Ona Gaia

O Sentido do Amor

Devir Louco

Que me desculpem os seus exacerbados paladinos, mas o devir louco é o reino das paixões. E a paixão? oh! a paixão, o que é isto caro leitor? É bem possível que você tenha a sua opinião. Apesar disso, permita que eu externe a minha. Bem, antes de mais nada a coloquemos no seu devido lugar, ou seja, dentro do corpo. Afinal, toda e qualquer paixão emana do corpo e o corpo é a sua fonte primeira e última. No corpo, a paixão é uma das nossas emoções, como o medo, o susto, a alegria, a coragem e etc. Inclusive, delas, é a principal, posto ser através da paixão que os animais suprem suas necessidades básicas, como a alimentação e o acasalamento. Decididamente, por ser uma emoção básica em qualquer animal, a paixão não é uma conquista da civilização ou da cultura. A paixão, sem dúvida, não é uma invenção humana.

Os seres humanos, entretanto, incorporaram as diversas paixões possíveis, isto é, as emoções, aos seus códigos, símbolos e condutas culturais. Entre os procedimentos necessários da paixão, decodificados e incorporados nas manifestações culturais, um dos mais antigos é a postura de caçador. Esta veio a ser a base modeladora de muitos mitos e ritos ao longo dos 100 mil anos de existência do Homo sapiens sapiens. No bojo dessa postura caçadora veio a paixão pela guerra.

Como condição necessária da vida animal, as emoções evocam situações restritivas uma vez que as necessidades são necessárias apenas enquanto o prazer é ausente. Se há falta, há necessidade e a sua satisfação é o seu limite. Além da necessidade há outra coisa, mas não mais o domínio da emoção. Há sentimento. Porém, a satisfação de uma paixão é o fim e início de outra falta. O ciclo gira em torno da necessidade, da falta e da satisfação, que neste caso, é sempre provisória: mais cedo ou mais tarde o caçador deverá sair à campo atrás de mais caça. E a satisfação, então passageira, não será nada mais ou nada menos do que o retorno da superação de uma necessidade insistindo em voltar. O retorno da necessidade através da permanência da falta, aflora assim que o desejo é satisfeito.

Não há como escapar disso amigo. Se a paixão é uma emoção necessária, sua satisfação deverá ser permanentemente ratificada. Neste caso, enquanto expressão básica da vida animal, a paixão existe porque existe a fome e a reprodução, que garantem a sobrevivência das espécies. Portanto, a paixão está presente no ser humano, assim como está presente nos animais selvagens, sejam mamíferos, répteis ou aves, porque é um instinto básico da luta pela sobrevivência. A paixão, quem diria, hem? é uma emoção demasiada animal!

A guerra só é possível quando existe a paixão por uma causa, na qual a luta pela sobrevivência, traduzida como necessidade de conquista, é um poderoso argumento de convencimento. Entretanto, se é necessidade, isto é, se a paixão é da conta dos instintos e, obviamente, do corpo, então seus parâmetros emocionais estão diretamente relacionados aos ciclos vitais. Ciclos esses que se colocam entre o nascimento e a morte. Em síntese, entre o prazer da vida (o prazer do ganho) e a dor da morte ( dor da perda).

Enquanto substrato de emoções tão díspares, como aquelas que se manifestam no prazer ou na dor, a paixão se manifesta positiva ou negativamente, dependendo do nível da falta a ser satisfeita. Em nome da satisfação da necessidade ausente, a luta e a morte são perfeitamente justificáveis.

Ah, a morte! Limite de toda e qualquer necessidade: a morte de um em prol da permanência de outro; o caçador mata a caça para permanecer vivo; para suprir uma falta só identificável na sua necessidade particular; identidade que só enxerga a si mesmo, acabando por excluir tudo o que é diferente, externo ou estranho. Porém, a natureza caçadora desconhece que ninguém abate uma presa impunemente. Todos os atos efetivados, unicamente, com a emoção da conquista, compromete os corpos envolvidos para sempre. Portanto, a conquista do outro ou do mundo, para a glória do ego, compromete o eu, o outro e ou o mundo, numa mesma miragem sem cor.

Como a paixão se manifesta no corpo, para o corpo e pela química do corpo, que segundo alguns até pode ser identificada e quantificada, ele é a sua catedral. Por isso que a morte desde o início, foi uma questão importante para a consciência. Uma vez que todo esforço visava a manutenção do corpo, como a sua ruína poderia ser tão inexorável, irrevogável, inevitável e improrrogável? Não, não poderia. A morte não era o limite do corpo e, com isto, descobriram a alma, coisa cuja estrutura invisível, sobrevivia além da carne. Opa, incrível! para espanto de alguns, logo descobriram que a alma também apresentava necessidades a serem satisfeitas. Daí inventaram a religião e, as suas manifestações, que desde sempre, foram expressadas através da paixão. Trágica paixão.

As necessidades da alma seriam carências muito profundas que, por sua vez, no extremo oposto, estavam na essência da vida. Por isto o homem inventou este artifício chamado religião, decidido a suprir a maior de todas as faltas, a da vida depois da morte. Visando preencher suas bases: falta, identidade, necessidade e exclusão; desviaram todos os recursos excedentes - aqueles os quais ficaram além das necessidades, quando foram produzidos ao longo do desenvolvimento das civilizações urbanas -, para um corpo invisível, intangível e cujas necessidades e faltas, de fato, ninguém sabia dizer ao certo quais eram. E muitos, em nome disto, se desviaram da natureza e do próprio corpo, porque quiseram acreditar que a vida, a eterna, não era física, porém incorpórea; incomensurável e perfeita mas no entanto, absolutamente fora deste mundo.

Projetada para o espaço inatingível, a paixão criou deuses, santos e até homens coroados por espíritos sobrenaturais, que se apropriando de necessidades divinas impossíveis, justificaram conquistas, massacres, extermínios e a exploração de uns poucos sobre a maioria. E o poder de alguns homens ser mais especial que dos demais mortais, encontrava justificativa por estes se nomearem os representantes, na Terra, das necessidades espirituais segundo as quais eles deveriam suprir.

Está claro que a paixão é eminentemente masculina. Afinal ela não foi aperfeiçoada pelo caçador e pelo guerreiro? Então!?!.. Nada de ilusão, óbvio que ela também está presente na mulher. Aliás, a eminência masculina da paixão no ser humano não se manifesta, forçosamente, do mesmo modo como nos demais representantes do reino animal. É mais que sabido, que entre os leões, por exemplo, são as fêmeas que caçam. Entretanto, cada animal é um animal e embora a paixão se manifeste em todos, foram os homens, através da caça e da guerra, que lapidaram e legaram às civilizações, a atitude apaixonada. A paixão, na mulher, veio a ser reconhecida apenas quando a alma foi descoberta. E o ingresso delas nos rituais até então masculinos, de iniciação espiritual, veio a ser tardio.

Entre as paixões que se manifestam na mulher, a especial, é a que diz respeito à reprodução. Por conta disto a paixão, na mulher, é mais objetivamente (efetivamente) agradável do que no homem. Ou seja, a mulher sente no corpo a satisfação da necessidade reprodutora. Através do sexo, a mulher tem no prazer, algo muito mais objetivo que o homem. Nele, as paixões da caça, guerra e religião, tornam-no mais subjetivo, muito mais estratégico. Na mulher não. Seu corpo físico é um campo de emoções poderosas, pois dele emanam sensações orgânicas, muito mais ricas do que nos homens. Mas ela também está entre o prazer e a dor e nela isto é muito mais bem percebido, visto não adiantar a satisfação de certas faltas, mesmo na fartura haverá a menstruação e senão, a dor do parto.

Na base da nossa atual civilização, entre as paixões, aquelas que foram consideradas as mais importantes de todas, são as da alma. E com um significado trágico: na Idade Média isto se tornou mais claro, ao interpretarem o fim da saga de Jesus como sendo a Paixão de Cristo. Em conseqüência, quando esta idéia envolveu tantos os homens quantos as mulheres, eles chegaram a negar à natureza, qualquer identidade ou semelhança consigo mesmos, visto que os seres componentes dela, eram providos apenas de corpo. Naturalmente que os corpos sem alma, tendo perdido referência como receptáculo das necessidades últimas, foram relegados para um plano inferior. Com eles, as paixões femininas. E por fim, a própria vida. Posto que, somente além do corpo, haveria a vida eterna. Já a maternidade, na âmbito da paixão, não era mais uma necessidade, mas tão somente uma obrigação social: ou dinástica, ou militar, ou econômica.

A paixão humana, produto do aperfeiçoamento das emoções masculinas, além de nos terem legado as religiões, deixaram--nos a potência das revoluções. E as revoluções são a síntese mais que perfeita das paixões coletivas. Nelas, a um só tempo, estão manifestas a coragem e o ideal: sejam de vida, sejam de morte. Mas todas em nome da satisfação da falta de justiça ou de qualquer outra coisa semelhante. Da revolução francesa à russa, tivemos a elevação do povo, que movido por um ideal subjetivo superior, criou, lutou, matou e se autodestruiu, deixando-nos apenas a perplexidade.

Porém, o sucesso de qualquer revolução depende apenas da sua constância enquanto potência destruidora. A dor embutida no prazer revolucionário, entretanto, retorna sempre ao início de tudo, posto que toda atitude apaixonada não consegue romper o prazer da dor, a satisfação da falta. A lógica da paixão não é superar a necessidade, mas tão apenas satisfazer, provisoriamente, uma falta, cujo retorno é garantido. As revoluções, as religiões, as necessidades produzidas em nome da paixão, enfim, não passam de práticas primitivas, resquícios da nossa vida selvagem dependente dos instintos animais.

Em nosso tempo Pós-moderno, o poder das revoluções vem se enfraquecendo desde o século passado. Hoje temos o resultado de algumas delas, que para serem definitivamente efetivadas, deveriam ser ratificadas. Porém, a natureza autofágica das paixões, onde a dor da derrota e do fracasso são sublimados pela desenfreada produção de paliativos, como artefatos industriais, guloseimas, modismos, diversões e igrejas, todos visando a satisfação imediata de prazeres recicláveis, acaba criando apenas uma permanente insatisfação interior. Atualmente, mais que nunca, a satisfação é precedida por um numero enorme de necessidades artificiais, nas quais, as carências corpóreas dificilmente são satisfeitas e as vezes, nem sequer consideradas.

Em termos coletivos as revoluções mais recentes, relacionadas ao comportamento sexual e feminino, encontram-se entre o fracasso e a superação. Superação que, naturalmente, depende da ultrapassagem da necessidade. Coisa que jamais conseguiremos através de atitudes apaixonadas. A revolução sexual ignorou que a atitude moral castradora da nossa civilização, se por um lado reconhecia o prazer sexual como uma coisa desclassificada, por outro, também não tinha em boa conta a reprodução em si, que é a sua necessidade última. Esta era considerada unicamente como um aspecto da relação social, uma obrigação contratual. Daí, já desprovidos da necessidade que se deveria superar, a revolução sexual considerou apenas o meio, ou seja, o prazer, a superfície do corpo. E deixou de lado o que há de mais importante nisto tudo, a vida.

Ora, a paixão sempre deu conta do prazer, pela simples satisfação do prazer, independente da vida. Por uma razão muito simples, a paixão é o combustível, mas não é o veículo. Ou seja, para se chegar ao sentido da vida, segue-se uma direção com o corpo, alimentado pelo combustível da paixão. Portanto, a paixão é o princípio, como foi o big-bang, que deu origem ao universo. Mas não é o universo, nem mesmo os astros que o compõe. A busca da satisfação do prazer pelo prazer é bonitinho, mas... qualquer animal pode apaixonar-se por outro de outra espécie. O ser humano como bom animal que é, pode sublimar qualquer objeto, nem que seja um sujeito da mesma espécie ou do mesmo sexo. Porém, a procura desse tipo de prazer, em si, não leva à vida, nem ao prazer de mais vida. Só à falta. À dor. À morte! Porque satisfaz o prazer, mas não resolve a falta, a falta de mais vida.

Já a revolução feminista, não foi, decididamente, uma revolução feminina. Ela não passou de uma revolução da mulher, que satisfez as carências do mercado capitalista, mas não as carências femininas, que permanecem até hoje. Esta revolução deu à mulher, em especial, a dimensão masculina da paixão pela caça. Ou seja, a mulher torna-se uma caçadora em potencial, tal como os homens sempre foram. Com isto a paixão pela competição se acentuou e a sociedade se tornou mais apaixonada e também, mais masculina. Acontece, amigos, que a potência feminina não é da ordem das paixões. Portanto, nenhuma revolução poderia ou poderá trazê-la à tona. A potência feminina não é da conta das emoções!

Hoje os homens e as mulheres se apaixonam um, pelo desejo do outro. E o desejo do outro, na verdade, nada mais é do que a projeção do próprio desejo de si mesmo. O outro, conseqüentemente, fica sem identidade e não passa de um simples objeto. Enfim, o objeto de desejo será apenas a projeção de uma identidade sobre outra. Porém, quando o combustível (a paixão) acaba; ou seja, quando se descobre que o objeto tem uma identidade que não é a sua, o sujeito da paixão em vez de procurar superar a necessidade, busca outro objeto sem identidade, sobre o qual possa projetar a sua imagem. Precedendo outra possível descoberta, o sujeito encontra a dor em si e no outro e isto pode ser marcante e, inevitavelmente, um vício, se se insistir em se mover apenas pela paixão. Sem uma direção e objetivo a paixão pode morrer e também matar. E na procura incessante da satisfação imediata do desejo, o sujeito torna-se um número na nau insensata da paixão. Aprisionando o presente num celerado momento de devir louco, a nau dos apaixonados naufraga no mar revolto das emoções.

A direção e o objetivo da vida, efetivamente, estão além da paixão. Em sendo assim, para quem está perdido entre uma paixão e outra, a definição de uma direção é fundamental. E, para a vida, só há uma direção possível, o amor! Entretanto, entre os comuns dos mortais, ao fim de uma paixão, quando se recusa outra aventura sem direção, fatalmente ele dará de frente com o muro das lamentações.

A paixão, que é uma emoção necessária, que é física e é apenas o meio inicial da superação da falta, pode ser representada como um oásis cercado por desertos por todos os lados. Como todo oásis, a sua exploração só satisfaz as necessidades. Mas o criativo só se manifesta quando a necessidade é suprimida e a falta é eliminada. Para tanto, um oásis não é o bastante. O erro está em pensar que a solução é encontrar outro oásis. Nada disto, isto só adia o problema e com um agravamento: para se chegar de um oásis a outro tem de se atravessar o espinhento deserto da falta, indefinidamente. Mas se se deseja superar as necessidades de fato, deve-se buscar o Jardim das Delícias, atravessando o purgativo muro das lamentações.


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