Da cidade de Deus
O clarão
da tarde envolve a Serra do Horto
onde os penitentes
cantam litanias
de morte e salvação
e sonham com levitações
de anjos e vôos
de pássaros
e névoas que mergulham
em espaços
de luz e bem-aventurança.
A Beata Mocinha,
de nome Joana Tertuliana,
prepara o alimento
do padre, antes da bênção.
Já os romeiros
se aproximam em grupos
da janela do patriarca,
louvando a esperança
do céu.
O Beato da Cruz
ajoelha-se
junto às
ervas e o musgo do cemitério,
nos portões
da capela
onde foi sepultada
a Beata Maria de Araújo.
Arrasta uma pesada
cruz de madeira
e um carneiro.
E o olhar do corcunda
é azul e
opaco. Cinge-lhe o ventre
e a batina o cordão
penitente
e há fitas
coloridas na sua touca negra.
Canta a morte de
Jesus em monte longínquo
e os fiéis
se ajoelham à passagem do louco
que matou o pai
numa sexta-feira santa.
E além, onde
a tarde se apaga,
onde as cobras
se arrastam e gritam as seriemas,
o Beato Vicente,
caçador e lenhador,
põe o machado
ao ombro,
inclinando-se
sobre a paz dos
casebres e das sombras.
E retira das costas
um saco de farinha,
bate as rijas mandíbulas,
adormece na paz
dos justos.
Entoa o Beato Ricardo
o ofício dos mortos
para ajudar a finar-se
um pecador.
E ardem nos pavios
chamas moribundas
que alumiam os
caminhos de Deus
aos que O amaram
sobre todas as coisas
e foram contemplados
com o Seu chamado.
Dos exércitos
de couro e meia-lua da virgem
mãe das
dores com seus estandartes flutuando
aos ventos do Ceará.
Os olhos vigiam
a noite como tições acesos.
Felinos, romeiros
espreitam a terra que se estende
à frente
dos valados abertos com que cercaram a cidade
para a defesa da
Virgem e do Padre Cícero.
Beatas embuçadas
nos seus xales negros, percorrem
as pousadas ocultas,
clamando contra os cães vindos do mar.
Há uma rosa
vermelha no chapéu de Zé Pedro.
Antes do amanhecer
as sombras se esgueiram
entre o mato rasteiro,
as facas se iluminam
entre os dentes
escuros, mascando fumo.
Os peitos se comprimem
no pó da terra
e os rifles seguem
presos aos corpos.
A manhã nasce
e aos céus flutuam
os estandartes
de Deus.
E os romeiros se
ajoelham
com os seus chapéus
de couro,
seus punhais, rifles,
rosários,
o seu arrependimento,
diante do mar.
Lampião desceu
a serra
Virgulino Ferreira
da Silva, Lampião,
capitão
das brancas luas e do sol em brasa,
com o seu couro
espichado e curtido,
desceu pleno de
mansidão a serra e entrou no Juazeiro.
Do alto sertão
vinha, vinha das auroras,
das madrugadas
e ermos, de todas as horas,
dos ventos todos,
de todas as direções do Nordeste,
um pássaro
corcunda e misterioso.
Há um cheiro
de manjericão
e os cabelos do
capitão são trançados,
como serpentes,
fulgem brilhantes e negros,
atrás do
seu chapéu que se abre ao céu da manhã
em couro (prata
e outro).
O capitão
traz um lenço bordado no pescoço,
longo e fino é
o punhal preso ao ventre,
atrás do
óculo dourado
um olho branco
e outro vidrado.
Tem barbicacho,
alpercatas e moedas profusas,
cobertor de inverno
e anéis refulgentes
(fêmur descarnado).
Os rifles repousam
cruzados na rodagem
com as suas telhas
no barro,
enquanto o capitão
simula indiferença
aguardando a visita
do Padre.
Lampião penetra
no povoado
e atravessa a rua
em silêncio
com os seus homens
em coluna por um
e as alpercatas
ressoam
numa pisada monótona
nas pedras do calçamento.
Os romeiros não
viram o capitão partir
nem trespassar
o ocaso e a aurora da serra
com o seu afiado
perfil.
Mas todos deram
testemunho de sua presença
e viram-no humilde
e compassivo,
a cabeça
descoberta, o chapéu na mão,
diante do Padre
Cícero Romão,
pedindo a sua bênção
e a proteção da virgem.
Ora, a imaginação
do capitão,
Deus é um
grande clarão
a brilhar perpétuo
no fundo da noite.
Virgulino pensa
que Deus está em toda a parte,
no azul, no ouro,
no rubro
da manha, do meio-dia,
da tarde, no vento
que principia a
varrer o mundo, em cada
estrela longínqua
que acende e apaga.
Clarão que
jorra sobre os abismos
do universo e penetra-lhe
a alma,
de um pássaro
sem pouso, sombria
como cisterna cavada
na rocha,
onde o verde musgo
e o negro lodo
quiseram habitar
(para sempre?).
O Velho
...Há muitos
e muitos anos,
nos tempos da Monarquia,
reinando Pedro
Segundo,
Cícero Romão
nascia
na vila real do
Crato,
no sopé
da serrania.
As barbas do Imperador
cobriam toda a
nação
e eram já
veneradas
do litoral ao sertão,
onde seu vulto
supremo
vinha da Corte
distante
para impor autoridade
ao coronel e ao
barão.
Em anos mais recuados,
quando reinara
seu Pai,
um cratense destemido,
de nome Pinto Madeira,
preferiu ser fuzilado
no alto do Barro
Vermelho
e cometer feio
ato
que julgava traiçoeiro,
contra seu Amo
e Senhor,
o grande Pedro
Primeiro.
O Beato
Barbas ao vento,
os frades
doutrinavam gerações
no patamar das
capelas,
onde os chifres
e os tições,
rabos, cascos,
maldições,
pêlo de rato
e cachorro
dos condenados
ao inferno
amontoavam visões.
Falavam contra
as riquezas
e contra as paixões
do mundo
e nos seus olhos
brilhava
aquele fogo profundo
que faz o Cão
mais imundo
retroceder, pusilânime,
quando um dia,
na montanha,
quis a Jesus conquistar,
dando-Lhe reinos
e terras,
cidades, ilhas
e mares.
O Cantador
Lá
nesses confins
do Império
residiam patriarcas
com suas barbas
de bronze,
os seus zuartes
de mescla
e as jerarquias
rurais.
Fazendas, brejos,
currais,
feitorias de ancestrais
que ergueram as
moradias.
Almas curtidas,
sombrias,
graves, duras,
imortais.
Gerações
de lavradores semeando as duas dores,
bocas de sino,
estertores,
multiplicando os
sinais.
O papo amarelo
oculto
atrás de
portas, guardado
em dependências
de couro,
de sela, milho
e cangalha.
A lâmpada
do oratório
de imburana consumindo
óleos de
mamona, vindo
lá do outro
lado da serra,
reto de mar primitivo,
alimento de uma
terra.
A grande baleia
azul
dos beatos e vaqueiros,
comida por cães
ligeiros
quando as colunas
de vento
sobem do mar ao
sertão.
E correm no tabuleiros
onde há
frêmitos tão leves,
feitos do ouro
e do sangue
do universo em
combustão.
O Soldado
Antiga vila do Crato
nos tempos da Monarquia,
tão longe
do litoral,
nos fundos da serrania.
Curato de Sigmaringa,
era um reduto feudal,
a casa de Dona
Bárbara,
os presbíteros
em luta
contra a lei imperial,
a mancebia dos
grandes,
rosário,
rifle, punhal,
novenas e ladainhas,
sons de banda cabaçal.
Clarabóias
nos telhados
coavam luz mais
intensa,
descendo do teto
em feixe,
azulada e mineral.
Nas latadas dos
casebres
de barro e cipós
trançados,
mulheres pilavam
milho,
catavam feijões
bichados,
como os corpos
dos maridos,
dos homens assassinados.
A Beata
Era uma rude ternura
concentrada em
solidão
e dela gerou-se
um dia
Padre Cícero
Romão
Para sonhar todo
o dia
com a sua ordenação.
O cálice
de ouro e prata,
com amito, alva,
cordão,
patena, casula,
estola,
breviário,
vinho, pão.
O vestido de arco-íris
para a hora da
elevação.
O Vaqueiro
Ser pai, ser pastor
e amigo
como nos tempos
antigos,
quando os reis
eram pastores
e os seus cajados
usavam
apascentando as
nações.
Lavando as mão
do pecado
e abençoando
os imundos,
recomendando os
defuntos
às assembléias
dos justos.
A Velha
Ah, os imundos!
Aqueles
que não
sabem donde vêm
nem sabem para
onde vão.
Cegos, surdos,
dessorados,
batendo de porta
em porta,
um menino segurando
essa vara sem condão,
viandantes, transeuntes
nas sombras da
escuridão,
a moedinha tinindo
no fundo do canecão.
Nossa Senhora lhe
dê
o dobro desse tostão,
pelo amor de Jesus
Cristo
que pregou a compaixão
e fez de mim uma
sombra
no vale da solidão.
Ah, os mortos enterrados
no fundo do coração.
Prisioneiros de
covas
nos confins desse
sertão.
Apodrecendo nas
redes,
descarnados, espichados,
entre roupas de
azulão.
O Cantador
Naquela noite no
Crato
beatas disseram
amém.
Era uma noite tão
bela
como aquela de
Belém.
Anjos desceram
à terra
e foram vistos
na serra
entoando a liturgia:
era um clarão
tão profundo,
um sentimento tão
fundo
que a própria
Virgem Maria,
abrindo o seu manto
azul
de estrelas cobriu
o céu,
multiplicando as
centelhas
alumiam o sertão.
Em torno da lua
cheia
as estrelas cintilaram,
estendeu-se pelo
vale
o manto da Virgem
Mãe.
Anjos cantaram
em bando
nos longes da madrugada,
com os seus cabelos
de ouro
e as suas vestes
de prata.
Nos sumidouros,
nos brejos
os ecos da melodia
predizendo o nascimento
do afilhado de
Maria.
Todo o vale era
um clarão,
brilhava e resplandecia.
Nos luaceiros da
serra
penitentes acamparam
com afinados cilícios,
debaixo dos pequizeiros.
Oravam em coro
mulheres -
magoada litania!
-
acocoradas em torno
da fogueira que
ardia,
enquanto velhas
beatas
nessas graves romarias,
beatas de mantos
negros
reiteravam profecias,
aduncas e arregaladas
como as corujas
tardias:
No fim dos tempos
os mortos
que são
semente no chão
rebentarão
das suas covas
tais o milho e
o feijão.
Olhos subiam à
noite
esplendente de
visões
e viam Nosso Senhor
entre as Suas legiões.
Repousavam então
no Crato
varados de solidões.
Cercados por essas
terras
de caatingas e
sertões,
ardendo na eternidade
prometida das Missões.
Nasceu um santo
na terra,
espalhava um penitente,
arauto de mãos
calosas,
gesticulando, demente.
O brilho do olhar
profético
fez caminhar um
morfético
que suas mãos
estendem
às nuvens
do céu sem cor.
O Cangaceiro
Um cangaceiro trocou
o rifle pelo rosário.
Um ateu se converteu
e confessou-se
vigário.
Apóstata
retomou
a batina e o breviário.
Foram tantos os
milagres
sucedidos no sertão,
que o povo se alvoroçou
e cheio de contradição
andava léguas
e léguas
só para
ouvir um sermão.
Vinha gente de
Barbalha
e de toda a direção,
eram nuvens de
poeira
rolando sob o clarão
desse sol que arde
em brasa
queimando como
um tição,
como um chicote
sulcando
na dura flagelação.
O Velho
Cícero Romão
Batista
filho de Joaquim
Romão
e de Joaquina Vicência...
Criado desde menino
na severa penitência,
entre loas, entre
alfaias
e odores de sacristia.
Adorando o Senhor
Morto
na roxa melancolia.
Varam morcegos
as trevas
da sexta-feira
sombria,
sua cabeça
pendia
na mansidão
dos devotos,
desprovida de alegria.
Não teve
infância, senão
um corredor e um
quintal.
Nem carneiro nem
jumento,
nem bodoque nem
punhal.
Não matou
um passarinho,
não tomou
banho no rio.
Era um menino recluso
que soletrava o
latim
para ser padre
algum dia.
Um sombra debruçada
ante o livro e
o candeeiro,
decorando e repetindo
sob a chama e o
fumaceiro,
a serra dormindo
ao longe
envolta no luaceiro.
O Vaqueiro
O canto dos penitentes
no portão
do cemitério
pedindo chuvas,
lamentos.
Um tropel na madrugada
pelos caminhos
da serra,
bater de cascos
sumidos
nos areais da chapada.
Um velho boi padecente
nas ladeiras do
Araripe.
Chocalhos intermitentes
dos gados nas invernadas.
Os jumentos que
se esgueiram
entre palmeiras
de sono,
pela quietude dos
brejos.
O Beato
Cícero Romão
Batista
vai embora se ordenar.
Viajará
num cavalo
cem léguas
até o mar.
E selando o seu
cavalo
lá se foi
pra Fortaleza
se ordenar sacerdote
da Santa Igreja
Romana.
Dia, noite, noite,
dia,
noite e dia sem
parar,
como é longo
esse caminho
que vai até
o mar!
A Beata
Lá vai o
menino Cícero
no seu cavalo baixeiro,
comendo léguas
e léguas,
descansando num
barreiro,
onde a luz e as
estrelas
estremecem vagarosas,
na folhagem pardacenta
de superfícies
lodosas.
Sapos e grilos
cantando,
vagalumes acendendo
lanternas de pisca-pisca
e o ar todo recendendo,
sob a friagem do
orvalho.
O Velho
Ai, o gosto das
distâncias
na alma dos cearenses!
Que amam ermos
e amam trilhas
e vão ao
oco do mundo.
O mundo oco e vazio
porque cheio é
o coração,
dessa gente parecida
com ave de arribação.
Que outro mundo
pressente
nas penas da solidão.
O Cantador
Nas sarças
do meio-dia,
cavalgando em fogo
e luz,
a sede desse cratense
só mata
com Jesus.
Com Jesus, o Nazareno,
de olhar sereno
e aflito,
tão manso,
tão infinito,
parado sob o luar.
A barba negra,
profunda,
o ar de agonia,
a túnica,
os pés nas
águas do mar.
O de face tão
sombria
debruçada
sobre os muros
da velha Jerusalém.
O coroado de espinhos,
o sepultado nos
linhos,
o galileu alanceado,
de vinho, pão
e armento,
áscua divina,
tormento,
talhado em pedra,
madeira,
alicerce e cumeeira
da morada universal
A grande sombra
ferida
que se projeta
no chão
como um pássaro
que tomba.
Êsse amplo
Crucificado
que a todos nós
crucifica,
cujo sangue vivifica,
cuja carne purifica
nosso alimento
geral.
Cícero Romão
Batista,
vivem em nós
os judeus.
Por isso somos
Tiago,
Tomé, Lucas
e Mateus.
Carcassas de cristãos
novos
empurradas pela
mão
da Providência
Divina
às porteiras
do sertão.
Onde os galhos
se retorcem
como a figueira
de Judas.
Onde a barbicha
de um bode
lembra a profecia
e um tio.
E nossa alma fica
seca
como seco fica
um rio.
E esse gosto de
andar
em caminhos tortuosos,
anos e anos a fio.
Essas pedras, esse
instinto,
esses serrotes
lunares.
Couro, lã
e profecia,
contemplações
e vagares
sob as arcadas
de Deus.
Esse dom de contemplar
a profundeza dos
mares,
povos, países
distantes.
Deve ver em sonho
Dom Pedro
ser exilado e deposto
e montado num cavalo,
quando o sol já
era posto,
imaginar o oceano
e, dentro dele,
o espadarte
em luta contra
a baleia.
O Crato ficou atrás
com suas velas
acesas,
suas beatas fanhosas
ajoelhadas no barro
dos seus adros
poeirentos.
Deve ser hora da
benção
e elas já
se encaminham
para rezar o rosário,
ante o dourado
sacrário
que resplandece
entre chamas.
A Velha
Sobram imagens vividas,
as plangências
e soluços
pelos capões
ensombrados,
o grito da siriema
n'agonia dos cerrados,
os grupos de flagelados,
as avoantes no
espaço,
os prolongados
silêncios
do azul pelos roçados.
Agora plangem os
sinos
assustando as andorinhas.
E dobram pelo defunto
já dormindo
no caixão.
Os olhos semicerrados
fixando a imensidão,
povoada de corujas,
morcegos em profusão,
fumaceiro de turíbulo,
mais os pingos
da aspersão,
monsenhor abrindo
o livro,
rezando a encomendação.
E o morto subindo
aos céus
entre tufos de
algodão,
molhando de água
benta,
cheirando a cravo
e melão,
alpercatas de rabicho
pisando na vastidão,
amortalhado de
cinza,
amarrado de cordão.
O Vaqueiro
É noite,
Cícero, é noite
no vale do Cariri.
Eis que os homens
se debruçam,
roedores de pequi.
Como cães
abrem mandíbulas,
são alcatéias
famintas,
mastigando carne
assada
entre restos de
farinha.
Fogões de
barro, o bafio
de encourados -
tanajuras
chegam em bando,
conjuras
de invernos. O
candeeiro
soltando o seu
fumaceiro
vai recortando
no barro
angulosas criaturas.
Os poços
brilham, esplendem,
superfície
vegetal.
Curvam-se no chão
as vacas
para o sono mineral
à sombra
dos arvoredos.
Engordam sob o
mistério
das perpétuas
constelações.
Ruminam céus
azulados,
silêncios
e solidões,
cancelas e minadouros,
forragens e lassidões.
Céus puníceos
e quebradas
vão se alongando
agora.
Sob poalhas de
azul e prata
as noites serenamente...
O Beato
Cícero Romão
chegou
aos brancos campos
lunares
do Iguatu ao Quixadá.
Descansa agora
em demanda
das praias do Ceará.
Agora são
os portões
do secular Seminário
que se trancam
sobre ele,
rangentes, de par
em par.
Mas das janelas
do outeiro
lá onde
se ergue o sobrado,
os sinos da sua
igreja
repicarão
sobre o mar.
O mar que ele via
em sonho
nos seus caminhos
do sertão,
com o espadarte
e a baleia
nos azuis da solidão.
Areias de prata
em pó,
verá camelos
talvez
atravessando desertos
envoltos na doce
luz.
O passo tardo,
ofegante,
mastigando sobre
as dunas,
ao manso sopro
do vento
escancarando o
luar.
Nos desvãos
e corredores,
o flagelado de
escaras,
domará as
suas dores,
mouco e cego de
amores,
de carne e ossos
a queimar.
Por uma luz mais
intensa
que não
pára de brilhar!
O Cangaceiro
Nas horas de solidão,
quando a alma fica
só
e a carne na tentação,
o velho Joaquim
Romão,
morto de cólera-morbus,
levantava do seu
túmulo,
no cemitério
do Crato
para visitar o
filho
de batina, em Fortaleza.
Chegava de madrugada
com as barbas e
as botinas,
com o seu correntão
de ouro
e a fala mansa
e pausada.
Os padres desconfiaram
de alguma estranha
visão
e por isso decidiram
adiar a ordenação.
Mas o bispo da
província,
tomando a peito
a questão,
convocou os reverendos
com firme resolução
e mandou que se
ordenasse
aquele anjo perfeito.
Os padres se retiraram
na mais cega obediência
e quando teve a
notícia,
dona Joaquina Vicência
caiu de joelho
em pranto,
diante do oratório,
acendendo quatro
velas
em louvor do Senhor
Nosso
e da Rainha dos
Céus.
O Cantador
Vinha longe a madrugada
na linha do horizonte.
Abriu-se a concha
do mundo
entre o céu
e o oceano.
Um cometa deslizou
nos restos da escuridão.
Leques dourados
se abriram
como as penas de
um pavão.
Murmurava o grande
mar
soleníssima
oração,
quando os sinos
repicaram
na manhã
da ordenação.
E os sons foram
crescendo
num clamor, num
cantochão,
o coral das aleluias,
nos dômines
e misereres,
ecoando em serranias,
descendo pelo sertão.
Quando Cícero
deitou-se
aos pés
do santo pastor,
uma voz desceu
do céu:
Meu filho, toma
esta cruz,
carrega a minha
Paixão,
ensina minha lição
em terras de chão
batido
onde nascem juazeiros,
onde a chama das
candeias
bruxoleia nos pavios,
onde correm as
siriemas
em livres campos
vazios,
onde moram barbatões,
arfantes, soltos,
bravios,
onde dispararam
veados
velozes por sobre
o rio,
enveredado nas
dobras,
tenso e magro como
um fio,
serpenteando no
dorso
coruscante do baixio.
O Soldado
Assim seja para
sempre,
respondeu o tonsurado,
já o sol
dourava o mundo
e as dunas do Ceará.
Longe, longe, muito
longe,
manso vento entre
mangueiras,
entre folhagens
secadas
pelo sol das nove
horas,
os sítios
de sombra e paz.
Voam, cantam passarinhos
nos azuis dessa
manhã,
e beliscam o ouro
e o sangue,
milhos, melões
e romãs.
E os verdes camaleões
com os seus olhos
mortiços
guardam cancelas
e bichos,
ciciando pelo mato
ao estalo dos comboios.
Serpentes do meio-dia
deslizam pelo geral
de uma paisagem
de cinza
de miragem e espiral.
Urubus longínquos
fazem
evoluções
pelo ar
nesse sôpro
intermitente
vindo dos longes
do mar.
Lá se vem
o padre Cícero
no seu cavalo estradeiro,
comendo léguas
e léguas,
descansando num
barreiro.
Vem de batina surrada
e botinas rangedeiras,
vem de rosário
na mão
e um breviário
na outra,
de chapéu
negro de abas,
parece um cura
francês.
Sonhando com o
urso branco
de manchas e pintas
pretas,
que retalhava este
mundo
com suas patas
enormes.
Bem sabe que Satanás
é solto
de canga e corda
nas horas de sol
em brasa.
Sua sombra será
noite
no fogaréu
do Nordeste,
escondendo os fugitivos
e protegendo os
errantes,
como escreveu o
profeta.
Sua cabeça
pendida
vem lá no
fundo da história,
dos temporais,
do dilúvio,
vem dos tempos
de Noé,
cuja arca suas
mãos
ajudaram a construir.
A Velha
Era uma vez um vigário
banhado de ouro
e luz,
curvado ao peso
dos anos
como o Cristo sob
a cruz,
cercado de multidões
que clamavam por
Jesus.
Formigueiros, legiões
que desciam do
longínquos,
planos e vastos
sertões
entre bodes e cavalos,
garrotes, éguas,
dobrões,
os pés cambaios
rufando
no dorso dos estirões.
Os loucos acorrentados,
urrando como leões,
enxotados pelo
relho
das maiores provocações,
filhos, netos e
bisnetos
das finadas gerações.
vinham de grotas,
rechãs,
de matos densos,
fundões,
de várzeas,
praias e brejos
em crescentes procissões.
Na busca do padre
velho,
uma sombra e um
borbão,
que transmudava
em sangue
a hóstia
da comunhão,
Cirineu é
testemunha
dos mistérios
da Paixão,
cujas mãos
aos céus subiam
como pássaros
de luz
e retornavam das
nuvens
com estigmas de
Jesus.
O Vaqueiro
Na hora em que o
sol declina
para as bandas
do poente
e o mundo queda
silente
na meia sombra
da luz,
caminhava o jovem
padre
na solidão
da planície,
com suas velhas
botinas
e a sotaina esfarrapada.
Voltava já
quase noite
pelo caminho do
Crato,
tangendo as nuvens
do céu
pro lado que ele
queria,
e todos se ajoelhavam
quando a mão
direita erguia,
fazendo o Sinal
da Cruz
na tarde que escurecia.
Louvado seja Nosso
Senhor Jesus Cristo,
para sempre seja
louvado.
E na porta dos
casebres
os homens se descobriam,
as mulheres se
benziam,
os velhos se levantavam
e as crianças
dormiam.
Tangedor de carneirinhos
feitos de nuvens
do céu,
clarão da
boca da noite,
sombra escura em
fogaréu,
pastor de sóis
e de estrelas,
patriarca dos azuis,
arcanjo, santo
profeta
de couro e da meia-lua.
O Velho
Madrugada, meia-lua,
monarquia e solidão,
as barbas do imperador
descendo pelo sertão.
O cavalo de São
Jorge
empinando na amplidão,
as narinas dilatadas,
lança, armadura,
dragão.
Invernos e trovoadas,
carros de boi,
lentidão,
lunário
perpétuo, pássaros,
canção
de fogo, mistério
que mora no cemitério
e canta na escuridão.
Litanias e alegrias,
choro, vela, maldição.
Magos, pastores,
Herodes,
o cometa, a estrebaria,
as barbas de Simão
Pedro,
Marta, Lázaro
e Maria.
Judas na tempestade,
enforcado na figueira,
o canto do galo,
as trevas,
a soldadesca no
Horto.
Essas escarpas
e montes,
esses espinhos
e pedras
lembram terras
da Judéia.
por aqui passou
o Cristo
sob o mais duro
escarmento.
Por aqui Jesus
passou...
O Cantador
Fundara a povoação
o padre Pedro Ribeiro
com casa de taipa
e telha
e um jogo de gamão,
tantas oitavas
de prata,
baús, enxadas,
currais,
um alambique e
um vaso
e uma balança
de ferro.
Ainda desse inventário
constava muita
riqueza,
garrotes, novilhos,
potros
e garrafas de água
inglesa,
uma frasqueira
de vidro
e um destilador
de cobre,
um armário
e um santuário
e um aparelho de
chá.
Mais um cavalo
quartau,
vivendas, benfeitorias,
chaleira, sobrecasaca
de zuarte, uma
capela
em honra da Mão
e Deus.
Tantas casas, tantas
almas
do padre Pedro
Ribeiro,
aristocrata da
terra
e neto de brigadeiro.
E assim foi. O
povoado
de Juàzeiro
do Crato,
de que ninguém
se lembrava,
esquecido e decadente
vai-se tornando
arruado,
cresce agora lentamente,
ossatura de cipó,
forquilha e barro,
a semente
desse reduto de
sombras
que povoam a solidão,
coro de vozes sinistras
que se levanta
do chão,
secas e duras e
tristes
como a alma do
sertão,
escura como uma
noite,
ardente como um
clarão.
O Padre
"...Em nome de Deus,
amém."
Eu,
Cícero Romão
Batista,
velho, doente,
alquebrado,
mas em perfeito
juízo,
tomei a resolução
de fazer meu testamento,
dispondo dos meus
haveres
segundo as leis
do país.
Na incerteza do
dia
do chamamento de
Deus,
sabendo que a morte
vem
sem consultar a
ninguém,
já que me
faltam vagares
para num tempo
apurado
escrever o documento
que será
longo e ditado:
Luiz Theophylo
Machado,
tabelião
da Comarca,
fará em
minha presença,
lido conforme e
cosido
um testamento lacrado.
Declaro que sou
rebento
legítimo
dos falecidos
Joaquim Romão
Batista
e dona Joaquina
Vicência,
de sobrenome Romana.
De profissão
adotei
o sagrado ministério,
de acordo com as
ordens
que me foram conferidas
pelo saudoso prelado,
Dão Luiz
Antônio dos Santos,
de inesquecível
memória.
Jamais faltei aos
deveres
que me foram imposição
da Divina Providência
no dia da ordenação.
Fui sacerdote conforme
minha própria
vocação,
exercendo o ministério
com firme dedicação,
no amor e na paciência,
na constância
e devoção,
com as quais quero
morrer
para cumprir meu
quinhão.
Nasci na vila do
Crato,
província
do Ceará,
fui vigário
de São Pedro
e sabem os que
vivem lá
que ministrei sacramentos
a todos sem distinção,
jamais cobrei um
real
por missa nem confissão,
e o dinheiro que
me deram,
eu o dei por compaixão,
e as terras que
me ficaram
lego à instituição
criada por São
João Bosco
para que funde
colégios,
funde asilos e
orfanatos
para esta população.
Para este povo
que eu amo,
de puro amor verdadeiro,
que ficará
para sempre
em terras de Juazeiro,
lembrado do padre
velho,
aconselhando o
romeiro,
abençoando
o doente,
a quenga e o cangaceiro
-
que a todos ensinei
a história
de Nosso Senhor,
a curtir as suas
penas
com intenções
e louvores,
em honra da Imaculada
Nossa Senhora das
Dores.
Aos doze anos de
idade
fiz voto de castidade,
conservei a virgindade
como Francisco
de Salles.
Amei os meus semelhantes,
não votei
ódio a ninguém,
perdoei os inimigos.
Não desejei
ser político,
nunca fiz revoluções,
respeitei a autoridade
e a Santa Igreja
Católica,
em cujo seio somente
pode haver felicidade.
...Ao meu compadre
e amigo
Adolfo, conde,
Van Den Brule
e seus herdeiros
legítimos,
deixo o Sítio
dos Veados
em terras do município.
...E quero ser
sepultado
sem honras de funerais,
que por mim sejam
rezadas
doze missas em
cinco anos,
igualmente o mesmo
número
às almas
do Purgatório.
Nomeio Testamenteiros
o dr. Floro e o
conde
Adolfo e o coronel
Antônio Luiz
Alves Pequeno.