Domingo,
26 de abril de 1998 
 
    
Sua palavra se ajustava à criação e à crítica 
CELSO LAFER 
Especial 
Aforma que se ajusta ao movimento/ é pele - não prisão - do pensamento, indica um poema de Octavio Paz (em tradução de Haroldo de Campos). Essa indicação corresponde à sua obra e à sua pessoa. Com efeito, se os escritores se classificam pela sua linguagem, a palavra viva e vivida de Octavio Paz ajustava-se ao movimento da criação e da crítica. Por isso não era prisão, mas Libertad bajo Palabra: tem som e sentido. 
Liberdade, para Paz, é, em razão do jogo de afinidades e oposições, que ele apreciava, tanto singularidade e exceção quanto pluralidade e convivência. Daí, no plano da poética, o seu gosto seja pela poesia da solidão - introspectiva - seja pela poesia da comunhão. A isso equivale, no plano da política, uma conclusão à maneira das fórmulas aforismáticas de Ortega y Gasset: "Sem liberdade a democracia é despotismo; sem democracia a liberdade é uma quimera." 
Criação e reflexão foram, na experiência de Octavio Paz, vasos comunicantes. Por esse motivo, na família dos escritores, integrava, como Dante e Goethe, a dos grandes poetas-pensadores. Entretanto, com Dante, e mesmo com Goethe, o poeta-pensador ainda detém o poder de nomear as coisas e a palavra alcança uma correspondência analógica com a realidade. Não é o que ocorre desde o romantismo, e Paz, como um poeta-pensador contemporâneo, da mesma maneira que Valéry, lida com a mudança e confronta-se com a modernidade - segundo ele uma palavra em busca de significado. 
Bardo crítico - A tradição poética da modernidade é, assim, a de uma "quête", no sentido alegórico e cavalheiresco que tinha essa palavra no século 13. Um fragmento dessa demanda de Octavio Paz, do inefável Santo Graal, tive o privilégio de ouvir, de viva voz, no curso sobre a poesia, do simbolismo aos nossos dias, que com ele fiz em Cornell, em 1966, quando o conheci. Falo da voz viva de Paz porque, se ela tinha as várias tonalidades dos múltiplos códigos que ele manejava - inclusive o diplomático -, era na sua essência a de um poeta - um bardo crítico que, no seu percurso, associou a seriedade e o lúdico. Evoco, nesse sentido, o momento único, mágico, que foi em 1985, na USP, o solo a dos voces da leitura que ele fez, com Haroldo de Campos, de Blanco e Transblanco (a admirável transcrição em português, de Haroldo, de Blanco). 
Blanco é, como poema, um "modelo dilemático". Representa o como e o porquê, na sua criação e reflexão, Paz busca redescobrir a figura do mundo na dispersão dos fragmentos. Os signos estão em rotação em razão do senso de incongruência entre o criar e o viver na civilização contemporânea. Nesse contexto, o que caracteriza a força e a inteireza de caráter do poeta-pensador Octavio Paz é a resistência de um olhar crítico. Foi isso que o tornou um dos maiores intelectuais latino-americanos e um dos grandes intelectuais do século 20, que ele viveu com intensidade e percorreu no espaço e na história, nas suas múltiplas e contraditórias dimensões. 
Na relação de oposições/afinidades da interação dialética entre o nacional e o regional de um lado e o universal de outro, Paz adverte que a repetição do repertório universal leva à petrificação e a falta de crítica à imobilização. No diálogo que Paz instaura entre o nacional e o universal não há imobilismo petrificante. Sua língua é o espanhol e, portanto, tem origem na "excentricidade por inclusão" que, segundo ele, caracteriza a Espanha - um país no qual, no domínio da "intra-história" das mentalidades, subjacente ao catolicismo vitorioso dos visigodos, pulsa a civilização árabe e a vivência judaica. O seu chão é o México, no qual a excentricidade hispânica se reproduz e se multiplica no contato com as antigas e brilhantes civilizações pré-colombianas, derrotadas, mas presentes no cotidiano nacional. É por isso que desde O Labirinto da Solidão, sua primeira grande decodificação do México e livro ímpar na bibliografia internacional das identidades coletivas, Paz sabe lidar com a alteridade e o outro. Daí a sua capacidade de entender, na interação nacional/universal, outras culturas - como a Índia, o Japão e a China -; as conjunções e disjunções das temperaturas das civilizações; as artes plásticas (por exemplo, Duchamp e Rufino Tamayo); o cinema filosófico de Buñuel; outras tradições poéticas, distintas da espanhola, inclusive a portuguesa (Fernando Pessoa), numa transcriação dialógica que nunca petrifica ou imobiliza. 
Vocação libertária - Há muitos anos, em 1972, Haroldo de Campos e eu organizamos, para a Editora Perspectiva, uma antologia de textos de Paz, que foi um primeiro esforço de divulgar a sua obra no Brasil. Nesse livro, que denominamos Signos em Rotação, em razão desse ensaio central nele incluído, publiquei um texto intitulado O Poeta, a Palavra e a Máscara - sobre o Pensamento Político de Octavio Paz. Nele procurei mostrar que o seu método de análise política é de operação ativa da crítica da linguagem dos signos do espaço público. Isso corresponde ao seu fazer crítico-reflexivo de poeta que busca o sentido visível e invisível das palavras. "Arrancar as máscaras da fantasia, cravar uma lança no centro sensível: provocar a irrupção", como indica ele em Para o Poema (Pontos de Partida)
Uma vocação libertária e não conservadora instiga a análise crítica da política de Octavio Paz. Ele permeia a discussão do estado em El Ogro Filantropico (1979); perpassa a análise do cenário internacional em Tiempo Nublado (1983), no qual dá antecipado destaque à sublevação dos particularismos, e percorre, em Pequeña Cronica de Grandes Dias (1990), a avaliação do significado da queda do Muro de Berlim. Essa vocação é inerente à sua sensibilidade de poeta e ao não-convencionalismo de seu pensamento. Isso me parece paradigmaticamente claro num trecho de A Busca do Presente - sua conferência Nobel de 1990, com a qual concluo este texto de homenagem e saudades, devolvendo-lhe, com admiração e concordância, a palavra: "Pensar o hoje significa, antes de mais nada, recuperar o olhar crítico. Por exemplo, o triunfo da economia de mercado - um triunfo por default do adversário - não pode ser unicamente motivo de regozijo. O mercado é um mecanismo eficaz, porém, como todo mecanismo, não tem consciência e tampouco misericórdia. É preciso encontrar a maneira de inseri-lo na sociedade para que seja a expressão do pacto social e um instrumento de justiça e eqüidade." 
Celso Lafer, embaixador do Brasil em Genebra, é Ph.D. em Direito Internacional pela Universidade de Cornell (EUA) e autor de `A Reconstrução dos Direitos Humanos', sobre Hannah Arendt, entre outros 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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