"Sou apenas Humberto Teixeira"
Nirez
Especial
para O POVO
(4.7.2000)
Uma entrevista histórica
e inédita com o "doutor do baião" concedida em 1977 ao pesquisador
Nirez.
De tão pouco lembrado,
o destino já fez sua fama: ser o compositor esquecido das grandes
músicas que marcaram parte da vida musical do rei do baião,
Luiz Gonzaga. Pois se poucos artistas conseguiram mergulhar na alma nordestina
como Gonzagão, era Humberto Teixeira que estava por trás
de inúmeras composições, como "Assum Preto", "Paraíba",
"Juazeiro" e, principalmente, "Asa Branca". Cantadas ao som do resfolego
da sanfona do velho Lua e ouvidas pelo Brasil inteiro, a marca de uma gente
que canta, apesar das dores constantes. Ali estava a assinatura deste cearense
de Iguatu, o "doutor do baião", que para muitos acabou esquecido
nos créditos miúdos dos discos de seus intérpretes.
Apesar disso, não é preciso puxar muito da memória
para lembrar algumas de suas composições. Foi o caderno Sábado,
do O POVO, que em 31 de dezembro de 1994, uma semana antes dos 80
anos do compositor cearense, dedicou-lhe uma edição e publicou
uma entrevista histórica com o ``doutor do baião'', concedida
em 1977 ao pesquisador Nirez. O jornal antecipava ali uma entrevista que
seria publicada no livreto Eu Sou Apenas Humberto Teixeira, também
por ocasião do seu aniversário. Teixeira faleceu em 1979,
dois anos depois da entrevista, e O POVO rendeu-lhe nova homenagem.
Saudade, nosso remédio é lembrar...
Você vai ler a seguir uma raridade.
Os arquivos dos jornais brasileiros - inclusive os cearenses - são
incrivelmente pobres em relação a Humberto Teixeira. Quase
nada foi registrado enquanto o ``doutor do baião'' estava vivo.
Com sua morte, o nome do autor de ``Asa Branca'' caiu, inexplicavelmente,
em um esquecimento ainda maior. A entrevista editada aqui em primeira mão
pelo Sábado será publicada na íntegra
junto com o CD comemorativo aos 80 anos de Humberto Teixeira, que será
lançado em 1995 pela Memória Equatorial.
Nirez - Primeiramente, qual o seu nome completo?
Humberto Teixeira - Humberto Cavalcanti,
com i (risos) Teixeira. O fato de eu usar só Humberto Teixeira criou,
de certa forma, um problema dentro da minha casa. Minha mãe é
muito ciosa do Cavalcanti. Ela é Cavalcanti de Albuquerque. Depois
que o Gilberto Freyre escreveu que isso era a nobreza indígena do
Brasil, ela não entende bem porque eu não uso o meu nome
completo: Humberto Cavalcanti de Albuquerque Teixeira. Ela fazia questão
disto. Eu digo: mas mamãe, nome artístico é preferível
a gente abreviar e o nome do papai também é muito ilustre
(risos).
N - Quem era seu pai?
HT - Meu pai era João Euclides Teixeira,
filho de um chefe político do Interior, coronel Francisco Alves
Teixeira, muito conhecido em todo o sul do Estado. Mas somos gente simples,
minha origem é muito modesta. De qualquer maneira, meus pais se
orgulham do nome que portam. Mas eu sou apenas Humberto Teixeira. Meu pai
era João Euclides Teixeira e minha mãe, Lucíola Cavalcanti
de Albuquerque Teixeira.
N - Onde estudou as primeiras letras?
HT - Estudei em Iguatu mesmo. Primeiro
em casa, depois num colégio que tinha lá. Colégio
do Dr. Rolim, era como se chamava. Depois aprendi o que o colégio
podia me ensinar. Era um colégio modesto, não só nas
suas instalações como também no seu professorado.
De maneira que em pouco tempo meus pais sentiram a necessidade de me mandar
pra Fortaleza, onde eu vim continuar meus estudos. Aqui fui deixado no
Instituto São Luiz.
N - Quando sentiu brotar dentro de si, pela primeira
vez, a música?
HT - Eu devia ter de 5 pra 6 anos de idade,
quando meu pai me levou de presente um instrumento estranho que ele comprou
aqui em Fortaleza. Era uma espécie de gaita com bocal, mas tinha
um teclado de acordeon. Um instrumento que depois procurei muito e nunca
mais vi. Não sei como aquilo veio bater no Ceará, numa casa
de música daqui. Comecei a tentar a embocadura daquele instrumento
e fui manejando o teclado e coisa e tal. O fato é que em pouco tempo
já tocava no tal instrumentozinho estranho e bizarro. Tirei minhas
primeiras músicas, as canções, as modinhas do lugar.
Depois tornei a fazer minhas próprias modinhas, minhas próprias
músicas. Claro que muito primárias, muito imaturas. Apenas
uma manifestação muito objetiva de um pendor que minha mãe
descobriu e logo em seguida me botou pra estudar flauta com meu tio Lafaiete
Teixeira, o flautista da terra. Um homem formidável, extraordinário.
Uma musicalidade dessas fantásticas. Mas minha vontade, lembro muito
bem, era estudar piano. Tinha loucura pelo piano. Existiam algumas pessoas,
todas moças, todas mulheres, que tocavam piano na minha terra. Quando
manifestei esse desejo, meu pai disse: ``Absolutamente! Vai estudar flauta
ou outra coisa qualquer, mas negócio de piano não. Piano
é coisa para mulher''. E daí essa frustração
que carrego até hoje. Toco um pianozinho pra mim mas não
me aventuro a mostrar nem nada. Depois da flauta eu estudei também
bandolim. É um instrumento que eu cheguei a tocar lá em Iguatu.
Depois, quando eu vim pra Fortaleza, é uma outra história.
N - E quando veio pra Fortaleza? E por quê?
HT - Meu pai me internou no antigo Colégio
São Luiz, do Dr. Francisco de Menezes Pimentel. Eram os dois irmãos:
Francisco de Menezes Pimentel Júnior e o outro, que tinha uma coisa
muito rara, o mesmo nome do irmão, só que era o Francisco
de Menezes Pimentel Sênior, aquele que mais adiante veio a ser Governador
do Ceará e representou o Ceará como deputado e senador durante
oitos anos. Um educador fora de série e que, incrível, muitos
anos depois veio a se tornar meu colega na Câmara dos Deputados quando,
através daquela suplência que eu consegui aqui, numa tentativa
eleitoral, acabei dando com os costados no Parlamento. Até hoje
eu não sei bem como. Tenho a impressão que foi o bico da
asa branca que me levou pra lá.
N - Aqui em Fortaleza, fez parte de algum conjunto?
HT - Não. Ao mesmo tempo que fazia
meus estudos no colégio São Luiz e posteriormente no Liceu
do Ceará, estive matriculado num curso de flauta do maestro Antônio
Moreira. Era um maestro muito conhecido aqui no Ceará. Tinha uma
orquestra que tocava no Clube Iracema e no Cinema Majestic. Tocamos muitas
vezes acompanhando aqueles filmes mudos. Lembro muito bem de um filme,
The Big Parade, um filme de John Gilbert. Os artistas hoje estão
todos desaparecidos. Tinha uma marcha que era: (canta) Pam ti tam ram tam
tim tam. Nós tocávamos aquilo acompanhando na flauta. Eu,
o Tarcísio, o maestro Antônio Moreira. Bons tempos. Eu me
lembro muito bem.
N - Quando foi para o Rio de Janeiro?
HT - Fui pro Rio porque queria seguir Medicina.
Mas descobri que eu ia ser doutor e não médico. Então
mudei pro curso de advocacia e acabei me formando advogado.
N - E qual foi a sua primeira composição?
HT - Um dia cheguei para o maestro Antônio
Moreira, usando um artifício, e disse: Olha, maestro: encontrei
lá nos alfarrábios da minha mãe uma valsa antiga e
gostaria de mostrar pro senhor. E toquei aquilo na flauta. O maestro disse:
``Olha, é bonita. A melodia é interessante''. Ele perguntou
pela letra e eu disse que depois levaria. E ele disse: ``Mas há
qualquer coisa aqui. Tenho a impressão que está quebrada,
não sei bem. De onde é que sua mãe tirou isso?' Então
ele disse: ``Olha Humberto, vamos deixar esta história de alfarrábio,
negócio de sua mãe e coisa e tal. Isso aí é
um negócio que você fez, não é?' Eu digo: é
sim, maestro. Ele disse: ``Olha, tá muito bom, mas eu vou lhe ensinar.
Tá faltando ainda a técnica da composição.
Você tem que ajeitar aqui e ali e tal''. Ele me ajeitou e essa foi
minha primeira música impressa. Era uma valsa que fiz em homenagem
à miss Hermengarda, uma moça do Ceará que foi eleita
miss num dos primeiros concursos desses que houve aqui. Eu, naquele encantamento,
via aquela moça como uma coisa inatingível. Eu era garoto
e sonhava. E acabei fazendo a tal valsa dedicada à missa Hermengarda,
uma moça da família Gurgel - Hermengarda Gurgel, uma coisa
assim. O maestro me fez uma surpresa maravilhosa. Mandou aquela valsa pra
São Paulo e editou. Um belo dia, numa das aulas, ele me deu de presente
a música editada através de uma editora, se eu não
me engano, dos irmãos Vitale, de São Paulo.
N - Houve uma que fez parte de um concurso e ganhou?
HT - Houve. Eu levei pro Rio aquele mesmo
ideal, aquela mesma flama, aquele mesmo elã, aquele mesmo pendor
nato de música. Tentando de todas as formas abrir caminhos naquela
selva doida. Levei anos e anos pra conseguir gravar minha primeira música.
E eu não fazia outra coisa senão música de todo o
tipo e feitio. Procurava os grandes cantores como Orlando Silva, Sílvio
Caldas, Elisinha Coelho e Carmem Miranda, os cantores da época,
mas eles não davam a menor confiança pra minha música.
Havia dias que eu dizia pra mim mesmo: ``Oh! Diabo. Tenho que abandonar
isso. Devo ser muito ruim. Ninguém aceita minha música.''
Mas é que eles tinham seus compromissos, seus compositores prediletos.
E como bom cearense, perseverei. Até que um dia veio a primeira
gravação. Mas neste intercurso, como eu não podia
gravar, um dia entrei numa casa editora de música que até
hoje existe no Rio, chamada a Guitarra de Prata. Eles lá submetiam
à apreciação de um pianista, um chefe de orquestra,
um maestro, eu não sei bem, toda e qualquer composição
que você desse entrada lá, manuscrita. Se eles gostassem,
sobretudo do título, se ela propiciasse botar um bonito clichê
na capa, eles editavam. Até que eu gravasse a primeira música,
editei na Guitarra de Prata mais de cem músicas de todos os gêneros
que você pode avaliar. Músicas de caráter puramente
nordestino, músicas estrangeiras, regtime, canções,
modinhas, valsas. Foi quando comecei a receber os primeiros proventos,
as primeiras dízimas resultantes de música, porque cada exemplar
vendido dava um tostão para o autor. E eu vendi muitos exemplares
de música: ``A Mentira da Felicidade'', ``Teu Coração
é Um Pão Duro'', ``A Virgem não sei de quê''
e outros títulos. Eu me aprimorava nos títulos p2orque isso
ajudava a vender a música.
N - E o "Meu Pedacinho"?
HT - Uma revista que não existe
mais, O Malho, abriu um concurso pra músicas carnavalescas.
Na época era um prêmio valiosíssimo. O primeiro lugar
seria aquinhoado com cinco contos de réis. Centenas de autores do
Rio, sobretudo aqueles consagrados, concorreriam. Os cinco premiados: Ary
Barroso, Ary Kerner, Índio das Neves, José Maria de Abreu
e Humberto Teixeira. Eu quase caí das nuvens e disse: não
é possível. Deve ter um homônimo aí, um outro
Humberto Teixeira. Mas logo em seguida a reportagem trazia o nome da minha
música premiada. Apareci lá na redação da revista
e conheci uma figura extraordinária que marcou muito a minha vida:
Oswaldo Santiago. Compositor, mas sobretudo o criador do direito autoral
no Brasil. Antes de Oswaldo Santiago não existia, isso era uma seara
de todo mundo. A música não era mercadoria que rendesse juros,
não existia nada disso. O Oswaldo Santiago é que, em arrancos
de verdadeira genialidade e vendendo os mais incríveis ódios,
instalou o direito autoral no Brasil. Mas eu conheci o Oswaldo Santiago
e ele disse: ``Mas menino, é você...' Eu tinha naquela época
16 anos. Ele disse: ``Eu tava pensando que Humberto Teixeira era uma figura
aí, conhecida e coisa e tal. Mas você faz música?'
E pela primeira vez saiu um retrato meu impresso numa publicação.
Mas entre as cinco premiadas, através de um espetáculo público
no Teatro João Caetano, eles iriam selecionar os cinco prêmios.
E aconteceu que, dentro da minha ingenuidade, da falta de prática
dentro daquele metiêr, me descuidei inteiramente. E só fui
ter ciência no dia do espetáculo. Então, quando eu
chego no Teatro João Caetano, me barraram de saída. Até
provar que era um dos autores premiados e que precisava entrar pra acompanhar
minha música... Quando eu chego lá nos bastidores, onde tava
aquela azáfama natural de uma véspera de espetáculo,
encontro todo mundo ensaiando com suas músicas já orquestradas.
A minha não tinha sido ensaiada, não tinha cantor, não
tinha nada. Eu quase que morri de pena de mim mesmo lá dentro do
teatro. Mas aí eu conheci outra figura formidável: Aracy
de Almeida. À trouche, mouche, de pé quebrado, aquilo, ela
lendo num pedacinho de papel de embrulho, cantou a minha música
e ela tirou, claro, o 5° lugar porque não tinha 6°. Mas
valeu a pena. Foi formidável a experiência. Mas não
me abriu ainda as portas da gravação. Apenas editaram o ``Meu
Pedacinho''.
N - Onde e em que circunstâncias conheceu
Lauro Maia?
HT - Lauro Maia eu conheci no Rio. Engraçado,
eu não o conhecia antes, daqui do Ceará. Só o conhecia
de nome, por um fato muito afetivo, muito de família. Lauro Maia
na época namorava a minha irmã. Minha família tinha
ficado no Ceará e só eu residia no Rio. E ele veio casar-se
com minha irmã Djanira. Depois eles foram para o Rio e, claro, nessa
ocasião é que eu fui apresentado ao Lauro Maia. Tudo que
ele tinha gravado com os Quatro Ases & Um Curinga, que eram quase que
exclusivos do Lauro Maia, eu conhecia. E quando ele foi pro Rio teve início
uma grande amizade.
N - Viveu da advocacia, da música ou de ambos?
HT - Eu, no princípio, vivi de advocacia,
mas eu pratiquei mil instrumentos. Pra sobreviver no Rio fiz coisas do
arco da velha. Vendi óculos Ray Ban, fui agente de restaurante,
telefonista, fiz concurso pro Ministério Público. Depois
que me formei, abriu meu próprio escritório de sociedade
com dois ou três colegas da minha turma. Eu cuidava de tudo. Defendia
o sujeito que matava o outro no campo de futebol, o que roubava o vizinho.
N - Quando casou-se e com quem?
HT - Eu resisti muito ao casamento. Eu
levava aquela vida, na época, depois que passaram as vacas magras,
eu passei a ter uma vida muito boa, fui um boêmio. Vivi durante dez
anos na noite e naquelas amizades com artistas, cineastas. Meus grandes
amigos eram Anselmo Duarte, de cinema, Jardel Filho, de Teatro, Jorge Dória,
Francisco Carlos, que depois eu lancei na música e tudo isso. Mas
qual foi mesmo a pergunta que você me fez?
N - Quando casou-se e com quem?
HT - Ah, sim. De maneira que com aquela
boa vida eu resisti muito ao casamento. Mas como não podia deixar
de ser, um dia caí (risos). Eu me casei com uma moça chamada
Margarida Pólis, uma moça de São Paulo, de Bauru.
Artista, pianista, uma pianista exímia, maravilhosa e tudo isso.
Eu estive casado durante sete anos, depois me separei. Contingências,
coisas, enfim, da vida. Quando eu readquiri a minha liberdade, resolvi
nunca mais soltá-la. Então eu sou um solteirão até
hoje, de amores dispersos, coisas que passam, vão e vêm, mas
nada de querer me molhar (risos). Agora, do meu casamento ficou a prenda
maior da minha vida. É ela e minha mãe. É minha filha
(Denise Dumont). Tenho um neto que se parece muito comigo,
muito bonito. Eu não estou aqui fazendo aquele negócio dos
avós corujas não, é que ele realmente puxou à
minha filha, que é muito bonita, e ao pai, um rapaz bonito de televisão.
É o Cláudio Marzo, aquele artista.
N - Como você entrou na política?
HT - Eu tinha sido eleito, três anos
seguidos, como o melhor compositor nacional num daqueles concursos organizados
pela Revista do Rádio. Fui escalado, nesse ano do tricampeonato,
como o orador que agradeceria a solenidade. Foi no Teatro Municipal. O
padrinho, por acaso, era o doutor Adhemar de Barros, candidato em potencial
à Presidência da República. Depois que eu fiz o meu
discurso, o doutor Adhemar me chamou e disse: ``Olha, rapaz. Você
é um bom orador. Vá lá na sua terra. Eu vou lhe dar
uma legenda, você vai se candidatar''. E meteu aquela coisa na cabeça.
Eu disse: Doutor Adhemar, eu não entendo nada de política,
eu não conheço nada, eu não tenho nenhuma base política
no meu Estado. ``Tem a sua música, não vá atrás
disso não. O importante é ter legenda, coisa que todo mundo
quer e eu tô lhe dando''. E eu vim. Foi uma aventura. Eu saí
com uma suplência que acabou me botando no Parlamento. Acabei diplomado
deputado federal. Luiz Gonzaga, o querido e velho e atual e sempre parceiro
e amigo, estava em Currais Novos, eu acho que no Rio Grande do Norte. Quando
ele soube que eu vim, saiu de lá e veio me prestar uma ajuda maravilhosa,
inclusive de transporte e gasolina porque eu não tinha um tostão.
Luiz Gonzaga e o bico da asa branca é que me botaram lá no
Parlamento Nacional.
N - E a sua primeira parceria com Lauro Maia, foi
o ``Samba de Roça''?
HT - Minha primeira demonstração
musical ao lado Lauro não foi propriamente uma parceria. O Menezes
Pimentel tinha me pedido pra eu fazer uma música. Tava pra se abrir
uma estação de rádio e ele me pediu pra fazer uma
música sobre o Ceará. Ele nem precisava pedir porque eu já
tinha feito. Eu já havia composto uma música apoteótica,
naquele gênero das músicas do Ary Barroso, gravada por Déo
e a participação de Lauro Maia. Ele foi quem orquestrou e
conduziu a orquestra na gravação de ``Terra da Luz'', esse
poema sinfônico que eu fiz, ou por outra, semi-sinfônico. Era
uma música de exaltação e, você deve saber,
foi muito bem aceita aqui no Ceará, tornando-se inclusive prefixo
musical de estações de rádio e televisão.
N - E a parceria propriamente dita?
HT - Não sou muito bom de datas
e de cronologia. Vou falando ao sabor do que vou lembrando. Fizemos talvez
uma dezena de músicas. Eu não sei se passa disso. Meu contato
com o Lauro era mais afetivo do que propriamente musical. Lauro era poeta
também. Não sei onde começava o poeta e onde terminava
o músico nas coisas que eu fiz com ele. E isso gerou um desacerto
que me magoou muito, mas que nunca dei importância maior no sentido
de tomar represálias. Em uma parceria daquele tipo você entra
numa intimidade quase fraterna. Tinha músicas inteiramente minhas,
não só música como letra, e que o Lauro figurou na
parceria. Da mesma forma que eu com ele. Outras músicas formidáveis
que o Lauro tinha e que eu reletrei, botei a letra inteira. Mas, como algumas
dessas músicas, antes do Lauro ir pra lá, eram conhecidas
aqui, surgiu uma história de que eu estaria me aproveitando de músicas
dele. O que é pior, depois da morte do Lauro, disseram que eu herdei
o baú de músicas do Lauro. Isto é um negócio
grosseiro, injusto. Minha principal obra está vinculada à
minha parceria com Luiz Gonzaga. Pelo menos meus grandes sucessos foram
feitos com Luiz Gonzaga e, ao que eu saiba, Lauro Maia nunca compôs
um baião. Eu costumo dizer o seguinte: o baião deslizou no
tapete, na esteira, na trilha que o balanceio deixou. Mas tenho a impressão
que às vezes isso é uma espécie de manifestação
de ternura do próprio Estado, do povo, enfim. O Lauro Maia era queridíssimo.
Eu não vivi o meu sucesso aqui no Ceará, eu saí muito
cedo. A história do meu sucesso e a morte prematura do Lauro deflagraram
um negócio muito natural pra aceitação de uma história
tão grosseira como essa.
N - Como foi esse contato com Luiz Gonzaga?
HT - O Luiz Gonzaga, tal como eu, como
Lauro, estava fazendo os primeiros sucessos dele com a "Mula Preta", com
"Xamego", com as músicas que ele fazia com o Miguel Lima. Mas a
vontade do Luiz era lançar a música do Norte, como ele chamava.
Ele não dizia no Nordeste. Ele procurou o Lauro Maia e o Lauro disse:
"Olha rapaz. Esse negócio de campanha, isso me apavora. Eu sou um
homem indisciplinado, eu não guardo coisas nem compromisso de um
dia pro outro. Acho mais interessante você procurar meu cunhado Humberto
Teixeira. Ele também é compositor. Ele é mais organizado".
Um belo dia, estou no meu escritório de advogado lá no Rio,
quando me procurou o Luiz Gonzaga. Ficamos, naquela tarde, de quatro e
meia até quase meia-noite, nesse primeiro encontro. Naquele dia
nós chegamos a duas conclusões muito interessantes. Uma delas
é que a música ou o ritmo que iria servir de lastro para
nossa campanha de lançamento da música do Norte, a música
nordestina no Sul, seria o baião. Nós achamos que era o que
tinha características mais fáceis, mais uniformes. Naquele
mesmo dia nós fizemos os primeiros versos, discutimos as primeiras
idéias em torno da ``Asa Branca'', que só dois anos depois
foi gravada. No dia em que gravamos, com o conjunto de Canhoto, ele disse
assim: ``Mas, puxa, vocês depois de um negócio desses, de
sucessos, vêm cantar moda de igreja, de cego, aqui? Que troço
horrível!'. Aí então, eles com um pires na mão,
saíam pedindo, brincando, uma esmola pro Luiz e pra mim dentro do
estúdio. Mal sabiam eles que nós estávamos gravando
ali uma das páginas mais maravilhosas da música brasileira.
Três dias depois do primeiro encontro com Luiz Gonzaga já
fizemos, de pedra e cal, o primeiro baião que se gravou em todo
o mundo: ``Eu vou mostrar pra vocês/ Como se dança o baião/
E quem quiser aprender/ É favor prestar atenção...'
Eu me sentia como se estivesse com bitola, aquela coisa toda pinicadazinha,
cortada, sujeita àquele ritmo quadrado. Logo depois descobrimos
que podíamos deixar o ritmo solto e extravasar nosso lirismo. Depois
veio ``Juazeiro'', veio ``Xanduzinha''. Era o início de centenas
de músicas que fizemos juntos. Muita gente hoje pergunta como é
que eu me deixei ofuscar, me ocultar tão inteiramente assim à
sombra do prestígio fabuloso que o Luiz granjeou, sobretudo no que
diz respeito à autoria. Principalmente depois do processo de mitificação
de Luiz Gonzaga, da redescoberta que a onda baiana fez em torno dele, muita
gente diz que eu sou o letrista das músicas de Gonzaga. Não
existe isso. Muitas delas são minhas integralmente. Letra, música
e tudo. Como outras são do Luiz. O baião, se tivesse sido
feito só por mim, continuaria sendo apenas um negócio inédito,
ao passo que com o Luiz ele se tornou esse marco extraordinário
dentro da música popular brasileira marcando uma década de
sucessos fantásticos. De 47 a 57, quer queiram, quer não,
os documentos, a história dos suplementos, das fábricas,
as gravadoras, o rendimento autoral das sociedades, tudo era feito em torno
do baião. O Luiz, por exemplo, tem uma mágoa que você
não pode avaliar, em torno disso. Os aprendizes de historiadores
da música popular brasileira pulam de 47 pra Bossa Nova. Eles falam
da música brasileira, o choro, a parte do choro, a parte daquilo,
a parte da Bossa Nova, a parte da Tropicália e não sei o
que mais. E o baião não existe? Por que querer botar uma
esponja em 10 anos de sucesso? O Luiz foi um pioneiro em vários
aspectos. Veja você que quando os cantores, os compositores se apresentavam
de smoking, de terninho e gravatinha, o Luiz já vinha de talabarte,
chapéu de couro e tudo. Pra mim o Luiz Gonzaga foi o primeiro hippie
da música popular brasileira.
N - Quando e de quem recebeu o cognome Doutor do
Baião?
HT - Isso foi o Luiz. Eu não sei
se o Luiz, com tanta realeza, tava assim já entrando em fastio e
aí resolveu me dar uma fatia da coisa. Foi o Luiz Gonzaga que me
chamou pela primeira vez de Doutor do Baião e isso ficou. De uma
certa forma, deveu-se ao fato de eu ser advogado, o intelectual do baião,
como ele dizia. Mas eu não sou doutor de coisa nenhuma.
N - Como nasceu a Academia de Música Popular?
HT - Em 1958, eu, o Lamartine Babo, o Braguinha,
o Roberto Martins, o Ataulfo Alves e mais uns dois ou três amigos
da mesma sociedade a que nós pertencíamos, muito deles já
falecidos, achamos que devíamos criar uma academia onde nós
pudéssemos preservar nossa obra. Você sabe que todo artista
é aleatório, é descuidado, indisciplinado, não
guarda nada. De maneira que imaginamos fazer um repositório das
nossas coisas em torno de um arquivo. Criamos a Academia Brasileira de
Música Popular com 50 imortais. Inclusive eu gostaria de dizer pra
você nesse depoimento que o meu patrono é Lauro Maia.
N - O "Juazeiro" foi plagiado pelos americanos.
Como foi aquela história?
HT - Um marinheiro americano pegou o disco
com o "Juazeiro" no Rio, levou e gravou com outro nome. O que é
incrível é que ele, através de um processo tecnológico
até conhecido aí, copiou o disco, tirando a letra e aí
botaram em cima a letra de Peggy Lee. Você escuta no disco de Peggy
Lee os acordes d'Os Cariocas. Isso é que é impressionante.
Mudaram o nome, mudaram tudo. Mas o plágio não foi lá
não. O plágio se estendeu à França, onde ela
foi gravada com o título de "Le Voyageur", O viajante. Eu encontrei
e tenho esse disco também. Nós nunca conseguimos nos ressarcir
desses direitos injuriados e usurpados, nada disso. E o que é mais
incrível: a Peggy Lee, numa viagem que eu fiz aos Estados Unidos,
tornou-se minha amiga. Eu contei o fato pra ela e ela disse que era inocente
e que tinha gravado uma música que a fábrica havia lhe dado.
Ela dizia: "Não tenho nada com isso. O que você está
contando me traz até remorso".
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Cearense de Iguatu
Humberto Teixeira nasceu em Iguatu, no dia 5 de janeiro
de 1915, filho de João Euclides Teixeira e Lucíola Cavalcanti
de Albuquerque Teixeira. Também sobrinho do maestro cearense Lafaiete
Teixeira, que o ensinou a tocar bandolim. As primeiras letras musicais,
Humberto Teixeira estudou em casa mesmo. Aos 13 anos de idade, já
morando em Fortaleza, ele fez sua primeira composição, a
``Valsa Triste''. A primeira música impressa, como conta a Nirez,
foi a valsa Miss Hermengarda, dedicada a uma das misses de bairros de Fortaleza.
Em Fortaleza, Humberto Teixeira fez parte da orquestra do maestro Antônio
Moreira, o Moreirinha, quem lhe ensinou a tocar flauta.
Medicina, Direito e Música
Em 1931, Humberto Teixeira debandou para o Rio de Janeiro
e investiu na Medicina. Desistiu e resolveu tentar o Direito. Acabou mesmo
como advogado. Porém, tudo foi feito sem que ele largasse as notas
musicais. Foi a partir de 1934, quando participou de um concurso de músicas
carnavalescas, que Humberto Teixeira começou a despertar a atenção
das gravadoras. Entre uma investida e outra, ele conseguiu emplacar a música
``Sinfonia do Café'', feita especialmente para a peça beneficente
Muiraquitã, encenada no Teatro Municipal, do Rio de Janeiro. Era
o que faltava para realizar o sonho de gravar um disco próprio.
Encontro com Luiz Gonzaga
O encontro com Luiz Gonzaga aconteceu no escritório
de advocacia de Teixeira, no Rio. Gonzaga estava atrás de um parceiro,
tão nordestino quanto ele, para mostrar ao Sul que o sertão
também tinha música boa. Foi aí que o baião
começou a ganhar projeção. O ritmo sertanejo, propalado
há dezenas de anos pelas bandinhas e cantorias de cego, ganhava
roupagem nova na letra de Humberto Teixeira e na voz de Luiz Gonzaga. ``Baião''
foi a primeira música do gênero gravada: ``Eu vou mostrar
pra vocês/ Como se dança um baião... Eu já dancei
balanceio, chamego, samba e xerém/ Mas o baião tem um quê/
Que as outras danças não têm...''
Sucessos
Depois de muitos sucessos, como ``Asa Branca'', ``Assum
Preto'' e ``Juazeiro'', a parceria com Gonzagão se desfez em 1950.
Humberto, porém, não parou seu caminho. Foi eleito pela Revista
do Rádio como o melhor compositor nacional, por três anos
consecutivos - 1950, 1951 e 1952. Fundou a Academia Brasileira de Música
Popular e tornou-se deputado federal pelo Ceará. Na política,
criou a Lei Humberto Teixeira, que obrigava o poder público a liberar
recursos para artistas brasileiros apresentarem a nossa música no
exterior.
Outras parcerias
Com o cunhado Lauro Maia, Humberto Teixeira compôs
``Samba de Roça'' (1945), ``Só uma Louca não Vê''
(1946), gravados originalmente por Orlando Silva, ``Deus Me Perdoe'', ``A
Marcha do Balanceio'' (1946) e ``Poema Imortal'' (1947), valsa também
na voz de Orlando Silva. Sivuca foi outro parceiro de relevância
inconteste, como em ``Adeus Minhas Fulô'' (1951). Com Carlos Barroso,
o samba ``Morena dos Meus Sonhos'' se imortalizou na gravação
do conjunto Quatro Azes e Um Coringa.
``Insinuações tropicalistas''
Após a parceria com Luiz Gonzaga e a passagem na
política, foi na década de 70 que alguns dos baianos mais
famosos da música popular brasileira tiraram a poeira do baião,
reconhecendo nele "insinuações tropicalistas". O resultado
foi a gravação de "Asa Branca", por Caetano Veloso, numa
versão mais melancólica do que a original; Gal Costa cristalizando
"Assum Preto"; e Gilberto Gil ressuscitando "Dezessete Légua e Meia".
Humberto Teixeira 80 anos
Um CD foi produzido pelo cearense Calé Alencar
pelos 80 anos de Humberto Teixeira, completados se ele estivesse vivo em
5 de janeiro de 1995. O disco reúne 20 músicas assinadas
por Teixeira e seus parceiros, entre gravações originais
e regravações com cantores convidados.
Liberdade após casamento
Humberto Teixeira foi casado por sete anos com a paulista
Margarida Pólis, de quem se separou a pretexto de ``reconquistar''
a liberdade. Do casamento, deixou uma única filha, a atriz Denise
Dumont, que há alguns anos vive nos Estados Unidos. A morte de Teixeira
veio em outubro de 1979, vítima de um enfarte. Morreu aos 64 anos
de idade, em seu apartamento, no Rio de Janeiro. |