Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Nilza Amaral


 

Vampiros urbanos

 

Nem todos que nos chupam o sangue são vilões, exceto os pernilongos.

Descobri que era um vampiro, no final da segunda dentição, ao perceber meus caninos um tanto mais pontudos do que o normal. No começo suspeitei apenas, afinal não era muito versado em caninos, mas era muito entendido em vampiros. À medida que mordia inconscientemente minha língua nas horas das refeições, entendi que era doido pelo gosto adocicado do sangue ao saboreá-lo com prazer. Assim fui tirando minhas conclusões, acostumando-me a essa vontade esquisita, passando a dilacerar a língua por deleite. Mais tarde comecei a reparar nos traços de minha família. Meu pai por exemplo, que afirmava ter vindo direto da Valáquia, tinha uma boca em ricto e ao sorrir deixava à mostra apenas as pontinhas dos caninos, e minha mãe, que se dizia da linhagem da princesa Cneajna, como a sua antecessora, era doida por uma mordida no pescoço, vivia provocando o meu pai, que não hesitava em dar-lhe chupões, responsáveis por três dias de marcas roxas em sua pele branca. Além disso, ambos adoravam trajar uma capa e tal qual os habitantes da Transilvânia, possuíam coleções desse tipo de traje – pelerines pretas forradas de vermelho que jogavam dramaticamente sobre os ombros quando saíam para seus programas noturnos dos quais voltavam pálidos e fracos, verdes de ressaca, e tentavam acalmar o estômago, bebericando chás esquisitos. Cresci nesse ambiente excêntrico, sem que ambos se preocupassem muito com a minha educação transcendental, e depois que os dois morreram ao mesmo tempo, além de me deixarem como única herança as pelerines e a casa assustadora, largaram pela casa um manual: Dez regras para ser um vampiro de verdade. Inconseqüentes como eram, também me deixaram o desprazer de jamais me esquecer deles, pois exigiram como último desejo, serem depositados em caixões brancos e conservados no gazebo inglês no centro do jardim. De modo que somente poderia desfrutar da casa se cumprisse a vontade do casal, estipulada em testamento: respeitar o seu repouso durante dez anos. Essa vontade foi feita. E não foi de todo improdutiva visto que a maioria de minhas namoradas, lobas excêntricas que eu achava pelas florestas urbanas, encantava-se com a decoração agressiva, muitas até insistindo para repousar num daqueles caixões imaculados, ignorantes do fato de que já estavam ocupados. Passado esse tempo, com a presença dos responsáveis pelo cumprimento da promessa, abrimos o gazebo, depois os caixões e lá estavam os corpos intactos. Não por milagre, diziam os testamenteiros, afinal foram embalsamados, esquecendo-se de que vampiros não envelhecem, nem morrem, a não ser que apunhalados sejam com a tal faca de prata. Mas a certeza de que eu era realmente um vampiro me foi dada no dia em que a decisão de cremar os corpos foi aprovada por todos os implicados burocraticamente na questão. Depois da cerimônia todos puderam ver dois morcegos voando para o espaço, fato que não chamou a atenção dos presentes, pois segundo o dono do crematório, morcego era o que mais havia na região. Não entrei em detalhes, mas guardei para mim a certeza da minha origem, confirmada naquele momento, pois não há fogo que queime vampiros, por mais que se diga que o fogo tudo aniquila.

Vampiro verdadeiro ou decadente, a necessidade me obrigava a comportar-me como a maioria dos humanos. Não sendo descendente direto de Vlad Dracul, minha fortuna extinguira-se durante os anos de ociosidade a espera da abertura dos esquifes de meus pais. Na verdade não me importava muito com os despojos fúnebres, o meu maior desapontamento foi descobrir que meus diletos progenitores, jamais haviam pensado no futuro do único filho, pois somente no cinema o herói pode viver de renda anônima, morando numa casa assombrada. E se eu esperava encontrar alguma promissória a descontar que pudesse prover a minha existência futura, essa esperança desfez-se no momento solene da abertura dos ataúdes. Nada havia ali, além dos defuntos, a não ser que num momento de distração da minha parte, já houvessem surrupiado a tal fatura, pois quando há advogados envolvidos, os acontecimentos podem ser os mais imprevisíveis.

E assim começou a minha sina de vampiro urbano. Bem, como primeira providência, eliminei da minha agenda, o ponto das lobas excêntricas. Não poderia ter a concorrência de dentes afiados, evitaria um duelo de iguais, ao contrário, interessavam-se as cândidas mocinhas prontas a acreditar em histórias de fadas, as chapeuzinhos vermelhos da vida – pelo menos teríamos algo em comum – as pelerines nos ombros, nada muito agressivo. Segundo o manual dos vampiros, a segunda regra dizia que as vítimas deviam ser empaladas para uma futura necessidade, porém, nos dias atuais, as possíveis e futuras vítimas estavam sempre disponíveis e as regras teriam que ser renovadas. Portanto, providenciei as minhas regrinhas particulares. Um vampiro tem que ser charmoso e inteligente, assim sendo uma das minhas primeiras providências foi fazer reflexos nos cabelos, procurando cabeleireiros de renome, desses aos quais você pode ficar devendo pois jamais se submeterão ao vexame de protestar um cliente e correr o risco de perder outros. Teria que bronzear a pele, vampiros pálidos estão fora de moda. Espantei-me com a quantidade de candidatos ao estratagema, seriam todos vampiros? Não agüentaria tanta concorrência. E finalmente teria que me versar nas letras, tornar-me Poeta, as mulheres amam os Poetas, que por sua vez amam as mulheres que podem patrocinar as suas obras. A minha obra, porém, dependia de patrocínio absoluto, começando pelo gazebo que pedia uma redecoração com um novo esquife, pois pretendia começar a exercitar minhas mordidas assim que estivesse preparado física e intelectualmente, e por conseqüência teria que me dispor a dormir onde dormem os vampiros. Seguindo o exemplo dos humanos, investi no meu projeto faturando promissórias para noventa dias o que me daria um intervalo para decidir o meu destino. Finalmente, de cabelos iluminados, pele bronzeada, alguns versos de Drummond, Otávio Paz e Pessoa, e Yeats, um inglês para sofisticar. Cultura de bom tamanho, versos devidamente decorados, saí para a luta. Meus campos de batalha seriam as reuniões sociais de clubes de elite onde pululam moçoilas ambiciosas. Resolvi adotar o nome de Estevão, o nome de um dos primos de Drácula. Sendo um nome comum, não despertaria suspeita, e quando me apresentava, dizendo num tom cínico, muito prazer, Estevão o vampiro, causava o maior frisson. A verdade não é tomada a sério.

E assim comecei a minha carreira, fazendo legiões de apaixonadas pelo meu porte elegante, pelos sussurros nos ouvidos famintos de carinho, pela impressão de lorde que eu causava. Uma delas porém, me deu um alerta. Malhada, enxuta, cabelos loiros soltos – a ninfeta, ah, essa seria a minha primeira mordida. Corremos para minha casa, ao cair da tarde quando qualquer paisagem é melhorada pelo tom róseo do entardecer. Recitei Pessoa, esse deveria estar mais próximo de uma estudante, e ela aceitou rindo a idéia de uma alma pequena, e curiosa, queria saber, alma tem medida? A noite estendia-se na minha cama enorme, e além da noite, a minha lolita. Até que chegou o momento mortal, o momento da fatal mordida. E então descobri que as minhas presas não tinham a dimensão esperada, esforçava-me para atingir a pescoço alvo, a jugular fresquinha, mas não conseguia, abria a boca ao máximo, arreganhava as mandíbulas, inútil, a arma letal não funcionava, faltavam centímetros para alcançar o objetivo. Não poderia falhar logo na primeira noite. Ela não percebeu nada, virou-se com um puxa, você é melhor que o meu personal trainer, e saindo da cama, nua e linda, olhou a lua por alguns minutos, desceu correndo as escadas, e gritou de lá, tchau cara, vou nessa. E foi. Levantei-me, abri as janelas do quarto tentando aliviar o sufoco do fracasso. Tentaria novamente com mulheres mais velhas, de veias mais salientes, e talvez um pouco mais intelectuais. As intelectuais são raposas matreiras, talvez dê certo. Enquanto isso não custava dar uma lixadinha para alongar um pouco o material. Conheci então a jornalista famosa, e sem muita corte, os noventas dias das promissórias estavam se esgotando, entre comentários sobre a economia do país, corrupção dos políticos, nádegas dançantes, O México de Otávio Paz, nesse ponto ela falou que preferia letrados mais agressivos, como Tom Wolf, com o seu Décadas Púrpuras, assustei-me como o sobrenome, mas fomos esquentando, sentia meus dentes latejando de desejo, procurei-lhe o pescoço e senti aquela veia quente, pulsante, embebida do líquido esperado, sentia o gosto adocicado antes mesmo de furar com a minha agressividade, aquele canal irresistível, ah, as mulheres são feitas para o amor eterno, é disso que os vampiros precisam... Ansiosa, a jornalista acostumada a furos, não se encaixava nesse sexo esquisito, mas subjugava-se às minhas manobras, até que descobri que se não quisesse um segundo fracasso teria que mordê-la com todos os dentes, e ao fazê-lo, ao perceber o sangue que jorrava em borbotões daquele grosso pescoço, alcancei o clímax jamais experimentado por qualquer outro vampiro. Agora sim, podia me orgulhar da minha qualidade. A jornalista ensangüentada, porém, queria mais, aliás queria o que viera buscar e não desistiria do objetivo. Até que decaída, desistiu e correu desesperada para as escadas. Nunca mais a vi, nem soube se vampira tornou-se, mas logicamente precisei mudar de ambiente. Ser um vampiro em século de transição não é fácil, portanto, resolvi como Drácula voltar-me a outros horizontes e como não se usa mais expulsar não-cristãos, mas sim abrigar os sem-tetos, ou sem-terras, loteei o terreno ao redor de meu castelo onde foi construído um condomínio de luxo e resolvi o meu futuro. Comprei um banco de sangue, e vivo em paz com a humanidade. Apesar de meus vizinhos me julgarem um excêntrico, paguei as promissórias e hoje consigo dormir em berço esplêndido, ou melhor repousar confortavelmente no meu esquife de luxo. De onde me levanto só para voar de vez em quando, sem nem ao menos assustar os moradores acostumados com os morcegos que infestam a região. Posso dizer que não sou um vampiro vilão. De vez em quando surge uma ninfeta curiosa em roupas de laicra, que enxoto ternamente. Os vampiros de hoje em dia seguem o ritmo do tempo e vivem de acordo com os seus caninos.
 

 

 

 

 

19.07.2005