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Sua palavra se ajustava
à criação e à crítica
CELSO LAFER
Especial
Aforma que se ajusta ao movimento/ é pele - não prisão
- do pensamento, indica um poema de Octavio Paz (em tradução
de Haroldo de Campos). Essa indicação corresponde à
sua obra e à sua pessoa. Com efeito, se os escritores se classificam
pela sua linguagem, a palavra viva e vivida de Octavio Paz ajustava-se
ao movimento da criação e da crítica. Por isso não
era prisão, mas Libertad bajo Palabra: tem som e sentido.
Liberdade, para Paz, é, em razão do jogo de afinidades e
oposições, que ele apreciava, tanto singularidade e exceção
quanto pluralidade e convivência. Daí, no plano da poética,
o seu gosto seja pela poesia da solidão - introspectiva - seja pela
poesia da comunhão. A isso equivale, no plano da política,
uma conclusão à maneira das fórmulas aforismáticas
de Ortega y Gasset: "Sem liberdade a democracia é despotismo; sem
democracia a liberdade é uma quimera."
Criação e reflexão foram, na experiência de
Octavio Paz, vasos comunicantes. Por esse motivo, na família dos
escritores, integrava, como Dante e Goethe, a dos grandes poetas-pensadores.
Entretanto, com Dante, e mesmo com Goethe, o poeta-pensador ainda detém
o poder de nomear as coisas e a palavra alcança uma correspondência
analógica com a realidade. Não é o que ocorre desde
o romantismo, e Paz, como um poeta-pensador contemporâneo, da mesma
maneira que Valéry, lida com a mudança e confronta-se com
a modernidade - segundo ele uma palavra em busca de significado.
Bardo crítico - A tradição poética da
modernidade é, assim, a de uma "quête", no sentido alegórico
e cavalheiresco que tinha essa palavra no século 13. Um fragmento
dessa demanda de Octavio Paz, do inefável Santo Graal, tive o privilégio
de ouvir, de viva voz, no curso sobre a poesia, do simbolismo aos nossos
dias, que com ele fiz em Cornell, em 1966, quando o conheci. Falo da voz
viva de Paz porque, se ela tinha as várias tonalidades dos múltiplos
códigos que ele manejava - inclusive o diplomático -, era
na sua essência a de um poeta - um bardo crítico que, no seu
percurso, associou a seriedade e o lúdico. Evoco, nesse sentido,
o momento único, mágico, que foi em 1985, na USP, o solo
a dos voces da leitura que ele fez, com Haroldo de Campos, de Blanco
e Transblanco (a admirável transcrição
em português, de Haroldo, de Blanco).
Blanco é, como poema, um "modelo dilemático". Representa
o como e o porquê, na sua criação e reflexão,
Paz busca redescobrir a figura do mundo na dispersão dos fragmentos.
Os signos estão em rotação em razão do senso
de incongruência entre o criar e o viver na civilização
contemporânea. Nesse contexto, o que caracteriza a força e
a inteireza de caráter do poeta-pensador Octavio Paz é a
resistência de um olhar crítico. Foi isso que o tornou um
dos maiores intelectuais latino-americanos e um dos grandes intelectuais
do século 20, que ele viveu com intensidade e percorreu no espaço
e na história, nas suas múltiplas e contraditórias
dimensões.
Na relação de oposições/afinidades da interação
dialética entre o nacional e o regional de um lado e o universal
de outro, Paz adverte que a repetição do repertório
universal leva à petrificação e a falta de crítica
à imobilização. No diálogo que Paz instaura
entre o nacional e o universal não há imobilismo petrificante.
Sua língua é o espanhol e, portanto, tem origem na "excentricidade
por inclusão" que, segundo ele, caracteriza a Espanha - um país
no qual, no domínio da "intra-história" das mentalidades,
subjacente ao catolicismo vitorioso dos visigodos, pulsa a civilização
árabe e a vivência judaica. O seu chão é o México,
no qual a excentricidade hispânica se reproduz e se multiplica no
contato com as antigas e brilhantes civilizações pré-colombianas,
derrotadas, mas presentes no cotidiano nacional. É por isso que
desde O Labirinto da Solidão, sua primeira grande decodificação
do México e livro ímpar na bibliografia internacional das
identidades coletivas, Paz sabe lidar com a alteridade e o outro. Daí
a sua capacidade de entender, na interação nacional/universal,
outras culturas - como a Índia, o Japão e a China -; as conjunções
e disjunções das temperaturas das civilizações;
as artes plásticas (por exemplo, Duchamp e Rufino Tamayo); o cinema
filosófico de Buñuel; outras tradições poéticas,
distintas da espanhola, inclusive a portuguesa (Fernando Pessoa), numa
transcriação dialógica que nunca petrifica ou imobiliza.
Vocação libertária - Há muitos anos,
em 1972, Haroldo de Campos e eu organizamos, para a Editora Perspectiva,
uma antologia de textos de Paz, que foi um primeiro esforço de divulgar
a sua obra no Brasil. Nesse livro, que denominamos Signos em Rotação,
em razão desse ensaio central nele incluído, publiquei um
texto intitulado O Poeta, a Palavra e a Máscara - sobre
o Pensamento Político de Octavio Paz. Nele procurei mostrar
que o seu método de análise política é de operação
ativa da crítica da linguagem dos signos do espaço público.
Isso corresponde ao seu fazer crítico-reflexivo de poeta que busca
o sentido visível e invisível das palavras. "Arrancar as
máscaras da fantasia, cravar uma lança no centro sensível:
provocar a irrupção", como indica ele em Para o Poema
(Pontos de Partida).
Uma vocação libertária e não conservadora instiga
a análise crítica da política de Octavio Paz. Ele
permeia a discussão do estado em El Ogro Filantropico (1979);
perpassa a análise do cenário internacional em Tiempo
Nublado (1983), no qual dá antecipado destaque à sublevação
dos particularismos, e percorre, em Pequeña Cronica de Grandes
Dias (1990), a avaliação do significado da queda do Muro
de Berlim. Essa vocação é inerente à sua sensibilidade
de poeta e ao não-convencionalismo de seu pensamento. Isso me parece
paradigmaticamente claro num trecho de A Busca do Presente - sua
conferência Nobel de 1990, com a qual concluo este texto de homenagem
e saudades, devolvendo-lhe, com admiração e concordância,
a palavra: "Pensar o hoje significa, antes de mais nada, recuperar o olhar
crítico. Por exemplo, o triunfo da economia de mercado - um triunfo
por default do adversário - não pode ser unicamente
motivo de regozijo. O mercado é um mecanismo eficaz, porém,
como todo mecanismo, não tem consciência e tampouco misericórdia.
É preciso encontrar a maneira de inseri-lo na sociedade para que
seja a expressão do pacto social e um instrumento de justiça
e eqüidade."
Celso Lafer, embaixador do Brasil em Genebra, é Ph.D. em Direito
Internacional pela Universidade de Cornell (EUA) e autor de `A Reconstrução
dos Direitos Humanos', sobre Hannah Arendt, entre outros
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