Velho Winchester calibre 44... Máquina para
matar que a indústria americana despachou para o Terceiro Mundo e
veio parar nestes sertões nordestinos. Dos navios passavam os
carregamentos aos trens e aos vapores do São Francisco, que
distribuíam a carga ao longo da sinuosa hidrovia. O público
consumidor era um só: os coronéis! Adquiriam para uso próprio, para
a revenda e para o empréstimo... Servir aos amigos nas horas
necessitadas. Vinham em grandes quantidades, que o consumo do
produto se estendia a um mercado imenso: do Recôncavo ao Maranhão;
indo a Minas, Mato Grosso e Goiás; alastrando-se por todos os
Estados do Nordeste brasileiro. Junto, a munição farta e os
acessórios em lona ou couro.
Na madeira resistente, polida e envernizada,
enxergava o atirador o próprio rosto. O cano, as molas, a manivela,
a agulha eram à prova de tudo. Talvez nem o fogo do inferno fosse
capaz de derreter aquele aço temperado no caldeirão da morte. No
baixo da coronha lá estava: o papo amarelo, em metal reluzente!
Distintivo que o afeiçoou, de pronto, ao cabra rude, inclinado a
matar. Recebia a encantadora máquina das mãos do coronel, benzia-a
com o sinal da cruz e beijava-a numa reverência macabra. Dali em
diante estaria em boas mãos. Descansaria, de través, no peito, como
troféu, sobre a cartucheira e o bornal, debaixo da sombra do chapéu
de couro e especado pelo punhal cabo-de-prata; ou trabalharia,
endiabrado, vomitando fogo, nos pulsos calosos do cabra valente de
corpo fechado.
Condenaram-te, ó velho rifle! Tinhas de cumprir,
também, a tua pena. Lampião, Silvino, Corisco, Cancão-de-Fogo e
centenas e milhares de outros parceiros teus já pagaram o que tinham
de pagar. E o fizeram com o preço da própria vida. Tu, mais
afortunado, ainda resistes vivo, embora velho, num canto, carunchado,
enferrujado. A tua imagem causa asco. Vives, aí no museu, para as
lembranças do passado. Um passado cinzento - da cor das brenhas e
dos carrascais; ou um passado vermelho - da cor da poeira e do
sangue.
Quem te viu... Quem te vê, ó inútil carabina!
Humilham-te as pomposas figuras dos AR-15 de olho eletrônico. No
pulso do destemido jagunço, abrindo estrada de fogo e de sangue,
lavaste a honra ferida; garantiste a virada da eleição perdida;
salvaste o rebanho do coronel das garras assassinas da canguçu
mão-torta; fizeste a demarcação das terras do coronel... Ao toque do
clarim, rasgando a caatinga, abriste ala para o exército revoltoso
do capitão Prestes. Subiste, pois, ao píncaro da glória. Hoje, o
mais miserável ladrão de rua nem te liga, ó jeringonça pesadona,
mal-amanhada. Bolo de ferro!... - é como caçoam de ti.
Dentre tantos, por aí que se ocupam de temas
enigmáticos, indecifráveis... E que narram histórias do Arco da
Velha... Nenhum se lembrou de ti, velha carabina de manivela perra
e retesado gatilho!
Porém, um sertanejo euclidiano, feito doutor e feito
escritor, soube, como ninguém, transmudar em arte primorosa a tua
história sangrenta... E quase sagrada... Que o digam os adeptos de
Cícero Romão Batista, o santo protetor do povo jagunço.
***
WILLIAM PALHA DIAS, o consagrado escritor piauiense
que mais entende das pugnas e refregas dos sertões mafrensinos,
aqui, com esta admirável obra, evoca a lendária figura do rifle
papo-amarelo. No passado, não tão distante, como que fora
instrumento de trabalho de uma significativa parte do povo. Ser
jagunço era ter uma profissão! Ser matador, cabecilha,
chefe-de-turma... Imprimir pavor ao povo com o rifle papo-amarelo, a
cartucheira e o punhal era como que ostentar a fama e a glória. Ser
valente, não temer a morte brutal, sangrenta e louca, era tudo o que
um caboclo desejava para sair da humilhante condição de cabra e
subir ao posto de capitão.
Este novo livro de WILLIAM PALHA DIAS, história
romanceada das trágicas e célebres lutas de nosso sertanejo,
embrenhado por aí desde os vales dos rios Piauí, Canindé, Uruçuí,
Parnaíba até as vazantes do Gurguéia e do Paraim, nos proporciona a
nós outros, mais novos, a oportunidade de conhecer, extasiados e
boquiabertos, essa faceta de nossa história; que os livros não
registram e que testemunhas não contam porque não sabem contar.
O romancista de Mulher Dama Sinhá Madama, de
Vila de Jurema e de várias outras obras de valor em nossa
Literatura Piauiense, sabe contar. E como sabe! Desta vez, ao que
parece, escreveu o livro que faltava, para lhe garantir a
consagração. Trata-se de narrativa moldada em prosa espontânea,
regionalista, rica de recursos lingüísticos, toda ela artística,
encantadora e convincente.