Nelson de Oliveira
Demonologia, de Rick Moody
Os demônios estão à solta. Sempre estiveram. Nos quatro cantos do
planeta, do extremo Ocidente ao extremo Oriente. Então por que só os
maus espíritos dos ianques parecem mais presentes e perturbadores do
que os demais? A resposta é simples: tecnologia e poder econômico.
Demônio movido a dólar e a energia atômica tem mais potencial, é
muito mais competitivo do que, por exemplo, saci-pererê ou
mula-sem-cabeça. Outra característica diabólica dos demônios
norte-americanos é a sua ambigüidade, a sua propensão a provocar ao
mesmo tempo o riso e a comoção. Parecem todos espectros tragicômicos
retirados da série Os Simpsons. Rick Moody, o premiado escritor
nova-iorquino autor dos romances América púrpura e Tempestade de
gelo (levado às telas pelo diretor Ang Lee), sabe muito bem disso.
Tanto que reuniu na sua nova coletânea treze narrativas sobre a
perturbadora simbiose mantida entre as pessoas de bem e os espíritos
malignos que as rodeiam.
Os norte-americanos são de fato criaturas singularíssimas. Não todos
eles, é claro — não devemos generalizar. Mas ao menos a grande
maioria dos que vivem nas metrópoles. Vários pensadores
contemporâneos nossos, de Derrida a Umberto Eco, já escreveram, com
indisfarçada perplexidade, sobre a inclinação desse povo para a
megalomania. Das superproduções da Broadway e de Hollywood à
expansão da Wal-Mart e da Diet Coke, da frívola excitação da
Disneylandia e da música pop à intervenção no Vietnã e no Iraque,
tudo é grandioso, tudo é cafona, tudo é demência. Lá os matizes do
cotidiano estão reduzidos a gagues de sitcoms, desenhos animados e
HQs. O que vale a pena na Demonologia de Rick Moody é a fiel
representação desse estado de coisas, do insuperável espírito kitsch
de seus pares endemoninhados. A vida no alto capitalismo é um sonho
mal-assombrado: um pesadelo movido pelas forças do consumismo.
Sejam elas protagonistas, antagonistas ou simples figurantes, todas
as personagens desse prosador, ganhador do prêmio Editor’s Choice de
1991, trazem certos traços de indiscutível esquizofrenia. O universo
de Rick Moody é povoado por jovens usando uma máscara de galinha
para promover o balde de coxinhas do Frango Quente, crianças
preocupadas com seu teste de QI, mães solitárias em meio a tiroteios
no MacDonalds, cerimônias de casamento com requintes de parque
temático, donas de casa interessadas em saber tudo sobre lhamas,
proprietários de restaurante que fazem experiências científicas com
avestruzes, festas de Halloween cheias de Pocahontas e pequenos
tubarões, donos de galeria de arte moderna trancados do lado de fora
no dia da inauguração, sem-tetos com aspecto de espantalho que no
entanto se movem como se fossem Nijinsky no palco, gente desse tipo.
Mas há algo de curioso no estilo desses contos. Todos os narradores
preservam sempre o mesmo tom na sua elocução: são minuciosos e
ponderados, mas também muito irônicos, ainda que essa ironia traduza
menos o esclarecimento e mais a ingenuidade de certas figuras.
Em Rick Moody revezam-se democraticamente o conservador e o
transgressor-moderado. O primeiro emprega com talento recursos já
batidos, até piegas, para comover o leitor. Nesse sentido ele se
aproxima dos profissionais que mantêm vivo no cinema e na tevê o
gosto pela lágrima discreta e comovente dos pequenos dramas
familiares. No conto que abre o livro e no último, por exemplo,
diferentes protagonistas caminham sobre a sombra saudosa da irmã
morta. E esse toque de emotividade pode ser encontrado em todos os
contos. Ele se mistura consigo mesmo na trama das sentenças longas,
com inúmeras orações subordinadas, todas carregadas de referências à
sociedade de consumo. São marcas de detergentes, de comidas
congeladas, de refrigerantes e de canais de tevê por assinatura,
cada qual usada, à maneira pop, como impressão digital do leviatã de
infinitos dedos chamado american way of life.
Já o lado transgressor-moderado de Rick Moody tenta retirar o leitor
do transe confortável inerente a toda narrativa realista, como no
conto Wilkie Fahnstock: a caixa de fitas, feito apenas de anotações
copiadas de velhas fitas cassetes, ou no divertido Livros de valor
excepcional: catálogo número 13, feito de mini-resenhas de obras
excêntricas. Essa convivência pacífica entre os tons leves tanto da
tradição quanto da ruptura parece ser a característica principal da
fatia mais interessante da nova geração de prosadores
norte-americanos. A essa safra pertencem outras demonologias, outras
assombrações da cultura pop, como as de Dave Eggers, Chuck Palahniuk,
David Foster Wallace, Jonathan Lethem, A. M. Homes e Ben Greenman.
Demonologia, de Rick Moody
Editora Rocco, 288 páginas
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