é a disputa dos
calvos por um pente." São faíscas de humor que mostram gratidão, que
revelam que no interior desse ser "corrompido pela literatura" havia
picardia, malícia, vida.
Leia Jorge Luís Borges
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