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EUA toleram vícios da liberdade, mas não da tirania
OCTAVIO PAZ
Especial
No começo, era apenas um segredo sussurrado aos ouvidos por algumas
pessoas bem informadas. Logo depois os entendidos começaram a publicar
sábios ensaios em revistas especializadas e a pronunciar conferências
nas universidades. Hoje o assunto é debatido em mesas-redondas de
televisão, em artigos e pesquisas publicados em revistas e jornais,
em coquetéis e jantares, nos bares da moda. Em menos de um ano os
norte-americanos descobriram que "estão em decadência".
Como a divindade dos teólogos, a decadência não se
define. Como a primavera do poema de Machado, não se sabe como ela
chegou. E como a divindade e a primavera, ela está em toda parte.
Alguns acolheram a novidade com ceticismo, outros com irritação
e até indiferença. Os espíritos religiosos tendem
a considerá-la um castigo do céu e os pragmatismos inveterados
uma falha mecânica reparável.
A maioria recebeu a notícia com um frenesi ambíguo, uma
estranha mistura de horror e exaltação e um curioso sentimento
de alívio: enfim!
Desde sempre, os norte-americanos têm sido um povo voltado para
o futuro. Toda a sua prodigiosa aventura histórica pode ser encarada
como uma marcha incessante em direção a uma terra prometida:
o reino (ou talvez a república) do futuro. Uma terra que não
é feita de terra, mas de uma substância evanescente: o tempo.
Desde que se toque, o futuro se dissipa, mas para surgir de novo mais tarde,
um pouco mais longe. O progresso é fantasmagórico. Mas hoje,
que os norte- americanos começam, literalmente, a perder o fôlego,
o futuro chega sob a forma, a um tempo abominável e sedutora, da
decadência. O futuro, enfim, tem um rosto.
Mal universal - Desconfio um pouco da palavra decadência.
Verlaine e Montezuma, Luis XV e Gôngora, Boabdil e Gustave Moreau
foram chamados decadentes por razões diferentes e opostas. Marx
profetizou o fim do sistema capitalista; Spengler diagnosticou o declínio
do Ocidente; Benda, o da "França bizantina"... e assim por diante.
A que tipo de decadência nos referimos quando falamos dos Estados
Unidos dos anos 80? A despeito de incertezas e imprecisões, partilhamos
quase todos a idéia - melhor, o sentimento - de viver uma época
crepuscular. Mas o termo decadência não descreve, a não
ser aproximadamente, a nossa situação. Não estamos
diante do fim de um império, uma civilização ou um
sistema de produção: o mal é universal, corrompe todos
os sistemas e envenena os cinco continentes.
O tema da crise geral da civilização não é
novo: há mais de cem anos, filósofos e historiadores escrevem
livros e ensaios sobre o declínio de nosso mundo. Em contrapartida,
o tema gêmeo - o do fim do mundo - foi sempre o domínio do
pensamento religioso. É uma crença que foi partilhada por
numerosos povos ao longo da história - os indianos, os sumérios,
os astecas, os primeiros cristãos e os do ano mil. Hoje, os dois
temas se confundem e têm, alternativamente, ressonâncias científicas
e políticas, escatológicas e biológicas. Não
apenas vivemos um momento de crise da civilização mundial,
o fato é mais grave porque a crise pode culminar com a destruição
física da espécie humana.
Os Estados Unidos foram tocados por essa crise geral da civilização.
No entanto, embora tenham passado por numerosas vicissitudes e sofrido
enormes mudanças, seus fundamentos políticos, sociais e econômicos
estão ainda intactos. A democracia norte-americana conseguiu corrigir,
ao menos em parte, graves imperfeições no domínio
dos direitos das minorias étnicas. Pode-se igualmente sentir uma
melhora no campo das liberdades individuais e no que diz respeito à
moral e à vida privada.
Enfim, os norte-americanos não conheceram o totalitarismo, ao contrário
dos alemães, dos russos e de outras nações que vivem
sob a dominação soviética. Não suportaram a
ocupação, não viram suas cidades destruídas
e, de modo geral, não têm tido ditadores, nem guerras civis,
nem fomes, nem exações rigorosas, como tantos outros novos.
Um novo tempo - Nos Estados Unidos, a primeira e natural reação
de qualquer visitante é o espanto. Poucas pessoas vão além
da surpresa inicial - uma admiração misturada com a repulsa
- e percebem a imensa originalidade desse país. Um desses raros
visitantes clarividentes, o primeiro entre eles, foi Tocqueville. Suas
reflexões não envelheceram. Ele previu a grandeza futura
da União Americana e compreendeu a natureza do conflito que desde
o começo habita o país. Um conflito ao qual essa nação
deve, simultaneamente, seus grandes êxitos e seus passos em falso;
a oposição entre liberdade e igualdade, indivíduo
e democracia, liberdades locais e centralismo governamental. O ponto de
vista de Henry Adams foi menos generoso e talvez mais profundo: ele viu
no seio da sociedade norte-americana a oposição entre o Dínamo,
que transforma o mundo, mas o reduz a série uniforme, e a Virgem,
energia natural espiritual que dirige e ilumina a alma dos homens, produzindo
a variedade de suas obras. Com lucidez, Tocqueville e Adams previram o
que iria acontecer; nós, no presente, vemos o que se passa. Dentro
dessa perspectiva, talvez nossas reflexões não sejam inteiramente
inúteis.
A grande originalidade histórica da nação norte-americana
e, ao mesmo tempo, a raiz de sua contradição está
inscrita no ato mesmo de sua fundação. Os Estados Unidos
foram fundados para que seus cidadãos vivessem livres dos incômodos
da História e dos fins meta-históricos que o Estado atribuía
às sociedades do passado. Essa foi uma construção
contra a História e seus desastres, em face do futuro, essa "terra
incógnita" com a qual os Estados Unidos se identificam. O culto
do futuro insere-se naturalmente no projeto norte-americano; ele é,
por assim dizer, sua condição e seu resultado. A sociedade
norte-americana foi fundada por um ato que aboliu o passado. Contrariamente
aos ingleses ou japoneses, aos alemães ou chineses, aos mexicanos
e portugueses, os cidadãos norte-americanos não são
filhos de uma tradição, mas de um começo. Não
perpetuam um passado: inauguram um novo tempo.
O ato de fundação (nos dois sentidos da palavra) - anulação
do passado e nascimento de uma realidade distinta - repete-se sem cessar
através da História: cada um de seus episódios pode
ser definido não em relação ao passado, mas ao futuro.
É um passo em direção ao "lá longe". Em que
direção? Em direção a um nowhere que está
em toda parte, salvo aqui e agora. O futuro não tem um rosto, é
pura possibilidade... Mas os Estados Unidos não vivem no futuro,
essa região inexistente, eles vivem aqui e agora, entre nós,
os povos históricos. Eles são um império e seus mais
rápidos movimentos sacodem o mundo. Eles teriam querido estar fora
do mundo, mas estão no mundo e são do mundo. Desse modo,
a contradição da sociedade americana de hoje (ser, ao mesmo
tempo, um império e uma democracia) é o resultado de outra
contradição mais profunda: ter sido fundada contra a História
e ser, ela mesma, História.
Os Estados Unidos atravessam um período de dúvida. Se não
perderam a fé em suas instituições - Watergate foi
um exemplo admirável -, não acreditam mais, como até
há pouco, no destino da nação. É impossível,
no espaço desse artigo, examinar todas as razões e todas
as causas: isso seria um longo acréscimo. Seja suficiente dizer
que o estado de espírito do povo norte-americano é, provavelmente,
conseqüência de dois fenômenos contrários, mas,
como acontece na História, estão bem intrincados. O primeiro
é o sentimento de culpabilidade que a Guerra do Vietnã ainda
desperta em vários espíritos; o segundo é a usura
da ética puritana e o impulso do hedonismo e da abundância.
O sentimento de culpa, aliado à humilhação da derrota,
reforçou o isolacionismo tradicional que sempre considerou a democracia
norte-americana uma ilha de virtudes no mar de perversões da história
universal. O hedonismo, por seu lado, ignora o mundo exterior e, com ele,
a história. Isolacionismo e hedonismo coincidem num ponto: os dois
são anti-históricos.
Dupla natureza - Perplexos diante de sua dupla natureza histórica,
os Estados Unidos não sabem mais que caminho seguir. A alternativa
é mortal: se escolherem o destino imperial, cessarão de ser
uma democracia e perderão a razão de ser como nação.
Mas como renunciar ao poder sem ser imediatamente destruído pelo
rival, o império russo? Dir-se-á que a Grã-Bretanha
foi, ao mesmo tempo, uma democracia e um império. Mas a situação
contemporânea é muito diferente: o império britânico
foi exclusivamente colonial, estava além-mar; ao mesmo tempo, em
sua política americana e européia, a Inglaterra não
procurava a hegemonia, mas o equilíbrio de forças. Essa política
de equilíbrio corresponde a outra etapa da História mundial.
Nem a Grã-Bretanha nem as outras potências européias
enfrentaram um Estado como a URSS, cuja expansão imperialista está
ligada a uma ortodoxia universal. O Estado burocrático russo não
aspira unicamente à dominação mundial, mas é
uma ortodoxia militante, que não tolera outras ideologias nem outros
sistemas de governo.
A origem da democracia norte- americana é religiosa, situa-se nas
comunidades de dissidentes protestantes que se estabeleceram no país
nos séculos 16 e 17. As preocupações religiosas transformaram-se
depois em idéias políticas, como republicanismo, democracia
e individualismo, mas a tonalidade inicial jamais desapareceu da consciência
pública. Religião, moral e política são inseparáveis
nos Estados Unidos. Eis aí a grande diferença entre o liberalismo
europeu, quase sempre laico e anticlerical, e o norte-americano. Neste,
as idéias democráticas têm um fundamento religioso,
às vezes implícito, o mais freqüentemente explícito.
Três sonhos - Se pudessem, os norte-americanos se fechariam
em seu país e voltariam as costas para o mundo, salvo para o comércio
e as viagens. A utopia norte-americana - em que existem, como em todas
as utopias, certos traços monstruosos - é uma figura de três
sonhos: o do asceta, o do comerciante e o do explorador. Três individualistas.
Donde a repugnância que manifestam quando enfrentam o mundo exterior,
sua incapacidade em compreender e sua falta de habilidade para dirigir.
Eles constituem um império cercado de nações que são
aliadas e outras que querem destruí-lo, mas preferem ficar sozinhos:
o mundo exterior é o mal, a História, uma perdição.
Tudo ao contrário da Rússia, um outro país religioso,
que identifica, porém, a religião com a Igreja e acha legítimo
confundir ideologia e partido. Os norte-americanos desejaram e desejam
sempre construir um mundo próprio, fora do mundo; os russos quiseram
e querem sempre dominar o mundo para convertê-lo.
A contradição dos Estados Unidos atinge mesmo os fundamentos
da nação. Assim, a reflexão sobre os Estados Unidos
e seus discursos atuais desemboca em uma questão: serão eles
capazes de resolver a contradição entre império e
democracia? Isso depende de sua vida e de sua identidade. Embora seja impossível
responder a essa questão, pode-se arriscar um comentário.
O sentimento de culpa pode transformar-se, se bem aproveitado, no começo
da saúde política; em troca, o hedonismo não pode
conduzir senão à demissão, à ruína e
à derrota. É verdade que desde o Vietnã e o Watergate
temos assistido a uma espécie de orgia masoquista e vimos numerosos
intelectuais, clérigos e jornalistas rasgar a túnica e bater
no peito em sinal de contradição. As autocríticas,
geralmente, não eram nem são falsas, mas o tom era freqüentemente
delirante, como quando um jornalista do N.Y. Times aponta
a política americana na Indochina como responsável pelas
atrocidades do Khmer Vermelho e dos vietnamitas. Contudo, o sentimento
de culpa não faz unicamente a função da compensação
ao manter o equilíbrio psiquíco; ele possui um valor moral.
Ele nasce de um exame de consciência e do reconhecimento de ter agido
mal. Desse modo, pode-se converter em sentimento de responsabilidade, o
único antídoto contra a embriaguez da hybris, tanto para
os indivíduos quanto para os impérios. Ao contrário,
é mais difícil transformar o hedonismo epidérmico
das massas modernas em uma força moral.
Os Estados Unidos têm suportado derrotas e prejuízos, mas
seu poder econômico, científico e técnico permanece
superior ao da União Soviética. As instituições
norte-americanas foram concebidas para uma sociedade em perpétuo
movimento, enquanto as da URSS correspondem a uma sociedade de castas estáticas.
Eis porque a menor mudança na União Soviética põe
em perigo os próprios fundamentos do regime. As instituições
russas não resistiriam a essa prova que se realiza a cada quatro
anos: a eleição do presidente dos Estados Unidos. Um fenômeno
como Watergate, na Rússia, desencadearia uma revolução.
Freqüentemente, compara-se os Estados Unidos com Roma. O paralelo
não é de todo exato - o componente utópico não
aparece em Roma, ao passo que é central nos Estados Unidos -, mas
é útil. Para Montesquieu, a decadência dos romanos
resultou de duas causas: o poder do Exército e a corrupção
provocada pelo luxo. O primeiro foi a origem do império; a segunda,
de sua ruína. O Exército oferece o poder sobre o mundo, mas
com ele estão a moleza irresponsável e a dissipação.
Os norte- americanos serão mais sábios e mais sóbrios
que os romanos, darão eles provas de uma grande força de
alma? Isso parece muito difícil. Todavia, há aí um
traço que teria encorajado Montesquieu: os norte-americanos souberam
defender suas instituições democráticas, ampliando-as
e aperfeiçoando-as. Em Roma, o Exército instaura o despotismo
dos Césares: os Estados Unidos toleram os males e os vícios
da liberdade, mas não os da tirania. E, mesmo que esteja deformada,
não se pode duvidar da vivacidade da tradição moral
da crítica que os acompanha ao longo de sua história. Os
acessos de masoquismo são precisamente expressões doentias
dessa exigência moral.
Graças à autocrítica, os Estados Unidos souberam
resolver, no passado, muitos outros conflitos. Hoje eles mostram sua capacidade
de renovação. Durante os últimos 20 anos eles deram
um grande passo para resolver uma contradição que os dilacera:
a questão racial. Não é impossível que, no
fim do século, os Estados Unidos tornem-se a primeira democracia
multinacional da história. Apesar de suas imperfeições
e de suas falhas, o sistema democrático norte-americano corrobora
uma velha opinião: se a democracia não é o governo
ideal, é, em todo caso, o menos nocivo. Um dos grandes êxitos
do povo norte-americano foi preservar a democracia em face de duas grandes
ameaças contemporâneas: as poderosas oligarquias capitalistas
e o Estado burocrático do século 20.
Outro sinal positivo: os norte- americanos progrediram muito na arte da
vida em comum, não apenas entre os diferentes grupos étnicos,
mas nos domínios tradicionalmente proibidos como o da sexualidade.
Certos críticos deploram a permissividade e o relaxamento dos costumes
na sociedade norte-americana: penso que o outro extremo é mais perigoso
- o cruel puritanismo comunista e o moralismo cruento de Khomeini. Enfim,
o desenvolvimento das ciências e da tecnologia é uma conseqüência
direta da liberdade de pesquisa e de crítica que predomina nas universidades
e instituições culturais dos Estados Unidos. A superioridade
norte-americana nesse campo não tem nada de acidental.
Sociedade moderna - Como explicar a enfadonha mediocridade dos políticos
nessa democracia que se revela sempre tão fértil no campo
da ciência, das técnicas e da arte? Essa circunstância
daria razão aos adversários da democracia? Devemos convir
que a vontade da maioria não é necessariamente sinônimo
de sabedoria: os alemães votaram em Hitler e Chamberlain foi eleito
democraticamente. O sistema democrático está exposto aos
mesmos riscos que a monarquia hereditária: os erros da vontade popular
são tão numerosos quanto os da lei da hereditariedade e eleições
tão imprevisíveis quanto as taras herdadas. O remédio
está no sistema de controles: a independência do Poder Judiciário
e do Legislativo, os pesos da opinião pública sobre as decisões
governamentais graças ao exercício da crítica, sã
e sensata, através dos meios de comunicação. Infelizmente,
nestes últimos anos, nem o Senado nem a mídia nem a opinião
pública manifestaram sinais de prudência política (no
sentido em que a entende Castoriadis: faculdades de orientar-se na História).
Assim, as inconsistências da política externa dos Estados
Unidos não são imputáveis somente aos governantes
e políticos, mas a toda a nação. Não apenas
os interesses dos grupos e partidos passam à frente dos interesses
coletivos, mas a opinião pública norte-americana mostra-se
incapaz de compreender o que ocorre além de suas fronteiras.
Essa crítica pode ser feita tanto aos conservadores quanto aos
liberais, aos clérigos como aos dirigentes sindicais. Não
existe país mais bem informado do que os Estados Unidos; seus jornalistas
são excelentes e se encontram em toda a parte; seus experts e especialistas
são capazes de levantar todas as circunstâncias em que ocorrem
os fatos e essa gigantesca montanha de informações e notícias
é, quase sempre, o rato da fábula. Debilidade intelectual?
Não: falta de visão histórica. Pela própria
natureza do projeto que funda a nação - pô-la ao abrigo
da história e dos seus horrores -, os norte-americanos sofrem de
uma dificuldade congênita para compreender o mundo exterior e orientar-se
em seus labirintos.
Outra falha da democracia norte-americana notada por Tocqueville reside
no fato de que as tendências igualitárias não suprimem
o egoísmo individual, mas o deformam. Além de não
evitar o nascimento e a proliferação das desigualdades sociais
e econômicas, essas tendências afetam os melhores e constrangem
sua participação na vida pública. O exemplo mais evidente
é a situação dos intelectuais: a excelência
de seus progressos no domínio das ciências, das técnicas,
das artes e da educação contrasta com a sua influência
no campo político.
É verdade que muitos intelectuais servem ou serviram ao governo,
mas quase todos na condição de técnicos e especialistas,
quer dizer, para fazer tal e tal coisa, não para orientar os objetivos
e os fins. Certos intelectuais foram conselheiros de presidentes e contribuíram
para conceber e pôr em prática a política externa do
país. Mas são casos isolados. Os intelectuais norte-americanos,
como corpo social, não têm a influência de seus confrades
na Europa e na América Latina. Primeiro, porque a sociedade não
parece estar disposta a conceder-lhes essa influência. Não
preciso lembrar os termos pejorativos com os quais são designados
os intelectuais: egghead e high-brow. Esses adjetivos prejudicaram a carreira
política de Adlai Stevenson, para dar apenas um exemplo.
Indiferença positiva - Em todo o caso, os intelectuais norte-americanos
não mostram muito interesse pelas abstrações filosóficas
e políticas que apaixonam a nossa época. Essa indiferença
tem um aspecto positivo: livra-os dos desvios em que se perdem muitos intelectuais
europeus e latino-americanos. Como os escritores que compensam, sem hesitar,
as honras públicas e os prêmios internacionais com a adulação
diante dos Stalin, Mao e Castro.
Entre os grandes poetas norte- americanos há um, Erza Pound, que
sucumbiu à tentação totalitária. Mas é
revelador que tenha escolhido ser o panegirista do menos brutal de todos
os ditadores brutais deste século: Mussolini. E, ao contrário
de outros escritores europeus e latinos-americanos, Pound não obteve,
depois de sua apostasia, nem favores nem funerais nacionais. Ficou fechado,
durante anos, em um asilo de alienados. Isso foi terrível, mas é
melhor que chafurdar na lama, como Aragon. A indiferença dos norte-americanos
não é censurável em si; torna-se objeto de censura
quando se transforma na paranóia dos conservadores ou na ingenuidade,
próxima à cumplicidade, dos liberais. São as duas
maneiras de ignorar a existência dos outros: fazer deles diabos ou
heróis de contos de fadas.
Outrora, concebia-se a história como uma ação coletiva
- um gesto - destinada a realizar um fim que transcendia os indivíduos
e a própria sociedade. A sociedade fazia depender seus atos de um
fim exterior a ela e sua história encontrava um fim e se justificava
através da meta-história. Os depositários desses fins
eram o Estado e Igreja. A idade moderna vê a ação da
sociedade mudar de natureza e de sentido. Os Estados Unidos são
a expressão mais completa e mais pura dessa mudança; eis
por que não é exagerado dizer que eles constituem o arquétipo
da modernidade. Na sociedade primitiva, o eu não existe a não
ser enquanto fragmento do grande todo social; na sociedade norte-americano
todo social é uma projeção das consciências
e das vontades individuais. Essa projeção não é
nunca geométrica: a imagem que ela nos oferece é a de uma
realidade contraditória em perpétuo movimento. Os dois fatores,
contradição e movimento, exprimem a vitalidade extraordinária
da democracia norte-americana e seu imenso dinamismo. Ao mesmo tempo, esses
dois fatores têm os seus perigos: a contradição, se
for excessiva, pode paralisar o país em relação ao
exterior; o dinamismo pode degenerar em corrida sem objetivo. Os dois perigos
são visíveis na conjuntura atual.
Na perspectiva dessa evolução é fácil compreender
a tendência dos intelectuais norte-americanos de substituir a visão
histórica pelo julgamento moral ou, pior ainda, por considerações
pragmáticas e circunstanciais. Moralismo e empirismo são
duas formas gêmeas de incompreensão da história. Um
e outro correspondem ao isolacionismo fundamental da mentalidade norte-americana
e são, por sua vez, conseqüência natural do projeto de
fundação do país: construir uma sociedade ao abrigo
dos horrores e dos acidentes da história universal.
Há uma dezena de anos, o filósofo John Rawls publicava um
livro, A Theory of Justice (1971), que os especialistas consideram
notável. O livro surpreende por seu rigor e por sua elevação
moral, na melhor tradição de Kant: clareza racional e pureza
de intenções. Cito esta porque, dada justamente sua importância,
é o melhor exemplo do desinteresse dos norte-americanos pela história.
Rawls se propõe a generalizar e levar a um degrau mais elevado de
abstração a teoria tradicional do contrato social tal como
o exprimiram Locke, Rousseau e Kant.
O livro contém certos capítulos apaixonantes sobre temas
como a legitimidade e a desobediência civil, a inveja e a igualdade,
a justiça e a eqüidade; termina com uma afirmação
dual da liberdade e da justiça: elas são inseparáveis.
Rawls elaborou uma filosofia moral fundada sobre a livre associação
dos homens, mas admite que a virtude da justiça não pode
desenvolver-se a não ser numa sociedade bem organizada. Ele não
diz como se pode obtê-la e em que consiste. Ora, uma sociedade bem
organizada só pode ser uma sociedade justa. Além desse caráter
circular do argumento, o que mais me inquieta é a indiferença
do autor, tão rigoroso quando maneja conceitos e significados, diante
dessa realidade terrível constituída por 5 mil anos de História.
Seu livro é uma filosofia moral que deixa de lado a História
e não examina as relações entre moral e História.
Ele se situa assim no extremo oposto do pensamento político europeu.
Para comprovar essa afirmação, é suficiente lembrar
os nomes de escritores tão diferentes como Max Weber, Croce, Ortega
y Gasset, Hannah Arendt, Camus, Sartre. Todos esses escritores viveram
ou vivem a cisão entre moral e História; alguns tentaram
inserir a moral na História e deduzir daí os fundamentos
de uma moral possível. A fraqueza do Ocidente tem sido a separação
entre a moral e a História. O segredo da ressurreição
das democracias - e, por conseguinte, da verdadeira civilização
- está no restabelecimento do diálogo entre a moral e a História.
Eis a tarefa de nossa geração e da que está por vir.
Os escritores e os jornalistas norte-americanos manifestam uma curiosidade
insaciável e são bem informados quanto à atualidade;
mas, em vez de compreender, eles julgam. É necessário dizer,
em sua honra, que eles reservam os julgamentos mais acerbos para seus compatriotas
e seus governantes. É admirável e, todavia, insuficiente.
Durante a intervenção de seu país na Indochina, eles
denunciaram justamente a política de Washington, mas essa crítica,
quase exclusivamente de ordem moral, omitia geralmente o exame da natureza
do conflito. As críticas visavam mais a condenar Johnson do que
a tentar compreender por que ele tinha mandado as tropas americanas para
a Indochina. Muitos diziam que esse conflito "não era deles", como
se os Estados Unidos não tivessem um poder mundial e como se a guerra
da Indochina fosse simplesmente um episódio local.
O isolacionismo foi, alternativamente, uma arma ideológica dos
conservadores e dos liberais. Na época do segundo Roosevelt, ela
foi utilizada pelo primeiro partido e hoje o é pelo segundo. A moral
não pode tomar o lugar da compreensão histórica e
eis porque muitos liberais se surpreenderam com o desfecho do conflito:
a instalação da ditadura burocrático-militar no Vietnã,
os massacres de Pol Pot, a ocupação do Camboja e do Laos
por tropas vietnamitas, a expedição punitiva dos chineses
e, por último, as hostilidades entre o Vietnã e a Tailândia.
Velhas realidades - Hoje, a propósito da América Central,
os liberais repetem as mesmas tolices... a atitude moralista, além
de não ser sempre sincera - quase sempre é uma máscara
-, não nos ajuda a compreender a realidade estrangeira. Como o empirismo
e o cinismo da força. Na esfera da política, a moral deve
ser acompanhada de outras virtudes. E, entre elas, a virtude central é
a imaginação histórica. Foi a faculdade de Vico e
Maquiavel, Montesquieu e Tocqueville. Essa faculdade intelectual encontra
sua contrapartida na sensibilidade: a simpatia pelos outros.
A imagem dos Estados Unidos hoje não é tranqüilizante.
O país está desunido, dilacerado por polêmicas sem
grandeza, corroído pela dúvida, minado por um hedonismo suicida
e aturdido pelas vociferações dos demagogos. Sociedade dividida,
não tanto verticalmente quanto horizontalmente, pelo choque de interesses
enormes e egoístas: as grandes companhias, os sindicatos, os banqueiros,
os grupos étnicos, a poderosa indústria da informação.
A imagem de Hobbes torna- se palpável: todos contra todos. O remédio
seria reencontrar a unidade de intenção sem o que não
existe possibilidade de ação. Mas como? A grande doença
das democracias é a desunião, mãe da demagogia. O
outro caminho, o da saúde pública, passa pelo exame de consciência
e autocrítica: volta às origens e aos fundamentos da nação.
No caso dos Estados Unidos, trata-se de uma volta à visão
dos fundadores. Não para repeti-los, mas para recomeçar.
Quer dizer: não para imitá-los, mas para começar de
novo.
Esses começos são, por sua vez, purificações
e mutações: com eles começa sempre outra coisa. Os
Estados Unidos nasceram com a modernidade e agora, para sobreviver, eles
devem enfrentar os desastres da modernidade. Nossa época é
atroz, mas os povos das democracias ocidentais, os Estados Unidos à
frente, anestesiados por meio século de prosperidade, obstinam-se
em não ver a grande tarefa que têm no planeta. Sob a máscara
de ideologias pseudomodernas, nosso século vê voltar a ele
velhas e terríveis realidades que o culto do progresso e o otimismo
imbecil da abundância acreditavam enterrados para sempre. Vivemos
um verdadeiro retorno dos tempos. Há um século, diante de
uma situação menos ameaçadora, Melville escreveu algumas
linhas que os norte-americanos deveriam reler e meditar:
"Quando as nuvens do mar cobrem a Terra
numa tempestade de tardio outono
e o vale o horror inunda,
e, na cidade, com estrondo cai a torre,
penso em meu país e no que sofre.
E reflito: da estéril imensidão do Tempo
se abate o furacão
sobre a mais pura esperança do mundo
junto ao mais obscuro humano crime.
É a parte mais negra da Natureza que desperta."
(Tradução do poema: Cecilia Thompson)
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