Nelson de Oliveira
Inescritos, de Luci Collin
Todas as vezes que me pego pensando nos poetas e nos prosadores mais
arrojados dos últimos tempos, acabo chegando sempre ao mesmo ponto
geográfico. Não tem jeito, o país é gigantesco, mas as reflexões
sobre a linha mais inquietante da literatura brasileira sempre me
conduzem ao mesmo lugar. Não, não se trata de São Paulo ou do Rio de
Janeiro. Tampouco de Porto Alegre. Refiro-me a Curitiba. Se o
assunto é talento e transgressão, detalhes de determinadas ruas e de
certas praças ressurgem cheios de cor e brilho, trazidos pela livre
associação de idéias. Mas detalhes de qual Curitiba? Há a Curitiba
de Paulo Leminski e a de Dalton Trevisan, dois de seus filhotes mais
célebres, que revolucionaram a poesia e a prosa. Mas há também a
Curitiba menos conhecida, porém tão revolucionária quanto, de Jamil
Snege, Valêncio Xavier, Manoel Carlos Karam, Fabio Campana, Wilson
Bueno e Luci Collin.
Do time de autores a que me referi Luci Collin é a mais jovem.
Nascida em 1964, tradutora, poeta e prosadora, graduada em Piano,
Letras e Percussão, doutora em Letras pela USP e professora de
Literaturas de Língua Inglesa na UFPR, Luci já publicou cinco livros
de poemas e três de contos, além de ter participado de diversas
antologias no Brasil e no exterior. Apesar desse currículo exemplar,
não é despropositado afirmar que a sua literatura ainda está longe
de ser conhecida e reconhecida não só pelo merecido número de
leitores como também pelos seus pares. Aí está a nova safra de
autoras brasileiras: ao lado da mineira Maria Esther Maciel e da
campineira Cida Sepúlveda, Luci acaba de provar que é uma das
ficcionistas mais originais em atividade hoje no país. E a prova são
esses Inescritos, coletânea que acaba de sair pela pequena mas
atuante Travessa dos Editores.
São vinte narrativas submetidas a vinte diferentes formas, incluindo
a paródia desvirtuada e fragmentada do ensaio acadêmico, da
entrevista, do roteiro cinematográfico, do comercial de televisão,
da homenagem póstuma e do diário de adolescente. Várias dessas
narrativas realmente contam um história, outras não narram nada, não
têm enredo, realizando-se na cristalização lírica, na justaposição
de sons, cores e cheiros. Esses são os dois caminhos que Luci trilha
com competência, mas confesso que me agrada mais o primeiro deles:
justamente o que, mesmo fazendo uso das categorias do conto
tradicional (tempo, espaço, ação, narrador, personagens), conduz o
leitor não ao coração dessa forma literária aprimorada nos
Oitocentos, mas aos seus arredores, ao bosque da alegórica loucura.
Indo direto ao ponto: prefiro as narrativas que estão mais próximas
da concretude do conto do que da plasticidade do poema. Fica
valendo, então, a máxima de Leminski: quem quiser escrever contos
tem que ter o que contar.
Um delicioso e refinado senso de humor adicionado a uma linha
parecida, mesmo que minimamente, com um enredo: nos Inescritos essa
soma feliz produziu momentos de pura inteligência literária. Peças
como Figuração, Imagens desabrigadas, Perguntas?, Qualquer
semelhança (relato autobiofágico), Virtudes do alerião, Entrevista
ao vivo, Dir-te-ei quem (psicotópicos) e Essência fazem cócegas e
provocam súbitos curtos-circuitos na maquineta monótona e sisuda que
chamamos de pensamento lógico.
A mulher que passa a limpo, em breves anotações, as cenas mais
marcantes da sua infância, faz ressurgir a família, os amigos e o
glorioso passado recente em comentários carregados de nostalgia
(Qualquer semelhança). São comentários saturados da saudade que, aos
poucos, vai se transferindo também para o leitor quarentão à simples
menção de certos nomes próprios, como mandiopã, bolin-bolacho,
Lanjal, Supra Sumo, Almoço com as Estrelas, Sandra Passarinho,
Grande Hotel, Gordine, Kharmann Ghia e Aero Willys (os mais jovens,
se não souberem do que se trata, pesquisem na internet). Essa mulher
talvez seja a mesma que muda de nome e de temperamento em função do
vestido que vai usar (Essência). Com o vestido verde ela se chama
Gisela Eloah e tem três filhos de pais diferentes, com o vestido
rosa seu nome é Margareth e ela é viúva de um eminente professor de
História Antiga, com o vestido amarelo ela se chama Leodegária e à
mesa não sabe usar os talheres certos… Essa mulher talvez seja a
mesma que está gritando por socorro, trancada dentro do armário de
Alérion (Virtudes do alerião). Ou talvez ela seja Mara Stefan, a
frívola e oportunista primeira-dama recém-escolhida A Brasileira do
Século pela revista Sistema & Criatividade (Entrevista ao vivo).
O novo livro de Luci Collin está cheio de mulheres de todas as cores
e sabores. A comicidade das situações vividas por essa horda,
carregadas de erotismo e auto-ironia, quase sempre revela a real
condição feminina: “Cadência: As fêmeas sangram. Nasceram para
sangrar. Desde as suas finas cutículas de várias maneiras sangram. A
cor das flores. Às vezes moscas pousam sobre o vermelho. Com o tempo
o vermelho a vermelhidão evapora. O rio evapora. A intensidade.
Queiram desculpar o discurso primitivo. O silêncio é também uma
facada lenta — gentilmente instaurada” (Nostálgica salvaguarda).
Inescritos, de Luci Collin
Travessa dos Editores, 160 páginas
Nelson de Oliveira é ficcionista e ensaísta, autor de Sólidos
gozosos & solidões geométricas (Record), entre outros.
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