O Padre e a Beata
       
      Nertan Macedo 

    Da cidade de Deus

             O clarão da tarde envolve a Serra do Horto
             onde os penitentes cantam litanias
             de morte e salvação
             e sonham com levitações de anjos e vôos
             de pássaros e névoas que mergulham 
             em espaços de luz e bem-aventurança.

             A Beata Mocinha, de nome Joana Tertuliana,
             prepara o alimento do padre, antes da bênção.
             Já os romeiros se aproximam em grupos
             da janela do patriarca,
             louvando a esperança do céu.

             O Beato da Cruz ajoelha-se
             junto às ervas e o musgo do cemitério,
             nos portões da capela
             onde foi sepultada a Beata Maria de Araújo.

             Arrasta uma pesada cruz de madeira
             e um carneiro. E o olhar do corcunda
             é azul e opaco. Cinge-lhe o ventre
             e a batina o cordão penitente
             e há fitas coloridas na sua touca negra.

             Canta a morte de Jesus em monte longínquo
             e os fiéis se ajoelham à passagem do louco
             que matou o pai numa sexta-feira santa.

             E além, onde a tarde se apaga,
             onde as cobras se arrastam e gritam as seriemas,
             o Beato Vicente, caçador e lenhador,
             põe o machado ao ombro,
             inclinando-se
             sobre a paz dos casebres e das sombras.

             E retira das costas um saco de farinha,
             bate as rijas mandíbulas,
             adormece na paz dos justos.
     

             Entoa o Beato Ricardo o ofício dos mortos
             para ajudar a finar-se um pecador.
             E ardem nos pavios chamas moribundas
             que alumiam os caminhos de Deus
             aos que O amaram sobre todas as coisas
             e foram contemplados com o Seu chamado.
     
     

             Dos exércitos de couro e meia-lua da virgem
             mãe das dores com seus estandartes flutuando 
             aos ventos do Ceará.
     

             Os olhos vigiam a noite como tições acesos.
             Felinos, romeiros espreitam a terra que se estende
             à frente dos valados abertos com que cercaram a cidade
             para a defesa da Virgem e do Padre Cícero.
             Beatas embuçadas nos seus xales negros, percorrem
             as pousadas ocultas, clamando contra os cães vindos do mar.

             Há uma rosa vermelha no chapéu de Zé Pedro.

             Antes do amanhecer as sombras se esgueiram
             entre o mato rasteiro, as facas se iluminam
             entre os dentes escuros, mascando fumo.
             Os peitos se comprimem no pó da terra
             e os rifles seguem presos aos corpos.

             A manhã nasce e aos céus flutuam
             os estandartes de Deus.

             E os romeiros se ajoelham
             com os seus chapéus de couro,
             seus punhais, rifles, rosários,
             o seu arrependimento,
             diante do mar.
     
     

             Lampião desceu a serra
     

             Virgulino Ferreira da Silva, Lampião,
             capitão das brancas luas e do sol em brasa,
             com o seu couro espichado e curtido,
             desceu pleno de mansidão a serra e entrou no Juazeiro.
             Do alto sertão vinha, vinha das auroras,
             das madrugadas e ermos, de todas as horas,
             dos ventos todos, de todas as direções do Nordeste,
             um pássaro corcunda e misterioso.
             Há um cheiro de manjericão
             e os cabelos do capitão são trançados,
             como serpentes, fulgem brilhantes e negros,
             atrás do seu chapéu que se abre ao céu da manhã
             em couro (prata e outro).
             O capitão traz um lenço bordado no pescoço,
             longo e fino é o punhal preso ao ventre,
             atrás do óculo dourado
             um olho branco e outro vidrado.
             Tem barbicacho, alpercatas e moedas profusas,
             cobertor de inverno e anéis refulgentes
             (fêmur descarnado).
             Os rifles repousam cruzados na rodagem
             com as suas telhas no barro,
             enquanto o capitão simula indiferença
             aguardando a visita do Padre.

             Lampião penetra no povoado
             e atravessa a rua em silêncio
             com os seus homens em coluna por um
             e as alpercatas ressoam
             numa pisada monótona nas pedras do calçamento.
             Os romeiros não viram o capitão partir
             nem trespassar o ocaso e a aurora da serra
             com o seu afiado perfil.
             Mas todos deram testemunho de sua presença
             e viram-no humilde e compassivo,
             a cabeça descoberta, o chapéu na mão,
             diante do Padre Cícero Romão,
             pedindo a sua bênção e a proteção da virgem.

             Ora, a imaginação do capitão,
             Deus é um grande clarão
             a brilhar perpétuo no fundo da noite.
             Virgulino pensa que Deus está em toda a parte,
             no azul, no ouro, no rubro
             da manha, do meio-dia, da tarde, no vento
             que principia a varrer o mundo, em cada
             estrela longínqua que acende e apaga.
             Clarão que jorra sobre os abismos
             do universo e penetra-lhe a alma,
             de um pássaro sem pouso, sombria
             como cisterna cavada na rocha,
             onde o verde musgo e o negro lodo
             quiseram habitar (para sempre?).
     

             O Velho
     

             ...Há muitos e muitos anos,
             nos tempos da Monarquia,
             reinando Pedro Segundo,
             Cícero Romão nascia
             na vila real do Crato,
             no sopé da serrania.
             As barbas do Imperador
             cobriam toda a nação
             e eram já veneradas
             do litoral ao sertão,
             onde seu vulto supremo
             vinha da Corte distante
             para impor autoridade
             ao coronel e ao barão.
             Em anos mais recuados,
             quando reinara seu Pai,
             um cratense destemido,
             de nome Pinto Madeira,
             preferiu ser fuzilado
             no alto do Barro Vermelho
             e cometer feio ato
             que julgava traiçoeiro,
             contra seu Amo e Senhor,
             o grande Pedro Primeiro.
     
     

             O Beato

             Barbas ao vento, os frades
             doutrinavam gerações
             no patamar das capelas,
             onde os chifres e os tições,
             rabos, cascos, maldições,
             pêlo de rato e cachorro
             dos condenados ao inferno
             amontoavam visões.
             Falavam contra as riquezas
             e contra as paixões do mundo
             e nos seus olhos brilhava
             aquele fogo profundo
             que faz o Cão mais imundo
             retroceder, pusilânime,
             quando um dia, na montanha,
             quis a Jesus conquistar,
             dando-Lhe reinos e terras,
             cidades, ilhas e mares.
     

             O Cantador
     

             Lá
             nesses confins do Império
             residiam patriarcas
             com suas barbas de bronze,
             os seus zuartes de mescla
             e as jerarquias rurais.
             Fazendas, brejos, currais,
             feitorias de ancestrais
             que ergueram as moradias.
             Almas curtidas, sombrias,
             graves, duras, imortais.
             Gerações de lavradores semeando as duas dores,
             bocas de sino, estertores,
             multiplicando os sinais.
             O papo amarelo oculto
             atrás de portas, guardado
             em dependências de couro,
             de sela, milho e cangalha.
             A lâmpada do oratório
             de imburana consumindo
             óleos de mamona, vindo
             lá do outro lado da serra,
             reto de mar primitivo,
             alimento de uma terra.
             A grande baleia azul
             dos beatos e vaqueiros,
             comida por cães ligeiros
             quando as colunas de vento 
             sobem do mar ao sertão.
             E correm no tabuleiros
             onde há frêmitos tão leves,
             feitos do ouro e do sangue
             do universo em combustão.
     

             O Soldado
     

             Antiga vila do Crato
             nos tempos da Monarquia,
             tão longe do litoral,
             nos fundos da serrania.
             Curato de Sigmaringa,
             era um reduto feudal,
             a casa de Dona Bárbara,
             os presbíteros em luta
             contra a lei imperial,
             a mancebia dos grandes,
             rosário, rifle, punhal,
             novenas e ladainhas,
             sons de banda cabaçal.
             Clarabóias nos telhados
             coavam luz mais intensa,
             descendo do teto em feixe,
             azulada e mineral.
             Nas latadas dos casebres
             de barro e cipós trançados,
             mulheres pilavam milho,
             catavam feijões bichados,
             como os corpos dos maridos,
             dos homens assassinados.
     

             A Beata
     

             Era uma rude ternura
             concentrada em solidão
             e dela gerou-se um dia
             Padre Cícero Romão
             Para sonhar todo o dia
             com a sua ordenação.
             O cálice de ouro e prata,
             com amito, alva, cordão,
             patena, casula, estola,
             breviário, vinho, pão.
             O vestido de arco-íris
             para a hora da elevação.
     

             O Vaqueiro

             Ser pai, ser pastor e amigo
             como nos tempos antigos,
             quando os reis eram pastores
             e os seus cajados usavam
             apascentando as nações.
             Lavando as mão do pecado
             e abençoando os imundos,
             recomendando os defuntos
             às assembléias dos justos.
     

             A Velha

             Ah, os imundos! Aqueles
             que não sabem donde vêm
             nem sabem para onde vão.
             Cegos, surdos, dessorados,
             batendo de porta em porta,
             um menino segurando
             essa vara sem condão,
             viandantes, transeuntes
             nas sombras da escuridão,
             a moedinha tinindo
             no fundo do canecão.
             Nossa Senhora lhe dê
             o dobro desse tostão,
             pelo amor de Jesus Cristo
             que pregou a compaixão
             e fez de mim uma sombra
             no vale da solidão.
             Ah, os mortos enterrados
             no fundo do coração.
             Prisioneiros de covas
             nos confins desse sertão.
             Apodrecendo nas redes,
             descarnados, espichados,
             entre roupas de azulão.
     

             O Cantador
     

             Naquela noite no Crato
             beatas disseram amém.
             Era uma noite tão bela
             como aquela de Belém.
             Anjos desceram à terra
             e foram vistos na serra
             entoando a liturgia:
             era um clarão tão profundo,
             um sentimento tão fundo
             que a própria Virgem Maria,
             abrindo o seu manto azul
             de estrelas cobriu o céu,
             multiplicando as centelhas
             alumiam o sertão.
             Em torno da lua cheia
             as estrelas cintilaram,
             estendeu-se pelo vale
             o manto da Virgem Mãe.
             Anjos cantaram em bando
             nos longes da madrugada,
             com os seus cabelos de ouro
             e as suas vestes de prata.
             Nos sumidouros, nos brejos
             os ecos da melodia
             predizendo o nascimento
             do afilhado de Maria.
             Todo o vale era um clarão,
             brilhava e resplandecia.

             Nos luaceiros da serra
             penitentes acamparam
             com afinados cilícios,
             debaixo dos pequizeiros.
             Oravam em coro mulheres -
             magoada litania! -
             acocoradas em torno
             da fogueira que ardia,
             enquanto velhas beatas
             nessas graves romarias,
             beatas de mantos negros
             reiteravam profecias,
             aduncas e arregaladas
             como as corujas tardias:
             No fim dos tempos os mortos
             que são semente no chão
             rebentarão das suas covas
             tais o milho e o feijão.
             Olhos subiam à noite
             esplendente de visões
             e viam Nosso Senhor
             entre as Suas legiões.
             Repousavam então no Crato
             varados de solidões.
             Cercados por essas terras
             de caatingas e sertões,
             ardendo na eternidade
             prometida das Missões.
             Nasceu um santo na terra,
             espalhava um penitente,
             arauto de mãos calosas,
             gesticulando, demente.
             O brilho do olhar profético
             fez caminhar um morfético
             que suas mãos estendem
             às nuvens do céu sem cor.
     

             O Cangaceiro
     

             Um cangaceiro trocou
             o rifle pelo rosário.
             Um ateu se converteu
             e confessou-se vigário.
             Apóstata retomou
             a batina e o breviário.
             Foram tantos os milagres
             sucedidos no sertão,
             que o povo se alvoroçou
             e cheio de contradição
             andava léguas e léguas
             só para ouvir um sermão.
             Vinha gente de Barbalha
             e de toda a direção,
             eram nuvens de poeira
             rolando sob o clarão
             desse sol que arde em brasa
             queimando como um tição,
             como um chicote sulcando
             na dura flagelação.
     

             O Velho
     

             Cícero Romão Batista
             filho de Joaquim Romão
             e de Joaquina Vicência...
             Criado desde menino
             na severa penitência,
             entre loas, entre alfaias
             e odores de sacristia.
             Adorando o Senhor Morto
             na roxa melancolia.
             Varam morcegos as trevas
             da sexta-feira sombria,
             sua cabeça pendia
             na mansidão dos devotos,
             desprovida de alegria.
             Não teve infância, senão
             um corredor e um quintal.
             Nem carneiro nem jumento,
             nem bodoque nem punhal.
             Não matou um passarinho,
             não tomou banho no rio.
             Era um menino recluso
             que soletrava o latim
             para ser padre algum dia.
             Um sombra debruçada
             ante o livro e o candeeiro,
             decorando e repetindo
             sob a chama e o fumaceiro,
             a serra dormindo ao longe
             envolta no luaceiro.
     
     
     

             O Vaqueiro
     

             O canto dos penitentes
             no portão do cemitério
             pedindo chuvas, lamentos.
             Um tropel na madrugada
             pelos caminhos da serra,
             bater de cascos sumidos
             nos areais da chapada.
             Um velho boi padecente
             nas ladeiras do Araripe.
             Chocalhos intermitentes
             dos gados nas invernadas.
             Os jumentos que se esgueiram
             entre palmeiras de sono,
             pela quietude dos brejos.
     

             O Beato

             Cícero Romão Batista
             vai embora se ordenar.
             Viajará num cavalo
             cem léguas até o mar.
             E selando o seu cavalo
             lá se foi pra Fortaleza
             se ordenar sacerdote
             da Santa Igreja Romana.

             Dia, noite, noite, dia,
             noite e dia sem parar,
             como é longo esse caminho
             que vai até o mar!
     

             A Beata
     

             Lá vai o menino Cícero
             no seu cavalo baixeiro,
             comendo léguas e léguas,
             descansando num barreiro,
             onde a luz e as estrelas
             estremecem vagarosas,
             na folhagem pardacenta
             de superfícies lodosas.
             Sapos e grilos cantando,
             vagalumes acendendo
             lanternas de pisca-pisca
             e o ar todo recendendo,
             sob a friagem do orvalho.
     

             O  Velho
     

             Ai, o gosto das distâncias
             na alma dos cearenses!
             Que amam ermos e amam trilhas
             e vão ao oco do mundo.
             O mundo oco e vazio
             porque cheio é o coração,
             dessa gente parecida
             com ave de arribação.
             Que outro mundo pressente
             nas penas da solidão.
     

             O Cantador
     

             Nas sarças do meio-dia,
             cavalgando em fogo e luz,
             a sede desse cratense
             só mata com Jesus.
             Com Jesus, o Nazareno,
             de olhar sereno e aflito,
             tão manso, tão infinito,
             parado sob o luar.
             A barba negra, profunda,
             o ar de agonia, a túnica,
             os pés nas águas do mar.
             O de face tão sombria
             debruçada sobre os muros
             da velha Jerusalém.
             O coroado de espinhos,
             o sepultado nos linhos,
             o galileu alanceado,
             de vinho, pão e armento,
             áscua divina, tormento,
             talhado em pedra, madeira,
             alicerce e cumeeira
             da morada universal
             A grande sombra ferida
             que se projeta no chão
             como um pássaro que tomba.
             Êsse amplo Crucificado
             que a todos nós crucifica,
             cujo sangue vivifica,
             cuja carne purifica
             nosso alimento geral.
             Cícero Romão Batista,
             vivem em nós os judeus.
             Por isso somos Tiago,
             Tomé, Lucas e Mateus.
             Carcassas de cristãos novos
             empurradas pela mão
             da Providência Divina
             às porteiras do sertão.
             Onde os galhos se retorcem
             como a figueira de Judas.
             Onde a barbicha de um bode
             lembra a profecia e um tio.
             E nossa alma fica seca
             como seco fica um rio.
             E esse gosto de andar
             em caminhos tortuosos,
             anos e anos a fio.
             Essas pedras, esse instinto,
             esses serrotes lunares.
             Couro, lã e profecia,
             contemplações e vagares
             sob as arcadas de Deus.
             Esse dom de contemplar
             a profundeza dos mares,
             povos, países distantes.
             Deve ver em sonho Dom Pedro
             ser exilado e deposto
             e montado num cavalo,
             quando o sol já era posto,
             imaginar o oceano
             e, dentro dele, o espadarte
             em luta contra a baleia.
             O Crato ficou atrás
             com suas velas acesas,
             suas beatas fanhosas
             ajoelhadas no barro
             dos seus adros poeirentos.
             Deve ser hora da benção
             e elas já se encaminham
             para rezar o rosário,
             ante o dourado sacrário
             que resplandece entre chamas.
     

             A Velha

             Sobram imagens vividas,
             as plangências e soluços
             pelos capões ensombrados,
             o grito da siriema
             n'agonia dos cerrados,
             os grupos de flagelados,
             as avoantes no espaço,
             os prolongados silêncios
             do azul pelos roçados.
             Agora plangem os sinos
             assustando as andorinhas.
             E dobram pelo defunto
             já dormindo no caixão.
             Os olhos semicerrados
             fixando a imensidão,
             povoada de corujas,
             morcegos em profusão,
             fumaceiro de turíbulo,
             mais os pingos da aspersão,
             monsenhor abrindo o livro,
             rezando a encomendação.
             E o morto subindo aos céus
             entre tufos de algodão,
             molhando de água benta,
             cheirando a cravo e melão,
             alpercatas de rabicho
             pisando na vastidão,
             amortalhado de cinza,
             amarrado de cordão.
     

             O Vaqueiro
     

             É noite, Cícero, é noite
             no vale do Cariri.
             Eis que os homens se debruçam,
             roedores de pequi.
             Como cães abrem mandíbulas,
             são alcatéias famintas,
             mastigando carne assada
             entre restos de farinha.
             Fogões de barro, o bafio
             de encourados - tanajuras
             chegam em bando, conjuras
             de invernos. O candeeiro
             soltando o seu fumaceiro
             vai recortando no barro
             angulosas criaturas.
             Os poços brilham, esplendem,
             superfície vegetal.
             Curvam-se no chão as vacas
             para o sono mineral
             à sombra dos arvoredos.
             Engordam sob o mistério
             das perpétuas constelações.
             Ruminam céus azulados,
             silêncios e solidões,
             cancelas e minadouros,
             forragens e lassidões.
             Céus puníceos e quebradas
             vão se alongando agora.
             Sob poalhas de azul e prata
             as noites serenamente...
     

             O Beato

             Cícero Romão chegou
             aos brancos campos lunares
             do Iguatu ao Quixadá.
             Descansa agora em demanda
             das praias do Ceará.
             Agora são os portões
             do secular Seminário
             que se trancam sobre ele,
             rangentes, de par em par.
             Mas das janelas do outeiro
             lá onde se ergue o sobrado,
             os sinos da sua igreja
             repicarão sobre o mar.
             O mar que ele via em sonho
             nos seus caminhos do sertão,
             com o espadarte e a baleia
             nos azuis da solidão.
             Areias de prata em pó,
             verá camelos talvez
             atravessando desertos
             envoltos na doce luz.
             O passo tardo, ofegante,
             mastigando sobre as dunas,
             ao manso sopro do vento
             escancarando o luar.
             Nos desvãos e corredores,
             o flagelado de escaras,
             domará as suas dores,
             mouco e cego de amores,
             de carne e ossos a queimar.
             Por uma luz mais intensa
             que não pára de brilhar!
     

             O Cangaceiro
     

             Nas horas de solidão,
             quando a alma fica só
             e a carne na tentação,
             o velho Joaquim Romão,
             morto de cólera-morbus,
             levantava do seu túmulo,
             no cemitério do Crato
             para visitar o filho
             de batina, em Fortaleza.
             Chegava de madrugada
             com as barbas e as botinas,
             com o seu correntão de ouro
             e a fala mansa e pausada.
             Os padres desconfiaram
             de alguma estranha visão
             e por isso decidiram
             adiar a ordenação.
             Mas o bispo da província,
             tomando a peito a questão,
             convocou os reverendos
             com firme resolução
             e mandou que se ordenasse
             aquele anjo perfeito.
             Os padres se retiraram
             na mais cega obediência
             e quando teve a notícia,
             dona Joaquina Vicência
             caiu de joelho em pranto,
             diante do oratório,
             acendendo quatro velas
             em louvor do Senhor Nosso
             e da Rainha dos Céus.
     

             O Cantador

             Vinha longe a madrugada
             na linha do horizonte.
             Abriu-se a concha do mundo
             entre o céu e o oceano.
             Um cometa deslizou
             nos restos da escuridão.
             Leques dourados se abriram
             como as penas de um pavão.
             Murmurava o grande mar
             soleníssima oração,
             quando os sinos repicaram
             na manhã da ordenação.
             E os sons foram crescendo
             num clamor, num cantochão,
             o coral das aleluias,
             nos dômines e misereres,
             ecoando em serranias,
             descendo pelo sertão.
             Quando Cícero deitou-se
             aos pés do santo pastor,
             uma voz desceu do céu:
             Meu filho, toma esta cruz,
             carrega a minha Paixão,
             ensina minha lição
             em terras de chão batido
             onde nascem juazeiros,
             onde a chama das candeias
             bruxoleia nos pavios,
             onde correm as siriemas
             em livres campos vazios,
             onde moram barbatões,
             arfantes, soltos, bravios,
             onde dispararam veados
             velozes por sobre o rio,
             enveredado nas dobras,
             tenso e magro como um fio,
             serpenteando no dorso
             coruscante do baixio.
     

             O Soldado
     

             Assim seja para sempre,
             respondeu o tonsurado,
             já o sol dourava o mundo
             e as dunas do Ceará.
             Longe, longe, muito longe,
             manso vento entre mangueiras,
             entre folhagens secadas
             pelo sol das nove horas,
             os sítios de sombra e paz.
             Voam, cantam passarinhos
             nos azuis dessa manhã,
             e beliscam o ouro e o sangue,
             milhos, melões e romãs.
             E os verdes camaleões
             com os seus olhos mortiços
             guardam cancelas e bichos,
             ciciando pelo mato
             ao estalo dos comboios.
             Serpentes do meio-dia
             deslizam pelo geral
             de uma paisagem de cinza
             de miragem e espiral.
             Urubus longínquos fazem
             evoluções pelo ar
             nesse sôpro intermitente
             vindo dos longes do mar.
             Lá se vem o padre Cícero
             no seu cavalo estradeiro,
             comendo léguas e léguas,
             descansando num barreiro.
             Vem de batina surrada
             e botinas rangedeiras,
             vem de rosário na mão
             e um breviário na outra,
             de chapéu negro de abas,
             parece um cura francês.
             Sonhando com o urso branco
             de manchas e pintas pretas,
             que retalhava este mundo
             com suas patas enormes.
             Bem sabe que Satanás
             é solto de canga e corda
             nas horas de sol em brasa.
             Sua sombra será noite
             no fogaréu do Nordeste,
             escondendo os fugitivos
             e protegendo os errantes,
             como escreveu o profeta.
             Sua cabeça pendida
             vem lá no fundo da história,
             dos temporais, do dilúvio,
             vem dos tempos de Noé,
             cuja arca suas mãos
             ajudaram a construir.
     

             A Velha

             Era uma vez um vigário
             banhado de ouro e luz,
             curvado ao peso dos anos
             como o Cristo sob a cruz,
             cercado de multidões
             que clamavam por Jesus.
             Formigueiros, legiões
             que desciam do longínquos,
             planos e vastos sertões
             entre bodes e cavalos,
             garrotes, éguas, dobrões,
             os pés cambaios rufando
             no dorso dos estirões.
             Os loucos acorrentados,
             urrando como leões,
             enxotados pelo relho
             das maiores provocações,
             filhos, netos e bisnetos
             das finadas gerações.
             vinham de grotas, rechãs,
             de matos densos, fundões,
             de várzeas, praias e brejos
             em crescentes procissões.
             Na busca do padre velho,
             uma sombra e um borbão,
             que transmudava em sangue
             a hóstia da comunhão,
             Cirineu é testemunha
             dos mistérios da Paixão,
             cujas mãos aos céus subiam
             como pássaros de luz
             e retornavam das nuvens
             com estigmas de Jesus.
     

             O Vaqueiro
     

             Na hora em que o sol declina
             para as bandas do poente
             e o mundo queda silente
             na meia sombra da luz,
             caminhava o jovem padre
             na solidão da planície,
             com suas velhas botinas
             e a sotaina esfarrapada.
             Voltava já quase noite
             pelo caminho do Crato,
             tangendo as nuvens do céu
             pro lado que ele queria,
             e todos se ajoelhavam
             quando a mão direita erguia,
             fazendo o Sinal da Cruz
             na tarde que escurecia.
             Louvado seja Nosso
             Senhor Jesus Cristo,
             para sempre seja louvado.
             E na porta dos casebres
             os homens se descobriam,
             as mulheres se benziam,
             os velhos se levantavam
             e as crianças dormiam.
             Tangedor de carneirinhos
             feitos de nuvens do céu,
             clarão da boca da noite,
             sombra escura em fogaréu,
             pastor de sóis e de estrelas,
             patriarca dos azuis,
             arcanjo, santo profeta
             de couro e da meia-lua.
     

             O Velho
     

             Madrugada, meia-lua,
             monarquia e solidão,
             as barbas do imperador
             descendo pelo sertão.
             O cavalo de São Jorge
             empinando na amplidão,
             as narinas dilatadas,
             lança, armadura, dragão.
             Invernos e trovoadas,
             carros de boi, lentidão,
             lunário perpétuo, pássaros,
             canção de fogo, mistério
             que mora no cemitério
             e canta na escuridão.
             Litanias e alegrias,
             choro, vela, maldição.
             Magos, pastores, Herodes,
             o cometa, a estrebaria,
             as barbas de Simão Pedro,
             Marta, Lázaro e Maria.
             Judas na tempestade,
             enforcado na figueira,
             o canto do galo, as trevas,
             a soldadesca no Horto.
             Essas escarpas e montes,
             esses espinhos e pedras
             lembram terras da Judéia.
             por aqui passou o Cristo
             sob o mais duro escarmento.
             Por aqui Jesus passou...
     

             O Cantador

             Fundara a povoação
             o padre Pedro Ribeiro
             com casa de taipa e telha
             e um jogo de gamão,
             tantas oitavas de prata,
             baús, enxadas, currais,
             um alambique e um vaso
             e uma balança de ferro.
             Ainda desse inventário
             constava muita riqueza,
             garrotes, novilhos, potros
             e garrafas de água inglesa,
             uma frasqueira de vidro
             e um destilador de cobre,
             um armário e um santuário
             e um aparelho de chá.
             Mais um cavalo quartau,
             vivendas, benfeitorias,
             chaleira, sobrecasaca
             de zuarte, uma capela
             em honra da Mão e Deus.
             Tantas casas, tantas almas
             do padre Pedro Ribeiro,
             aristocrata da terra
             e neto de brigadeiro.
             E assim foi. O povoado
             de Juàzeiro do Crato,
             de que ninguém se lembrava,
             esquecido e decadente
             vai-se tornando arruado,
             cresce agora lentamente,
             ossatura de cipó,
             forquilha e barro, a semente
             desse reduto de sombras
             que povoam a solidão,
             coro de vozes sinistras
             que se levanta do chão,
             secas e duras e tristes
             como a alma do sertão,
             escura como uma noite,
             ardente como um clarão.
     

             O Padre
     

             "...Em nome de Deus, amém."

             Eu,
             Cícero Romão Batista,
             velho, doente, alquebrado,
             mas em perfeito juízo,
             tomei a resolução
             de fazer meu testamento,
             dispondo dos meus haveres
             segundo as leis do país.
             Na incerteza do dia
             do chamamento de Deus,
             sabendo que a morte vem
             sem consultar a ninguém,
             já que me faltam vagares
             para num tempo apurado
             escrever o documento
             que será longo e ditado:
             Luiz Theophylo Machado,
             tabelião da Comarca,
             fará em minha presença,
             lido conforme e cosido
             um testamento lacrado.
             Declaro que sou rebento
             legítimo dos falecidos
             Joaquim Romão Batista
             e dona Joaquina Vicência,
             de sobrenome Romana.
             De profissão adotei
             o sagrado ministério,
             de acordo com as ordens
             que me foram conferidas
             pelo saudoso prelado,
             Dão Luiz Antônio dos Santos,
             de inesquecível memória.
             Jamais faltei aos deveres
             que me foram imposição
             da Divina Providência
             no dia da ordenação.
             Fui sacerdote conforme
             minha própria vocação,
             exercendo o ministério
             com firme dedicação,
             no amor e na paciência,
             na constância e devoção,
             com as quais quero morrer
             para cumprir meu quinhão.
             Nasci na vila do Crato,
             província do Ceará,
             fui vigário de São Pedro
             e sabem os que vivem lá
             que ministrei sacramentos
             a todos sem distinção,
             jamais cobrei um real
             por missa nem confissão,
             e o dinheiro que me deram,
             eu o dei por compaixão,
             e as terras que me ficaram
             lego à instituição
             criada por São João Bosco
             para que funde colégios,
             funde asilos e orfanatos
             para esta população.
             Para este povo que eu amo,
             de puro amor verdadeiro,
             que ficará para sempre
             em terras de Juazeiro,
             lembrado do padre velho,
             aconselhando o romeiro,
             abençoando o doente,
             a quenga e o cangaceiro -
             que a todos ensinei
             a história de Nosso Senhor,
             a curtir as suas penas
             com intenções e louvores,
             em honra da Imaculada
             Nossa Senhora das Dores.
             Aos doze anos de idade
             fiz voto de castidade,
             conservei a virgindade
             como Francisco de Salles.
             Amei os meus semelhantes,
             não votei ódio a ninguém,
             perdoei os inimigos.
             Não desejei ser político,
             nunca fiz revoluções,
             respeitei a autoridade
             e a Santa Igreja Católica,
             em cujo seio somente
             pode haver felicidade.
             ...Ao meu compadre e amigo
             Adolfo, conde, Van Den Brule
             e seus herdeiros legítimos,
             deixo o Sítio dos Veados
             em terras do município.
             ...E quero ser sepultado
             sem honras de funerais,
             que por mim sejam rezadas
             doze missas em cinco anos,
             igualmente o mesmo número
             às almas do Purgatório.
             Nomeio Testamenteiros
             o dr. Floro e o conde
             Adolfo e o coronel
             Antônio Luiz Alves Pequeno.
     

 Remetente: Isolda Pedrosa

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