Oton Lustosa*
Viva o romance e não pereça o mundo
De longa data, os vanguardistas,
anarquistas, niilistas, desconstrutivistas e os insatisfeitos em
geral anunciam a morte do romance. Tudo porque o romance, bela
expressão artística da inteligência humana, tem berço na burguesia
pós-renascentista. Por isso a trombeta: se é fruto da burguesia,
merece morrer! Seria, porventura, a vingança da poesia épica, que
perdeu feio? A verdade, é que o romance caiu no gosto não apenas
dos burgueses, mas de todo o povo. Pois o romance, no dizer de
HEGEL, “é a epopéia de um mundo sem deuses. Ou seja: o romance é
a epopéia do cotidiano.”
A sociedade burguesa, vale dizer, o
povo das cidades se deleitava com a imagem cor-de-rosa do romance
romântico. Viam os burgueses nos enredos o que gostariam de ver,
movidos pelas cenas românticas do otimismo, do sucesso no casamento
e no amor; ou pelas cenas impetuosas da coragem e do heroísmo de
final feliz.
Os feitos heróicos de um certo
engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha como que subia o
moral do povo espanhol. Mas é a partir da publicação de A
História de Tom Jones — de Henry Fielding; Pamela ou a
virtude recompensada – de Samuel Richardson; e Vida e
aventuras de Robinson Crusoé – de Daniel Defoe, por volta de
1740, na Inglaterra — o berço do futebol —, que o romance
propriamente dito decolou para o mundo.
Curiosamente, aqui no Brasil, o
escritor Graciliano Ramos vaticinou que o futebol, coisa de gringos,
não vingaria nesta terra, onde os esportes prediletos eram o murro,
o cacete, a faca de ponta e a rasteira. Errou, Velho Graça! O
futebol está no pé, no peito, na cabeça e na alma do povo
brasileiro! E você, para mim – e para muitos – é o maior romancista
brasileiro!
O romance, como que para provar que
é mesmo a epopéia de um mundo sem deuses, no afã de buscar o
belo narrativo, aperfeiçoou-se nos enredos e nas vozes das
personagens de Sthendall, de Flaubert, de Balzac, de Zola, de
Dickens, de Dostoievski, de Tolstoi, de Camillo, de Eça, de Machado
e de tantos outros neste vasto mundo. Europa, Ásia e América se
uniram e se rivalizaram num fazer literário renovador, buscando,
sempre, o aperfeiçoamento dessa fôrma literária – o romance -, que
no dizer de HENRY JAMES, “ é a mais independente, a mais
elástica, a mais prodigiosa de todas.”
Os inimigos do romance, entretanto,
não desistem... Afinal, é filho da burguesia e merece ser
combatido. Acham eles que saindo de lá o romance, embora arte
límpida e maravilhosa – que segundo MASSAUD MOISÉS,
“pode, muito
mais do que o conto, a novela ou a poesia (mesmo a de caráter
épico), dar uma visão global do mundo”1
—, ainda assim, vindo da burguesia, é algo que deve ser
contestado para todo o sempre. Por isso é que para rebater tais
investidas, o romance passou a encenar a realidade presente, nua e
crua, transfigurada pela beleza dramática – intimista, psicológica,
social, sociológica —, que salta das páginas e cai nos olhos, no
coração e na alma do leitor.
Mais uma vez, valho-me da didática
de MASSAUD MOISÉS, renomado doutor da USP e um dos mais acreditados
historiadores da Literatura Brasileira. Diz ele: “Quando tudo
está a desmoronar é que mais se faz necessária a tarefa do
romancista.”2
Ainda a propósito dessa famigerada
profecia secular da morte do romance, quero trazer a lume a
conclusão de um dos maiores teóricos da arte literária contemporânea
— o professor-doutor, da Universidade do Minho, VÍTOR MANUEL DE
AGUIAR E SILVA. Diz o teórico português: “Segundo alguns
críticos, o romance actual, depois de tão profundas e numerosas
metamorfoses e aventuras, sofre de uma insofismável crise,
aproximando-se do seu declínio e esgotamento. Seja qual for o valor
de tal profecia, um facto, porém, não sofre contestação: o romance
permanece a forma literária mais importante do nosso tempo, pelas
possibilidades expressivas que oferece ao autor e pela difusão e
influência que alcança entre o público.”
3
É por estas e outras que o romance
continua. Na era da informação, quando se vive a hiper-realidade,
que chega a doer nos olhos de tanta evidência — tanta é a luz que
irradia das telas eletrônicas —, as narrativas longas, agora medidas
em hipertextos, kilobites e megabites, correm o mundo, feito de
cinco continentes interligados e globalizados. E assim, para todo o
sempre, resta eternizado o romance nas páginas de Gutemberg e nas
janelas virtuais do senhor Bill Gates.
Aqui neste rincão do Piauí, um dia,
quando ZOLA e tantos outros compunham enredos maravilhosos no mundo
europeu, um certo Ataliba, o vaqueiro, gemia a sua dor pelo
gado que morria de fome e de sede... E suspirava enamorado do amor
da sertaneja Terezinha. Francisco Gil Castelo Branco teria neste
quadro da seca e do amor a matéria-prima para uma obra-prima.
Surgia, pois, o nosso primeiro romance piauiense, que vem a ser, na
afirmação abalizada do crítico literário M. Paulo Nunes, a primeira
manifestação do romance regionalista nordestino. À história do
vaqueiro Ataliba seguiram-se outras e mais outras através dos
anos. Temos uma plêiade de bons romancistas, que cantam a gente e o
chão e ajudam a fazer, com muita honra, a nossa Literatura
Piauiense.
Eu, que sou filho do meu tempo,
cumpro o dever de testemunhá-lo. Gozo ou padeço o deleite de cantar
ou gemer a realidade que está na frente do meu nariz, dentro dos
meus olhos, eternamente presente nos meus sonhos de esperança ou nos
meus pesadelos de desilusão.
Nestas duzentas e sessenta e uma
páginas de Vozes da Ribanceira, o meu enredo é apenas
realidade e sonho, condensados numa modesta composição literária. A
realidade amarga dos anos 70... E o sonho doce do alvorecer
democrático dos anos 80! Nesta narrativa, onde uso e abuso do
discurso indireto livre, das analepses e das prolepses, a minha
personagem central não é o hippie Tenório, lindo moço de cabelos
longos e corpo tatuado; nem a loura e bela e sensual Zizinha de
Almeida... Nem o fazendeiro Raimundão Araújo, ou o padre Pedro, o
Lico Passarinheiro, o Zito, a Ditinha, a rapariga Carmosa, os poetas
cantadores Arlindo Viola e Caetana, o bodegueiro Bisô, o macumbeiro
Janjão, o soldado Sousa Martins ou o pescador Galdino Canoeiro... Ou
tantos outros. A minha personagem central é o povo do Poti Velho,
este povo tão genuinamente teresinense, nordestino, brasileiro!
Este é o livro que levei mais de
dois anos para escrevê-lo. Não esperarei vivo que ele provoque
interesse e muito menos aplauso da crítica elitista do eixo cultural Rio-São Paulo. A mim me basta o aplauso dos bons amigos que me lêem
e me ouvem com respeito e carinho por aqui no meu Piauí e por aí
Brasil afora. Por isso proclamo: Viva o romance! E não pereça o
mundo!
Muito obrigado.
Notas:
1
A Criação literária – prosa. Cultrix, São
Paulo, 1997, p. 97
2 Idem, ibidem, p. 97.
3 Teoria da Literatura, 8a. edição.
Livraria Almedina. Coimbra, 1993, p. 684.
OTON LUSTOSA é romancista e
contista. Membro
da Academia Piauiense de Letras. Oração proferida
por ocasião do lançamento do romance Vozes da
Ribanceira, no auditório da APL, em 08.11.2003.
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