Nauro Machado
Entrevista de Nauro Machado
Maio 2003
Ricardo Leão — Ponta Grossa - PR
Nauro (Diniz) Machado nasceu em São Luís do Maranhão,
no dia 2 de agosto de 1935. Um dos poetas brasileiros mais fecundos
e importantes de todos os tempos, ainda esperando por uma devida
consagração crítica e de público de sua imensa obra, com mais de
trinta títulos até o momento. Nesta entrevista, a maior e uma das
poucas concedida (por ele mesmo considerada a mais importante até
agora), Nauro faz um depoimento nodal, complexo, em que compõe um
quadro amplo de sua visão ímpar da vida e da poesia. Comparado por
alguns críticos a Fernando Pessoa, Nauro possui uma obra realmente
singular, distinta de qualquer poeta contemporâneo, mesmo de sua
geração, por apresentar traços de reflexão existencial angustiada e
violenta que encontra poucas comparações na lírica de língua
portuguesa. Conhecido, traduzido e citado por um não diminuto
círculo de intelectuais (Drummond, Cabral, Cassiano Ricardo, Alfredo
Bosi, Luciana Stegnano Picchio, Fábio Lucas, Ferreira Gullar, entre
muitos outros), em livros de história literária e antologias
internacionais, enciclopédias e dicionários, este solitário poeta
maranhense é um convicto criador, sem concessões ao fácil e ao
midiático em sua poesia. Uma das grandes razões para sua obra não
seja vastamente conhecida é o fato de que seus livros se encontram,
em sua maioria, esgotados. As poucas antologias publicadas e, mais
recentemente, a vigorosa Nau de Urano (2002) — com mais de 800
sonetos de sua obra —, têm sido responsáveis pelo pouco que se
conhece de sua literatura entre os leitores brasileiros. Acompanhe
agora a vigorosa entrevista concedida a Rascunho.
Quais obras e autores, de sua permanente leitura, acreditas serem as
principais influências diretas, que apontam para as grandes
vertentes não apenas temáticas, mas estilísticas de tua poesia?
Por ser em parte um depoimento da verdadeira biografia do homem que
a faz, como você diz ao perguntar não apenas sobre as influências
diretas por mim sofridas na elaboração de uma hipotética Obra
Poética, mas principalmente sobre as vertentes temáticas e
estilísticas que a enformam e desvelam, creio ser mais importante,
para aquilo a que você se propôs, rastrear as coordenadas
psíquico-conteudísticas que me permeiam a simbiose homem-poeta (veja
o poema O parto) nessa verdadeira busca pela palavra a revelar-se de
uma forma que intento pessoal. E a forma, como você sabe, é o fim
coeso e irredutível dessa busca que o homem, quando poeta, empreende
como retorno visionário à sua própria, única e inalienável origem.
Devo dizer-lhe assim, para início de conversa, que aquelas
vertentes, caso sejam poemas aquilo com que sempre me vi e vejo
vivendo na cotidianidade anômala e cinzenta da minha existência
provinciana, deságuam, em forma poética, na pessoa que sou e as
tenta viver e equacionar de maneira menos abjeta que a daquela
vivida na constatação das minhas vísceras, para suprir uma falha ou
fissura ontológica no fundo fraccionado do meu ser; para me situar
nesse espaço sem fundo que sou e perceber o que perdi e sobra
naquilo que ainda tenho ou mereço ter, de acordo com os cálculos das
minhas probabilidades mínimas ou espaços maximamente reduzidos. Daí
o serem, aquelas vertentes, uma queda ininterrupta no vácuo de meu
espírito, uma abissal angústia existenciária buscando a forma real e
única que me dê ao menos a possibilidade de vir à tona do verbo, a
fim de desvelar-me além da hipotética aparência da minha vida, que é
um mistério inapreendido e ainda inacabado como poesia. Poesia que
só é poesia quando traz em si um segredo, como disse Ungaretti em
entrevista concedida a Alfredo Bosi. Um segredo que, no meu caso,
está encerrado no fundo inconsciente da minha "alma cerebral", numa
paisagem ambígua de trevas e luzes, com seus acontecimentos
pretéritos talvez informuláveis pela palavra e que tento trazer,
repito, à tona da minha visualidade de pura emoção verbal, como
emoção pensada, conforme o célebre verso pessoano, e a revelar-se
também através de seus correlatos objetivos, de acordo com a não
menos célebre definição eliotiana. Sobre quais autores e obras se
constituíram numa influência direta da minha poesia e da minha
maneira de viver-lhe o apelo ou chamado existencial, no momento mais
propício e exato para fazê-lo, posso sintetizá-los, numa soma por
exclusão, em apenas três: Netotchka Nezvênova, de Dostoievski,
Poesia e prosa, de Edgar Allan Poe e Morte em Veneza, de Thomas
Mann.
Tua poesia apresenta, como toda grande poesia da lírica moderna
desde Baudelaire, a característica apontada por Hugo Friedrich como
dissonância, sobretudo imagética, possível de ser encontrada na
maioria de teus poemas na forma de insólitos oxymorons. Em quais
pontos concordas e em quais (se é que os há) discordas
essencialmente desta visão? Acreditas estar vinculado a esta
tradição da lírica moderna?
Minha poesia, como você diz, apresenta uma grande dissonância
imagética, se vista sobretudo sobre o foco exaustivo dos seus
oxymorons, como tópico às avessas do meu inerradável pasmo
existencial. Minha lírica, versando sobre o escatológico no seu
duplo sentido e com suas perquirições metafísicas, de abissal
inquinação no âmbito até mesmo lingüístico do homem que a faz, está
vinculada à tradição lírica moderna, transcendendo a simples
compreensão de uma elementaridade vocabular simplesmente
confessional (no seu termo mais amplo) para ater-se às culminâncias
de um sistema lingüístico epistemologicamente interativo e em torno
do qual giram, como estrelas (ainda que sujas), as galáxias de
outros mundos e universos. O sentido dessa lírica desenreda um fio
narrativo infenso a qualquer enredo fundado pela codificação
mecanicista do fato consensual e público. Penhora do divino na
catarse humanitária da dor, o poema lírico, como o vejo e faço,
pertence a uma categoria inclassificável, além de qualquer dor
comprometida simplesmente com o humano enquanto diminuição
associativa do simples e estéril sentimento, pertencendo, pois, à
categoria do salto teológico indispensável para que o eterno possa
revelar-se, no plano humano, na sua condição de aposta feita também
por um jogo a não abolir jamais o acaso. Assim, por ser uma arte
anacorética, como a definiu Been, a lírica potencializa o incurso
individualista no território indiviso de suas fronteiras, sem o
arrimo de qualquer utopia de salvação coletiva capaz de validar-lhe
— ou dele inferir — qualquer utilidade consentudinária com as
estruturas sociais vigentes. Só, iniludivelmente só, diante do
eu-próprio que lhe individualiza o ser, moldando-lhe os espaços, e
dos seres que lhe emblematizam a objetividade duvidosa ainda que
real dos outros seres, o lírico não pode constituir-se ou arrimar-se
no simples apêndice supurado no corpo textual da natureza e do
universo. "Sou um homem só/um só inferno", nos ensina o verso sóbrio
e dorido de Quasimodo.
Em um primeiro contato com tua poesia, tem-se a tendência,
profundamente relativa e mesmo equivocada, de tê-la como de difícil
entendimento e até hermética. Isto me lembra a passagem em que
Northrop Frye, o grande crítico americano, em sua obra Anatomia da
crítica, particularmente na Introdução polêmica, assinala a
preocupação que muitos poetas ou subliteratos têm em tornar suas
obras comunicáveis, tentando assim facilitar, de modo expresso, o
diálogo (como é possível medi-lo?) entre leitor e obra e,
porventura, o autor. Contudo, Frye alerta que esta preocupação
sempre traz consigo o risco de cairmos em níveis subliterários, tais
como a prosa versificada ou simplesmente a fala métrica, destituída
de qualquer poesia, entretanto largamente confundida com o fenômeno
poético, como sucede atualmente, na poesia brasileira. Uma das
conseqüências deste fenômeno é o fato de gerar-se uma panacéia
crítica que culmina em falsas celebridades e, outra, o surgimento no
meio literário, de acordo com Octavio Paz, de hábeis construtores de
versos e artefatos literários, a exemplo dos árcades e parnasianos,
mas não de legítimos poetas, aqueles que realmente teriam algo a
dizer. Contudo, voltando ao primeiro ponto da questão, Baudelaire
afirma que, quanto menos um poeta é compreendido, maior é sua
glória. Como te posicionas diante deste quadro?
Sempre escrevi sabendo que um único verso traz consigo uma carga de
experiências vivenciadas no âmbito dos acontecimentos e dos seres.
Não estou evidentemente falando do poema como um produto do meio ou
receptador somente das correntes migratórias levadas ou trazidas ao
poema pela mais-valia ou menor-valor de um econômico temporal:
todos sabemos que o radicalismo da maior hermeticidade pressupõe, em
regiões mais fundas que a do simplório mais simples, a argamassa e
as pulsões até mesmo de projetos políticos que ao poeta cabe
testemunha e viver. Um poema de Paul Célan, por exemplo, chega por
vezes (ou quase sempre?) a alcançar a dimensão mais abrangente de um
fazer social: seu hermetismo, como já dito algumas vezes, faz-se
através da negação e da negação da negação. Portanto, como dialética
da própria existência humana. E se assim é, como não haverá o poeta
medianamente culto de fazer-se pelo acúmulo existenciário do em si
vivido? Gostaria, pois, de dirimir alguns equívocos que a fazem ser
vista como fruto apenas da história particular do homem que me
individualiza psicologicamente, o que tem induzido algumas pessoas
ao erro de vê-la como "metaforização hermética" de problemas
insistentemente revoluteando em torno de um insondável e
informulável centro. Nunca fui um poeta criptográfico, como já
disseram alguns, pois o hermetismo jamais foi por mim cultivado como
um contra-ponto à falha de um real não aceito ou resolvido
existencialmente através de uma visão defeituosa e redutora das
coisas, e nem tampouco para atingir, pelo acréscimo de enxertos
obscuros, uma desejada supra-realidade sensível que poderia, à
maneira de Rimbaud, implantar minhas talvez monstruosas verrugas no
terreno árido do meu Parto ininterruptamente laborioso. É inegável
que existe em mim uma imensa carga inconsciente de temas obsessivos
e que tornar esse fundo obscuro em matéria objetiva a que o verbo
insufla, como necessidade eu diria agônica, a forma particular do
criador que lhe dá extensão e vida, é a tarefa maior e talvez
impossível de quantos têm por fim, como eu, a realização final de um
poema. Finalizando: pelo fato de minha poesia abordar certas zonas
profundas de uma experiência particular, ela se reveste de uma
radicalização metafórica a que falta por vezes a normatividade dos
conceitos generalizantes. Embora não elitista, ela nunca chegará a
ser compreendida verdadeiramente por muitos. O poeta que a faz e que
a vive (ouso dizê-lo) é, não obstante, como tenho observado e
sentido, apreciado ou mesmo amado por camadas significativas do
nosso povo.
Uma questão que intriga os teóricos da literatura são as forças que
concorrem para o ato criador. Sabe-se que, desde o ensaio sobre o
espírito da tragédia, de Nietzsche, o ato criador tem sido dividido
em duas categorias: a apolínea e a dionisíaca. A visão do poeta
apolíneo, mestre absoluto da engenharia poética, foi difundida pela
modernidade desde a falência do mito do artista inspirado, possesso,
porta-voz de forças misteriosas e, no lugar dele, surge o poeta que
trava uma luta interna e eterna por transformar a matéria-prima da
poesia, a linguagem, em obra de arte, cujo valor estético reside,
talvez, em si mesma. Por outro lado, não se nega que a inspiração
interfere de modo intrínseco, direta ou indiretamente, no ato
criador. O que achas de tudo isto?
Fritz Teixeira de Salles, que tanta falta faz à crítica de poesia
hoje feita no Brasil, tocou com certeira visão analítica o corpus
aberto da minha matéria verbal, ao dizer, referindo-se ao meu livro
A antibiótica nomenclatura do inferno (1977), que "sua (minha)
poesia é uma encruzilhada de dois caminhos do mundo ocidental: o
apolíneo (no seu classicismo formal e vigoroso) e o dionisíaco (no
sentido existencial da tragédia). Nauro Machado oscila e vacila
entre Homero e Arquíloco, os dois caminhos do ontem que fabricam o
hoje. Com sua sensibilidade algo brutal, num erotismo selvagem de
poderosa fluidez sintática, a poesia de Nauro Machado sofre na
alegria do sexo e vive na dor de viver". A título de informação,
devo dizer-lhe que um dos livros que mais me influenciaram na minha
longínqua juventude foi justamente A origem da tragédia proveniente
do espírito da música, o que me levou a ler quase toda a obra de
Nietzsche publicada em língua portuguesa, e que ponho ao lado da de
Heidegger, filósofo-poeta que me entreabriu com seus insights o mais
lato pasmo-pânico-existencial necessário à intuição majestática da
vida como mistério. De fato: na conciliação desses dois extremos, o
apolíneo e o dionisíaco, é que vivo minha existência de
artista-homem dividido entre o cerebral (forma) e o instintivamente
desmesurado e anômalo (conteúdo), tentando unir a metodologia
poética de Poe à inspiração sem limites do espírito trágico que me
impulsiona e fundamenta o ser dividido que sou. Mas a verdade é que
nenhum consolo ou paz me arrima nesse percurso intuído e revelado
através da nadificação do Ser pela linguagem como presença
ontológica-sensorial do poema.
O que achas que impede a larga difusão de tua obra a todos os
recantos deste país? Por que aparentemente se ergue uma barreira de
resistência e silêncio em torno dela? Ou esta barreira não existe, é
apenas fruto de nossa incapacidade atávica ou crítica de julgar sem
etnocentrismo ou preconceito?
Não creio sinceramente que haja qualquer impedimento à difusão da
minha poesia no Brasil ou que exista tampouco algum propósito
deliberado em fazê-la desconhecida do grande público, tornando-a
vítima propiciatória de uma conspiração do silêncio. Não sei também
se essa omissão é apenas fruto do que você chama de "incapacidade
atávica ou crítica de julgar sem etnocentrismo ou preconceito",
levantando a suspeita de isso se verificar pela minha situação de
insularidade nordestina, preso a uma ilha esquecida, e sem vocação
nenhuma para a sociabilidade literária de grupo ou igreja. O certo é
que ela, talvez também por minha exclusiva culpa, continua reduzida
a um número limitado de leitores, ocupando um espaço geográfico a
não extrapolar os estreitos limites de minha província natal. O que
não me impede de ser conhecido pelos principais poetas brasileiros
contemporâneos e daqueles críticos que respeito como insuspeitados
homens de honorabilidade mental. Aliás, devo dizer-lhe que não tenho
desejo algum em fazer-me chegar como poeta ao ominoso
leitor-telespectador de hoje, ao qual oponho um irredutível nojo
pessoal a não compactuar com a chacrinagem trumbiqueira de uma
espúria comunicação humana. Vez por outra, para minha grande alegria
ou forma de compensação humana, essa situação de silêncio é quebrada
por alguma voz de além-mar, como a que recentemente me chegou
através das palavras de Luciana Stegnano Pichio (autora do livro
Storia della letteratura brasiliana), com o recente lançamento do
meu livro Nau de Urano, uma antologia reunindo oitocentas e seis
peças sonetísticas. Disse-me ela: "Sua poesia é áspera e bela,
profunda e dorida. Corroborando Adonias Filho, eu diria: um dos
grandes poetas brasileiros de todos os tempos". Continuo, pois,
cumprindo minha sina de solitário poeta maranhense, conforme a exata
visão crítica que de mim teve José Guilherme Merquior.
Há pessoas que classificam tua poesia como "assustadora" e "violenta
demais", apesar de "instigante". Algumas, de sensibilidade mais
dócil, recusam-se a lê-la. O que achas disto?
Seria de bom alvitre saber se essa pretensa violência da minha
poesia possui uma força expressiva de valoração estética capaz de
validar-lhe o produto final e em que contexto se move essa violência
para uma possível aferição como obra artística. Sei que de fato a
minha poesia é violenta, tanto em suas metáforas como no uso
exagerado de seus vocábulos corporais, apresentando ainda um
permanente e azedo clima de "guerra na Indochina/ e na alma também/
guerra na oliveira/ na empregada negra/ e no vira-lata/ que a
criança acarinha/ com mão de granada". Antônio Olinto, ainda nos
idos de 1960, publicava na sua coluna Porta de Livraria, do jornal O
Globo, um artigo intitulado A violência de uma poesia mansa,
enfatizando que "de nenhum poeta sei no mundo de hoje que tenha
violência mais autêntica que a desse maranhense chamado Nauro
Machado, e que é para mim o ápice da poesia brasileira pós Jorge de
Lima". E em um comentário feito sobre a poesia brasileira no ano de
1972: "Há, em Nauro Machado, um satanismo que faz pensar no poeta
inglês Francis Thompson e que produz, no maranhense de hoje, um tipo
de poesia desesperada de que não temos outra igual". E também a
suave Henriqueta Lisboa, assim se expressou sobre ela: "O teor de
sua poesia é de violência, tanto maior ao aproximar-se do plano
metafísico, em angustiado perquirir a que a lógica não atende, pelo
afã de captar o inefável através de uma linguagem sempre mais dura e
amarga". Sei também que a minha poesia tem uma violência de status
metafísico, caso possa parodiar o Mesfistófeles do Fausto
thommasmanniano ao dizer que a mediocridade não possui status
teológico. Assim, no plano teológico da negação divina — se for isso
possível — ou na vivência intuída como forma positiva do
transcendente, sei que a violência poética, quando introvertida no
homem que a pensa em versos ou que por reflexo social a vive e sofre
no seu dia-a-dia, tem se constituído, ao longo dos séculos, como
conteúdo temático e até mesmo de estilhaçamento estrutural do
poema. Estou a lembrar-me agora do Paraíso perdido, de John Milton,
na vociferação luciferina contra a violência divina que o expulsara
de um plácido e perfeito Verbo, obrigando-o àquela miserabilidade
imprecatória, fruto do orgulho, ao dizer que preferia ser o primeiro
no inferno ao último nos céus. Estou a lembrar-me também daquele
Dante luciferino, banido para sempre da sua Florença celestial, como
já o fora na terra do amor sepulcral à sua Beatriz perdida. Este
tópico, aparentemente supérfluo, é necessário explicar-lhe, ainda
que de modo imperfeito, como nascem meus versos violentos na
substância que lhes estrutura o ser fenomenológico como encarnação
de um Verbo a ser visto e (a)palpado: esse Lúcifer miltoniano me
influenciou também, ou até mais, quando transposto para um
personagem cinematográfico tirado do romance O lobo do mar, escrito
por Jack London, também ele um autor luciferino. Neste filme, o
personagem Lobo Larsen, no caminho da completa cegueira, assim como
Milton, quando escrevia seu Paraíso (duplamente perdido na terra em
que viveu e nos olhos que lhe negaram vê-lo), cita aqueles versos
como uma justificativa para assenhorear-se da sua maldade
intrínseca, como atributo sonoro-estético da sua existência. Digo
sonoro, por servir-me também da violência maldosa dos meus versos,
tentando justificar-me, embora de maneira subalterna e inferior,
através da minha poesia. Meus atos humanos diários se fazem pela
imagem vivida e vívida da minha poesia. Já escrevi centenas de
versos em salas cinematográficas, como aquele poema Reinado, que é o
reino da minha principesca vida imaginária e onde poderia dizer,
como nos versos de Lucy Teixeira (poetisa maranhense), que tanto
admiro: "Sou o tirano da minha propriedade". Naquele poema, digo
logo no seu início: "Para viver noutro lugar/ e de fome indiferente/
é muito melhor ficar/ nos pobres subúrbios da mente". Minha
violência é mais à maneira sousandradina, de um Sousândrade
inferior, é claro, mas vítima também de uma sociedade castradora,
igual à daquela "sociedade celeste", tipicamente miltoniana, contra
a qual me ergo e volto também na violência contida dos meus versos.
Harold Bloom acredita que a existência de um poeta forte (strong
poet), segundo sua terminologia de fundo psicanalítico, deve-se
sobretudo à superação dos modelos que o inspiraram, chegando mesmo a
devorá-los, transfigurando-os, através deles, em outro. Supondo que
exista, ou não exista, uma tradição anterior à tua obra, à qual ela
se vincularia ou não, uma vez que não é de acreditar que, tendo-a
ultrapassado, não podemos reconhecê-la mais no interior de teus
versos? Que pensas disso?
Não creio que minha poesia tenha superado, como você diz,
devorando-os mesmo, os vários modelos que a inspiraram, pois
considero a tradição indispensável para o desenvolvimento de novos
modelos culturais, como produto expressivo da civilização. Nunca
procurei me enquadrar em nenhuma categoria gradual de poeta maior ou
menor, mais forte ou mais fraco, dentro de conceitos que julgo
dispensáveis e de nenhum significado para o ato particular de fazer
poesia, assim como não creio que o poeta faça seu poema para
encaixá-lo numa teoria adredemente preparada para recebê-lo. O
poema, ao contrário do que disseram Poe, Valéry e alguns outros,
não é uma fórmula matemática a ser resolvida friamente numa
"psicologia da composição" à maneira cabralina de fazer versos como
artefatos de uma produção exclusivamente mental, pois, embora
podendo prever até mesmo a sua disposição final na página em branco
enquanto o vai mentalizando como forma acolhedora de pensamentos
expressivos pessoais, o poeta precisa daquelas emoções que são
particularidades suas, a serem recriadas pelo homem-criador que as
consiga viver para serem transferidas e mostradas no corpo
imaterial, conquanto vivo, do poema.
Em que medida a crítica literária contribui para que uma obra seja
aceita ou não? Existe uma função para a crítica, ou ela é apenas uma
arte de muletas, ou ainda, o marketing da obra de arte, porém, em
muitos casos, descartável, porquanto atrasada e/ou equivocada? A
poesia necessita da crítica literária? Se sim, de que forma?
A crítica, muitas vezes difícil, pode transformar-se num exercício
de hermenêutica autotélica, divorciada da sua finalidade precípua,
que é a de revelar o poema como um produto alheio, com suas
características próprias e indivisas, e não de revelar,
re-velando-se, os conhecimentos idiossincráticos e às vezes anormais
de quem dela se serve para obscurecer ainda mais o que em si já é
muitas vezes fechado, por querer dar um "sentido mais alto às
palavras da tribo".
Uma das coisas que impressionam em tua poesia é o fôlego, uma vez
que já superas o número fantástico de mais de trinta livros de
poemas publicados ao longo de tua vida, e com tanta qualidade. É
impressionante. Prova de um apetite poético voraz, insaciável
talvez, que deve elevá-lo, inevitavelmente, à condição de recordista
de publicações na lírica de língua portuguesa, talvez universal.
Queres publicar até o último de teus dias? Quantos livros inéditos
de poemas ainda tens? Trabalhas em algum neste momento?
Minha lírica — com trinta e um títulos já publicados, sem incluir
suas duas grandes antologias, a primeira delas com poemas reunidos
sob a responsabilidade crítica de Nelly Novais Coelho, contendo
quase quinhentas páginas, e a que foi lançada pela Editora Imago, em
convênio com a Fundação Biblioteca Nacional e Universidade de Mogi
das Cruzes, com aproximadamente quatrocentas páginas, além de uma
outra bem menor, feita pela escritora-poeta Arlete Nogueira da Cruz,
intitulada Jardim de infância, para uso dos universitários
maranhenses — é realmente muito vasta, movendo-se no círculo de um
compasso poético distendido anormalmente, se visto sob a ótica
redutora de alguns poetas de parca criatividade. Não vou citar, por
redundante, os títulos de todos os livros que a compõem,
limitando-me a relacionar os daqueles inéditos e que já se encontram
à espera de alguma editora que os queira publicar: A rocha e a
rosca, um único poema composto de cerca de mil e quinhentos versos
em redondilha maior; Chumbo e rugas do trigésimo; Pão maligno com
miolo de rosas; e um imenso poe-ma, ainda em andamento e sem título
definitivo, já tendo aproximadamente quatro mil versos, todos em
decassílabos. Escrevo, sem dúvida, por uma necessidade de querer
fazer-me presença viva para os outros, como uma forma pensante de
existir e por saber que a poesia é, para mim, um caso de vida ou
morte, como já disse alhures, e "não um simples pretexto para
malabarismos vazios ou teoremas que digam respeito a um modismo
falho e de autenticidade duvidosa".
Concordas com a visão adotada pela crítica especializada, segundo a
qual tua obra se filia também ao esforço estetizante da geração de
45? Ou tua formação deve-se exclusivamente a um esforço pessoal,
livre dos influxos temporais de uma geração ou de qualquer "ismo" de
natureza estética? Acreditas que é possível transcender, de acordo
com Octavio Paz, o estilo meramente histórico, projetando sua obra
para além de sua época?
Apesar da minha leitura inicial e constante de Bocage e Camões,
ainda nos meus treze anos de idade, seguida, logo após, de Antero de
Quental, Raimundo Correia, Alphonsus de Guimaraens (e alguns
outros), até chegar aos simbolistas franceses, quando
incipientemente comecei a escrever por uma necessidade que era
impulso compensatório para a perda física de meu pai, a purgar-se
também através de uma pungente e auto-destrutiva solidão alcoólica,
não posso, em sã consciência, dizer que a geração de 45 influenciou
minha obra sonetística — principal vetor dos seus pressupostos
formais-estéticos. Minha poesia, posterior à daqueles anos iniciais,
fez-se influenciar, sobretudo, por paradoxal que seja, pela leitura
apaixonada dos grandes romancistas mundiais, como Dostoievski, com
sua angústia metafísica e dolorosa consciência do mal, e Thomas
Mann, pelo seu incurso nos domínios sombrios da morte e da arte.
Minha poesia, seus sonetos que o digam, foge por completo aos
cânones daquela geração, que reputo contudo importante pela
expressividade de alguns nomes que a compõem.
Há em tua obra uma quantidade notável de poemas sumulares, de
métrica curta. Alguns, curtíssimos. Chegaste mesmo a publicar um
livro apenas de peque-nos poemas (Funil do ser), no qual expressas a
síntese poética em sua expressão lapidar. Isto chega a lembrar, sem
sugerir influência ou algo similar, a obra de Emily Dickinson,
evidentemente com distinções temáticas e vocabulares pontuais e
díspares. Acreditas que, no futuro, farão uma aproximação desta
parte de tua obra com a da grande poetisa americana, ou esta
aproximação não é válida? Em qualquer resposta, por quê?
Forma de uma técnica redutora a visar, no entanto, a largueza sonora
de um pensamento a não se exaurir no verso, encapsulando o instante
como um flagrante da eternidade, a forma do poema curto,
excetuando-se a do soneto, é a que mais me atrai e obsessiona no meu
continuum ofício existencial. Há alguns anos, Frederick Williams,
autor do livro Sousândrade: vida e obra, tese de doutoramento
defendida em universidade norte-americana, escreveu-me dizendo do
seu interesse em verter para o inglês, num único volume, todos os
meus poemas curtos até então vindos a lume. Ele os relacionou para
mim, classificando-os de acordo com o número de suas estrofes, que
se reduzem às vezes a apenas um verso. Depois dessa carta, fiz
publicar o livro Funil do ser (1995), que apresenta também a
particularidade de em suas 126 peças não mostrar uma única rima.
Estou também, no momento, como disse acima, concluindo um novo livro
(já está pronto) exclusivamente de poemas curtos. Creio que, com
ele, dou um passo adiante na minha maneira de realizar esse
"afunilamento" formal e existencial, como introjeção metafísica de
uma dor sonora na sua inseparabilidade entre forma e conteúdo.
Quanto à aproximação, em nível de linguagem, influência ou algo
similar com a lírica de Emily Dickinson, o que para mim seria
honroso, ela praticamente inexiste, exceto pelo fato biográfico de
aquela poeta haver vivido como reclusa em sua cidade natal e de eu
cumprir na minha ainda provinciana São Luís um destino solitário,
conquanto de menor, muito menor grandeza em todos os seus níveis.
Como a perda de teu pai impulsionou-te à poesia? Ou este impulso já
existia, independentemente de qualquer perda? Como surgiram os teus
primeiros poemas? Já ensaiavas versos quando criança, ou esta
vocação confirmou-se após uma infinidade de leituras?
Se o que existe na feitura do poema é um encontro como aquilo ou
aquelas coisas que estão latentes e como que incluídas já na sua
própria busca, e como "falhei de tudo o pouco que ainda pude",
sempre associei o impulso poético à perda que lhe acompanha o
ilusório ganho textual. E se o poeta é também um "fingidor", aí me
incluindo por exclusão de outras máscaras, minha poesia começou pelo
entendimento de que a ela competiria a vida, o que é falso, por
habitá-la o silêncio de uma inabitável solidão. Acredito por vezes,
e não como certeza, que a perda física de meu pai fez aflorar o
impulso poético que em mim já existia latente, antes daquela dor que
me fez órfão para sempre do que em mim — sobrevivendo em mim — eu
posso até hoje sou.
Meses atrás, o poeta Alexei Bueno — com o qual manténs, fora o rigor
extremamente clássico, algumas afinidades líricas — iniciou uma
polêmica muito produtiva e interessante sobre a predominância de uma
determinada mentalidade literária que tem prejudicado a devida
apreciação de obras de poetas como você, aos quais Bueno se soma e
solidariza. Acreditas que estamos diante de uma diatribe importante,
diante do quadro lírico que a literatura apresenta hoje?
Alexei Bueno, pelo que me tem chegado por via indireta, visto eu não
ler, pois aqui não chegam os jornais em que ele vem travando uma
polêmica contra alguns corifeus da poesia brasileira contemporânea,
fez-se arauto de uma poesia na qual eu gostaria de me incluir, por
exclusão deliberada e consciente de um grupo que tomou conta de
todos os espaços divulgatórios existentes, graças ao poder dos
círculos acadêmicos que lhes respaldam os anêmicos e inconsistentes
poemas. Aliás, Pedro Lyra, autor da antologia intitulada
Sincretismo: geração 60, foi combatido pelos chanssoniers que nela
não foram incluídos, e a quem ele depois fulminou em dois artigos,
se me não engano, publicados neste Suplemento Literário.
Acreditas que, se não morasses em São Luís, a tua obra não seria a
mesma? As admoestações que viveste na capital maranhense
contribuíram de modo significativo para a construção de teus
principais temas?
Costumo dizer que sou um poeta do tempo das diligências, onde as
coisas são lentas e os espaços reduzidos mais imensos, se vistos
pelas lentes da interioridade. E é nesse miolo interior, à
semelhança de um funil onde desemboca meu ser, que venho, numa
relação permanente de amor-ódio, reconstruindo em quase todos os
meus poemas, de maneira transfigurada, as ruínas dos objetos e das
coisas, das lembranças provincianas, dos sobrados decadentes e/ou
arruinados, com sua atmosfera de mazelas físicas e espirituais, com
seus becos tortuosos e a disformidade anômala de seus mendigos, tudo
que está parado ou se move nessa minha cidade-berço, onde os mortos
é que estão nascendo e os vivos apodrecem reais e como póstumos. Não
canto a cidade de São Luís à maneira sentimental-escatológica de um
Gullar, do modo ufânico-lírico como o fez Tribuzi, ou de forma
irônica e mordaz, embora de grande incurso fenomenológico na sua
temporalidade de grande beleza histórica, como José Chagas o faz.
Tenho um livro inteiro, lido apenas por pouquíssimas pessoas, que
demonstra essa minha relação sadomasoquista com a Ilha que é vista
por mim, até mesmo em suas noites, como uma lamparina na aurora.
Escrevo meus versos, vivendo em São Luís na sua máscara-esfíngica de
mãe carrasca ou musa sublime. A verdade é que venho tecendo, livro
após livro, a biografia metafísica de uma épica às avessas,
infernalizada dentro, por um poeta ancorado sem qualquer laivo de
grandeza entre as muralhas de uma Tróia provinciana. Uma Tróia a
invadir minha obra inteira, fazendo-se presença física obrigatória e
pertinaz, amalgamada pela metaforização transfiguradora de seus
espaços e da sua história temporal. Minha poesia, para quem se dê ao
trabalho de rastrear-lhe as in-fluências formais/conteudísticas,
está impregnada até mesmo pelas anomalias deste espaço a estender-se
sobretudo entre os rios Anil e Bacanga e cujo coração se faz sentir
e bater na Praia Grande. Se não cheguei ao extremo de estender as
mãos para pedir esmola "na mesma língua em que a pediu Camões",
conforme o célebre verso junqueirano, com certeza tenho estendido
alguns dedos. E dedos sem anéis, acostumados apenas e algumas vezes
à imprecação do dedo médio, naquela maneira blasfematória de quem
por Dante foi jogado nos últimos círculos do inferno. Posso
tranqüilamente dizer-lhe que conheço e vivi os versos do meu poema
Ofício, cujo título original era Fundação SESP. Mas a verdade é que
de alguns anos para cá, sobretudo a partir do governo da minha
querida amiga, senadora Roseana Sarney Murad, ganhei o
reconhecimento oficial dos meus conterrâneos, sendo até mesmo nome
de praça e tema da Escola de Samba Turma do Quinto, que ganhou o
carnaval de São Luís no ano passado, com um enredo baseado em minha
vida e poesia.
Desejando ser útil aos leitores e poetas neófitos, lembro-me que, há
anos, mais de quinze, recebi um conselho seu de natureza literária.
Disseste, naquela ocasião, isto: "Leia muito. Escreva muito.
Pesquise muito". O que dirias aos que têm pretensões de ser poetas,
conhecer as leis que regem esta arte da palavra, no intuito de se
tornar donos de uma grande obra, como a tua?
Diria novamente o que você, com a generosidade que lhe é própria,
chamou de conselho de natureza literária, acrescentando apenas,
àquela tríplice súmula, com a experiência de quem chega quase ao
final do seu malogrado projeto poético, para esse futuro e
hipotético poeta jamais procurar ver-se no espelho dos outros,
aceitando com humildade o seu próprio e intransferível rosto e a
subseqüente solidão que lhe advirá com a certeza de que a poesia,
desde que imagem sua, reflexo somente do seu rosto, ainda que
disforme, é uma presença mais viva e necessária, porque verdadeira,
do que o seu próprio corpo. Veja, poeta: eu faço parte de uma
geração maranhense que já ultrapassou a metade de seu tempo de vida
e que ainda continua escrevendo como única e possível maneira de
testemunhar seu tempo e suas individualidades. Chagas faz uma poesia
diferente da de Gullar, que faz uma poesia diferente da de Tribuzi,
que fez uma poesia diferente da dos dois, que fizeram e fazem uma
poesia diferente da minha, que a faço diferente da deles três. Pois,
como disse e. e. cummings: "O país estritamente ilimitável de cada
artista é ele mesmo. Um artista que trai esse país se suicidou; e
nem mesmo um bom advogado conseguirá matar esse morto. Mas um ser
humano que é fiel a si mesmo — qualquer que seja esse si mesmo — é
imortal. E todas as bombas atômicas de todos os anti-artistas do
espaço-tempo não civilizarão jamais a imortalidade".
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