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Octaviano Nogueira


Um imenso e fascinante painel do Brasil visto pelos brasileiros

[in Jornal da Tarde, 13.03.1999]



Coletânea de textos de intelectuais de diversos campos da cultura nacional, organizado em 1956 por Djacir Meneses e agora reeditado pelo Senado, é uma excelente oportunidade para que nós, cidadãos deste País, possamos conferir o juízo que fazemos de nós mesmos e entender melhor nossa trajetória política, humana e cultural
 

Por Octaciano Nogueira
 
 

O melhor teste para os países em crise é saber o que deles pensam e como os julgam os que nele vivem. No caso do Brasil, em que as crises são intermitentes e os problemas renitentes, este é um bom momento para conferir o julgamento que nós fazemos de nós mesmos. O que você diria, por exemplo, de diagnósticos como o de que “a nossa burocracia é um imenso papelório” e que “os nossos problemas são resolvidos por decreto”? Concorda que “o parlamento brasileiro sempre foi um viveiro de portentosa verbiagem”? Se está de acordo, convém ler Artur Ramos. Mas se discorda e acha que no Brasil tudo se falsifica, e que há “falsificação por um lado e escassez por outro”, recorra a Gilberto Freyre.

Se, porém, o leitor não tiver tempo, disposição ou interesse na imensa bibliografia da enorme legião dos intelectuais que viram o Brasil com os olhos iguais ou diferentes dos nossos, há outro remédio. Consiga o livro O Brasil no Pensamento Brasileiro (Senado Federal, 822 págs., R$ 30,00), organizado pelo sociólogo Djacir Meneses em 1956 e que acaba de ser relançado pelo Senado. Trata-se de uma antologia que, reunindo textos de historiadores, economistas, sociólogos, antropólogos, romancistas, políticos, médicos, geógrafos, juristas, críticos literários e estadistas, forma um imenso e fascinante painel que certamente ajudará a compreender melhor nossas grandes virtudes e nossos imensos defeitos. É possível fazer uma inacreditável viagem pelos cinco séculos da história brasileira e chegar à inevitável conclusão de como nossos desafios e obstáculos, sempre contornados e nunca enfrentados, tornaram reiterativas as crises sob as quais, de tempos em tempos, vivem inevitavelmente as gerações de brasileiros.

Os que estiverem preocupados com a acentuada vocação brasileira para o exercício dos cargos públicos, num país em que mais de 12 dos menos de 50 milhões dos que estão empregados recebem seu sustento dos cofres do Estado, sejam eles federais, estaduais ou municipais, podem recorrer à explicação de Gilberto Amado: “Se estudarmos o fenômeno do funcionalismo, que apresenta no Brasil aspectos de um novo coletivismo, não sonhado pelos comunistas, pois se assenta no tesouro público, veremos que ele tem, a bem dizer, a sua origem na escravidão. Foi ela que, tornando abjeto o trabalho da terra, obrigou a encaminhar-se para os empregos do Estado os filhos dos homens livres que não podiam ser senhores e não queriam igualar-se aos escravos”. Porém, se seu desencanto for com a política, leia esta dura e cruel – mas verdadeira – sentença: “O pulso da administração não tem um ritmo. Pode-se dizer que se regula pelo movimento dos espasmos. A uma fase de grande atividade sucede um esmorecimento longo. Grandes surtos de progresso logo se esbatem em lentas estagnações de desânimo. E nada se faz de persistente e firme.” Tem algo a ver com você? Pode parecer que sim, mas foi escrito em 1924.

Se for outro o seu entendimento, leia o que disse Silveira da Mota em discurso no Senado: “As práticas constitucionais enfraquecem-se todos os dias: o regime representativo tem levado botes tremendos, a depravação do sistema é profunda. No país o que há somente é a forma de governo representativo: a substância desapareceu. Tenteie-se esta chaga da nossa sociedade, e ver-se-á que no Brasil o regime constitucional é uma mera formalidade. Cheguei à convicção de que o vício não está nos homens, está nas instituições”. Data? 1859. 

Os quadros pintados soam caóticos, e a impressão que se tem é que não somos nós mesmos, embora na visão quase generalizada dos intelectuais, fomos sempre dominados por grupos, estruturas e esquemas que, na maioria das vezes, nos parecem familiares. Isto, pelo menos, é o que pensava Sílvio Romero, um dos mais severos críticos de nossa submissão: “As gentes brasileiras por toda a vastidão do interior do país, e até nas próprias cidades nas camadas populares, vivem do ordinário todas em torno dum chefe, dum patrão, dum protetor, dum guia; todos têm o seu homem. A política nos Estados gira em torno dum chefe, um oligarca; na União, em torno dum mandão geral, o guia, o senhor do bloco...” Mudar os nomes dos chefes, mandões ou oligarcas, concluiremos fatalmente, é apenas trocar de época.

Se a análise da política, da sociedade e das condições sociais soa sempre triste, amarga e pessimista, pelo menos na economia a visão poderia ser diferente, já que, a despeito de tantos problemas, construímos a oitava economia do mundo, de que tanto e tantas vezes nos orgulhamos. Mas não é aí que está a exceção. Joaquim Murtinho, o médico homeopata que foi ministro da Fazenda de Campos Sales, e que comandou o mais duro programa de ajuste de que se tem notícia no país, deu a síntese de sua receita para a economia brasileira: “O ideal econômico de um país não deve ser importar pouco, mas importar e exportar muito.” No entanto, este era, segundo ele, um ideal inalcançável, porque o déficit público era crônico e gerado pela indisciplina orçamentária: “A execução de serviços criados em leis especiais e sem crédito no orçamento, a prática abusiva, em quase todas as nossas repartições, de excederem as verbas autorizadas por lei, os cálculos otimistas no orçamento da receita, os abusos que se introduziram nas repartições arrecadadoras, foram tantas outras causas produtoras dos déficits orçamentários. Esses déficits saldaram-se ou por emissões de papel-moeda, produzindo todos os males que há pouco estudamos, ou por empréstimos internos e externos.”

Ainda que a velha litania dos vícios políticos e da fraca capacidade de organização da sociedade esteja em quase todos os textos, há os que, mais otimistas, como é o caso de Hermes Lima, vaticinam a melhoria do desempenho dos partidos e da vida política: “À medida que a sociedade nacional foi se diferenciando, que a sua densidade econômica foi crescendo e que trabalho e capital foram alargando e extremando seus campos, tornou-se claro não ser mais possível identificar nos mesmos grupos políticos a representação de todos os interesses da comunidade brasileira. A política nacional está sendo, pois, convidada a aproximar-se do povo. O futuro pertence aos partidos que ajudarem o povo a superar as condições adversas que até aqui não a permitiram criar a opinião pública militante, autônoma, politicamente organizada, cuja ausência importa no lado negativo por excelência de nossa vida constitucional.” 

O protecionismo do Estado e sua intervenção no domínio econômico, vem de mais longe do que se pensa e tem sido um mal constantemente denunciado. Veja o que diz Felisbelo Freire, referindo-se às relações entre as estruturas econômica e os partidos: “Já vimos o Estado preocupar-se com os auxílios à indústria, indo a questão ferir a atenção do parlamento. A idéia do auxílio foi abandonada, pela impugnação que sofreu o princípio da intervenção do Estado em um campo de atividade que só à iniciativa particular deve ser entregue. Entretanto, o governo, no mesmo ano que o parlamento rejeitava os auxílios às indústrias, pedidos pelos mesmos princípios que tinham ditado os auxílios à lavoura, decretava-os com a reforma bancária. (...) E a mesma Câmara que rejeitou o princípio do auxílio, aprovou-o pouco tempo depois, transformando em lei o decreto do governo”. Com que Câmara esta a que alude o texto se parece? Seguramente com todas. São contrastes gritantes, entre a teoria e a prática que Tobias Barreto denuncia, quando ataca o liberalismo sempre ocasional de nosso sistema político: “A idéia liberal, infelizmente, como é fácil de atestar, tem sido até aqui – permitam-me a analogia – uma espécie de judaísmo político, esperando e prometendo ardentemente o reinado messiânico da liberdade, só nos momentos de perseguição e de penúria; mas desde que o céu se azula e a tempestade serena, adeus Messias, adeus esperança!”

José de Alencar, que criou a expressão “lápis fatídico” para caricaturar o poder pessoal do imperador D. Pedro II, vai além dos partidos para denunciar a própria concepção do direito no Brasil: “Deste modo, a vida política longe de ser regida pela justiça, o é pela agilidade de cada um. A, lei importada do estrangeiro, sem nenhuma ligação com o nosso meio, sem nenhuma relação com os hábitos tradicionais e as tendências próprias da Nação. A primeira conseqüência que daí ressalta é que o sentimento da justiça pouco a pouco vai se apagando e por fim termina extinguindo-se de todo na consciência do povo. E isto é muito natural e lógico, porque o Direito é coisa que se faz e refaz com tanta facilidade, a verdade é que isto de justiça não passa de uma palavra vã.”

O diagnóstico da precariedade de nossos serviços públicos e “o patriotismo ingênuo e contente de si que ainda hoje vemos florescer entre nós” está traçado por mestre Sérgio Buarque de Holanda de forma crua e direta: “As funções públicas constituíram, desde muito cedo, aliás, o apanágio exclusivo da mesma casta de homens a que pertenceram os nossos proprietários rurais. Alimentavam, com freqüência, a mesma digna ociosidade que tanto singularizou esses senhores de engenho, de quem dissera Antonil que os escravos eram suas mãos e pés. A constituição de uma burocracia numerosa e próspera, comportando postos cuja remuneração e cuja importância social estavam muitas vezes – quase sempre – na razão inversa do trabalho que lhes correspondia, impunha-se como o expediente próprio para assegurar um bem-estar relativo a parte considerável da população que, do contrário, se veria condenada a uma irremediável ruína. E, quando não o assegurasse valeria, ao menos, pelo efeito compensador que garante a um indivíduo mal tratado pela sorte a possibilidade de se conceber não somente como cidadão do maior e mais rico país do mundo”, mas sobretudo como peça necessária de seu mecanismo administrativo, como parte do Estado, de um nós “poderoso e respeitável”.

Tavares Bastos, autor de A província e a Nação, denunciava em suas Cartas do Solitário o gosto brasileiro pela suntuosidade, um mal que, pelo visto, tem mais de um século: “O que disse das estradas, afirmo dos canais, da abertura e limpeza dos rios. Ora, o contrário é o que acontece nas províncias. Em primeiro lugar, certos presidentes entendem que é melhor fazer um palácio para a Assembléia, nas capitais, do que abrir um pequeno raio de estrada no interior: porque o edifício salta aos olhos de todos e nele se inscreve o nome do ilustre governador”. 

Muitos de nós, ao fim da estimulante leitura proporcionada pelos textos escolhidos por Djacir Meneses, não teremos dificuldades em concluir que, como em quase todas as civilizações, também a nossa é capaz de identificar nossos defeitos e criticá-los, e de reconhecer algumas de nossas virtudes e de proclamá-las. Na verdade, são duas vertentes distintas, representadas por dois livros de concepções antinômicas. Uma é de viés pessimista, de que o melhor exemplo é Retrato do Brasil, de Paulo Prado. A outra, é a utopia otimista, sintetizada em Porque me Ufano de Meu País, do conde de Afonso Celso. A primeira provavelmente herdamos do “velho do Restelo” e a segunda do próprio Camões, com sua ambiciosa epopéia.

Quando sopesamos as duas correntes, somos forçados a concluir, porém, que elas não esgotam necessariamente as diferentes “visões” do Brasil. Temos também uma visão realista que tem sido capaz de apontar em nosso processo histórico os momentos de aceleração e os de retrocesso, mostrando que as lutas por melhores condições de vida, pela prosperidade, pelo predomínio da justiça, pelo progresso e pela ampliação das liberdades custaram-nos, como ensinou José Honório Rodrigues, o permanente confronto entre o reformismo e o reacionarismo, de que resultaram sempre a conciliação e a acomodação. Ou, como esclareceu Justiniano José da Rocha, vivemos, como todos os povos, o terrível embate hegeliano da ação, da reação e da transação.

A grande virtude de Djacir Meneses, ao escolher os textos com que podemos nos conhecer melhor, é a de ter representado, como no caso de Sérgio Buarque de Holanda, esta visão realista que, em contraste com as visagens apaixonadas, foi capaz de identificar além dos fatores do progresso que conseguimos e das derrotas que sofremos, o caráter demiúrgico das lideranças políticas que tivemos. Uns por indecisão, outros por incompetência e a maioria por acomodação, terminam todos sempre prometendo-nos o paraíso que nunca alçamos, porque sempre tivemos que oscilar entre a realidade dantesca da marginalização, da injustiça e da opressão, e o desfrute panglossiano dos que, pela indiferença e pela omissão, são capazes de transformar o inferno de muitos no purgatório de quase todos. Afinal, como lembra Antonil, o Brasil começou, no período colonial, como “o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos”, síntese expressão do que somos.

É, pelo menos, o que Meneses procura explicar na introdução do livro, quando assinala: “As minorias que trataram dos problemas de organização jurídica e política do Brasil preocuparam-se com o povo através de coeficientes eleitorais e da maneira de arregimentá-lo nos quadros dos partidos. Não lhes reconheciam discernimento: o povo era a força bruta que a inteligência, privilegiada pelos cursos superiores, iluminaria e tutelaria. (...) Mas distingamos: há grupos minoritários que, estando a serviço da comunidade, representam interesses gerais – e há grupos historicamente dissociados, ligados a interesses parciais, presos a privilégios. Estas minorias é que são nocivas – porque acabam incutindo no povo a convicção de que todos os órgãos governativos são mendazes e adversos. A ruptura da solidariedade social termina determinando nesses grupos uma visão diferente de povo, que os intimida: governar é sinônimo de reprimir, de coagir. Divulga-se na literatura política a idéia da disciplina pelo terror policial e não pela persuasão educativa e política: e exalta-se a coercitividade como a função essencial do Direito. A autoridade não se funda só no consensus – mas também no imperium. Louvam-se os estadistas violentos, nas épocas de crises; e eles pensam que são ‘fortes’.”

É um viés que talvez explique não só por que padecemos de tantos e tão insistentes problemas, mas também por que, para eles, raramente tenhamos soluções. À custa de tanto contorná-los, adiá-los ou ignorá-los, terminamos sempre vítimas de sua persistência.

Octaciano Nogueira é professor da UnB. O livro O Brasil no Pensamento Brasileiro pode ser adquirido pelo fone (061) 311-4141





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