Nelson Ascher
A
biblioteca de Babel
Algumas semanas
atrás um amigo me falou que pretendia traduzir um poema composto,
numa língua mais ou menos exótica, por um poeta moderno. Seu
problema era que, embora tivesse se informado sobre o assunto, não
achara nem o texto nem qualquer tradução deste para outros idiomas.
Tomando o que seria seu título em português, obtive, com a ajuda de
um tradutor on line, o do original e, então, usando um mecanismo de
busca, localizei-o na internet. Essa operação, que há dez ou 15 anos
teria envolvido uma correspondência demorada com um especialista
distante, custou-me meia hora.
Entre 1241-42 os
mongóis invadiram a Hungria. A visita, que marcaria o limite
ocidental de sua expansão, foi breve e devastadora. Um clérigo local
redigiu na época, em latim medieval, um poema com 62 estrofes
rimadas de cinco versos cada: "Planctus Destructionis Regni Ungarie
per Tartaros" (Lamento pela Destruição do Reino da Hungria pelos
Tártaros). Como uma das tribos da confederação mongol se chamava "Tata(r)",
seu nome foi assimilado pelos europeus horrorizados a "tartarus",
uma das regiões infernais da mitologia clássica, para designar os
invasores.
Se bem que houvesse
lido o poema em diversas versões, eu nunca vira seu texto latino.
Não que saiba latim, mas com a ajuda de traduções e dicionários
posso "acompanhá-lo". Mais uma vez, foi na internet que o consegui.
E o mesmo ocorreu quando resolvi refazer em nosso vernáculo o poema
mais célebre da segunda metade do século 20, a "Fuga Fúnebre" (Todesfuge,
1948) de Paul Celan. Consultar diferentes traduções, seja para a
nossa, seja para outras línguas, é sempre útil, pois essas fornecem
uma idéia da "maleabilidade" de uma obra, isto é, permitem que o
tradutor veja como e quanto ela pode ser alterada, esticada e/ou
comprimida, deformada enfim, antes que deixe de ser ela mesma. A
pesquisa internáutica rendeu-me, em português, espanhol, inglês,
francês, italiano, russo, turco etc., mais de três dezenas de
"variações" sobre o tema celaniano.
Haroldo de Campos, num ensaio intitulado "Uma Arquitextura do
Barroco", fizera uma espécie de levantamento genealógico de
tendências que, em distintas eras e lugares, se assemelhavam ao
estilo ocidental dos séculos 16 e 17. Um dos extratos que selecionou
para ilustrar o estudo provinha de uma epopéia curta, "Alexandra",
escrita por Lícofron, poeta grego de Alexandria que viveu no século
3 a.C. A heroína é de fato Cassandra, a princesa vidente da casa
real troiana que profetizara a derrota da cidade, e o livro descreve
suas visões, porém narradas por alguém que as entreouvira sem
entendê-las direito.
Estranhamente,
malgrado existirem traduções da epopéia para o francês e espanhol,
não se encontrava no mercado nenhuma feita em versos para um inglês
literário. Será que os anglo-saxões, exímios classicistas, ignoravam
esse poema obscuro? Segundo Paul Auster, não. Em seu esboço
autobiográfico, "A Invenção da Solidão" (The Invention of Solitude,
1982), o americano conta que, por causa de sua amizade com o
tradutor francês de Lícofron, ele também se interessara pelo autor e
descobriu numa biblioteca uma ótima versão inglesa realizada em 1808
por um certo Visconde de Royston. Este, um jovem aristocrata
britânico, a publicara privadamente e morrera em seguida num
naufrágio. Daí que seu trabalho, batizado não de "Alexandra", mas de
"Cassandra", acabasse sendo esquecido por todos, salvo pela internet,
através da qual adquiri, a um preço irrisório, um exemplar
autografado daquela primeira edição limitada.
Peter Kien, o
sinólogo que protagoniza "Auto-de-Fé" (Die Blendung, 1936) de Elias
Canetti, passara, na infância, por uma experiência decisiva: ele se
escondera numa livraria e, depois que todos saíram, ficara ali
sozinho, deliciado e assustado, a noite inteira. Chegando a idade
adulta, seu grande orgulho era possuir a maior biblioteca da cidade.
E, se o assunto é biblioteca, não há como não mencionar Jorge Luis
Borges, o leitor ávido que trabalhara como bibliotecário e, no meio
do caminho de sua vida, ficou cego ou, como ele o expressou no
início de seu "Poema das Dádivas" (em "El Hacedor", 1960): "Ninguém
rebaixe a lágrima ou se afoite/ a condenar tal prova da mestria/ de
Deus que, com magnífica ironia,/ deu-me os livros e, ao mesmo tempo,
a noite."
A biblioteca é um
dos temas favoritos do argentino, e seu conto mais famoso, "A
Biblioteca de Babel", começa com uma frase inesquecível: "O universo
(que outros chamam a Biblioteca) se compõe de um número indefinido e
talvez infinito de galerias hexagonais, com amplos poços de
ventilação, cercados de balaustradas baixíssimas." Os tomos, de
acordo com o autor, contêm todas as combinações possíveis das letras
do alfabeto, de modo que, se algum deles faz sentido numa língua
humana, isso seria apenas acidental. Sua biblioteca, no entanto, é
mais do que a metáfora de um universo caoticamente combinatório e
remete a uma busca desesperadamente otimista de sentido nos
labirintos do acaso.
Os exemplos acima
indicam que, devido à "magnífica ironia" sabe-se lá de quem, a
biblioteca babélica imaginada pelo portenho cego se tornou real. Um
conjunto de obras maior do que aquele abrigado pela Biblioteca do
Congresso, em Washington, está a alguns "cliques" de distância de
quem quer que tenha acesso a um computador conectado à web. Tal qual
o sinólogo de Canetti, somos crianças pernoitando entre as estantes
de uma biblioteca que, por ser virtual, está simultaneamente em toda
parte e em parte alguma.
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