Oton Lustosa
Justiceiro do barranco
Ligeiro treinamento: correndo a subida
da ladeira, os pulos em perigo na barroca de terra vermelha, a luta
em campo raso, braço quebrado para trás com o golpe-gravata.
Finalmente, a troca de tiros com balas de pólvora. Já soldado da
polícia: cáqui, coturno, quepe, revólver. Na feirinha de sábado,
dois matutos e um cigano não se entendem. A mula pedrês tinha
defeito na vista. Bem o cigano avisara: — Se tiver defeito está na
vista, meu gajão! Lindo animal de sela!... Vieram devolver. Não
servia aos matutos. Atalhando a vaca turina, peitou-se bestamente na
cerca. Visão empastada, mijo de tataíra no preto dos olhos depois do
parto. O cigano não ia desfazer o negócio. Levassem o jumento ruço,
com o arção de cangalha e o tacho de cobre... Crueiras de mandioca e
capim mimoso no beiço do riacho, daria um pastor de éguas, fonte de
riquezas para o dono. Um novo rolo... Tornassem quinhentos mil
cruzeiros. Os matutos com as facas nas mãos: — Cigano fela-da-puta!
A feira em alvoroço. No quadrado de
areia, na frente do mercado, três homens, duas facas e uma pistola
engatilhada.
— Bala é mais ligeira, meu gajão!
Corra a polícia que os ciganos matam
os homens na feira! Na frente do pelotão o comandante do
destacamento. Quem? Soldado R. Turiba, O+. Fogoiosão de um metro e
oitenta, um quase-sorriso querendo sair, faísca nos olhos, aceso
cigarro no canto da boca.
Um tiro... Urro de bicho ferido. Já no
socorro o soldado Turiba. Na fumaça do tiro, outro tiro... mais
outro. Devagarinho, com a bala no peito, caía sentado o cigano. Na
areia ciscavam homens-galinhas. Baleado nos quibas, um; tonto das
vistas, o outro, com o olho vazado.
Chamado no local o chefe da linha. Se
apresentasse à autoridade e levasse seu morto. Deixasse a cidade
antes do sol se pôr. Ficassem pro inquérito a mula pedrês, o jumento
ruço, a pistola e as facas.
A cidade tinha lei. Correu a fama de
um militar destemido. Nunca mais a faca sem bainha faiscando ao sol
nem tampouco varrendo o chão na frente do mercado em dia de feira.
À paisana, de férias na casa do pai.
Outrora vaqueiro, agora o velho dono de terras e de gados. Branco o
curral dos nelores, verdes os pastos de jaraguá, preta de moscas a
mesa dos queijos, fartura de carne seca no varal do terreiro. Mata a
saudade dos tempos vividos. Menino-vaqueiro no lombo do poldro
rosilho. No encalço do garrote espácio, ligeiro-bala no capão das
cagaitas, antes da curva do riacho já com os quartos na terra e os
cascos pro ar. Valeu boi! O filho de peixe mostrava serviço. Seu
pai, o melhor vaqueiro de todos os tempos naquelas ribeiras. Com a
confiança do patrão, subiu de vaqueiro a encarregado e daí a
fazendeiro também. O filho nas letras da escola não subiu além do
ginásio. Pros diabos o curso normal, que ele não tinha jeito de
professora.
Na polícia, passando uma chuva, o
ordenado no fim do mês. O dinheiro todinho pro velho comprar
bezerras nelores. O poldro rosilho, agora cavalo-de-fábrica, velho e
ruço como o jumento do cigano.
Na cidade, ainda de férias, com os
amigos na prainha do rio, na praça, no joguinho de dominó. No fim da
tarde, na vendinha de caldo de cana, pãozinho da hora, cerveja,
cachaça e sinuca. Uma fama de valentão e malvado que corria mundo,
mas que não se confirmava em pessoa. Ali um homem-menino:
brincalhão, amigo, de boa paz. Comia pãozinho com caldo de cana. O
revólver trinta e oito por baixo da camiseta, que um militar é
sempre armado.
De repente, os cumprimentos de dois
amigos:
— Tonhão!
— Turiba!
O revólver trinta e oito muito de
propósito pela abertura da camisa de um paisano. Seria aquilo uma
afronta? Conhecidos dos tempos de estudantes. Famoso pela sorte
grande no garimpo, retorna Tonhão com dentes de ouro, colares como
torçal de corda, um sorriso faiscante. Na prosa, rica, arrotada, uma
história de barrancos, pepitas e bamburros; outra história de
acertos de contas, sangues e mortes... A experiência de justiceiro
do barranco. De onde veio, dos confins dos garimpos, trouxe o luxo
do ouro no pescoço, nos dedos, nos punhos e nos dentes. Na cinta
jóia mortífera, com o gatilho e a mira de ouro, o cabo de
madrepérola e balas de cabeças vermelhas de duas explosões.
Os dois combinados para beberem como
velhos amigos. Não estava ali o militar; não estava ali o
garimpeiro. Comandante do destacamento, um; justiceiro do barranco,
o outro. Arlindo, tremoso, recebe, para guardar, os revólveres
carregados. Agora a prosa desbragada. Cascos de cerveja coalham o
chão da vendinha.
De repente, a sinuca de bico. Errando
a tacada, perdidas as cabeças de gado... O poldro rosilho... O
ordenado de soldado... Tonhão, com aquele sorriso faiscante,
chegaria a casa do velho para tanger as novilhas nelores e debochar
do poldro rosilho, que agora era cavalo-de-fábrica, velho e ruço.
Turiba não erraria a tacada. As duas
bolas, em sinuca-de-bico, uma na frente da outra. Quer dizer, uma
meio que entrincheirada, sem mostrar alvo pro tiro. Ligeira
discussão. Serenados, apertadas as mãos. Mais uma cerveja. Cigarros
acesos. Arlindo, como quem meche com cobras mortas, com as pontas
dos dedos pega os revólveres pelos cabos e os devolve aos donos com
as cabeças viradas lá para longe de si. Tudo como antes: um caçoando
do outro frente à dificuldade, a prova de fogo pela ponta do taco.
Perdida a tacada, Tonhão ferrará as novilhas nelore com um enorme
ferro de ouro. Tirada a sinuca, perdidos o revólver de ouro, os
colares, os anéis e o pacote de dinheiro. Pobre, Tonhão de
justiceiro seria justiçado: preso e algemado pelos crimes cometidos
no garimpo.
Nova discussão. Desta vez os tacos em
cima da mesa. A sinuca-de-bico é agora um jogo de vida ou morte.
Como um gato, Tonhão de um salto no meio da rua. Da trincheira da
banda de porta Turiba lhe busca o alvo da testa. Atira e o outro
responde. Ligeiramente agachado, por uma fração de segundo dormiu na
mira de ouro. Turiba é alvejado em cima do peito. O cigarro ainda
dançando no canto da boca, recebe outro tiro. A vista empastada...
Vai se assentar, que o seu peito derrete como vela de cera. O
revólver tomba da mão. O poldro rosilho, agora velho cavalo ruço
como o jumento do cigano, levanta-se e lhe vem dar uma patada na
cara.
Tonhão, ainda agachado, recarrega o
tambor, enfia o revólver no cós e se vai calmamente pela ruazinha
que morre ali na grota e desaparece no mato adjacente. Turiba tem um
resto de cigarro fumegando no canto da boca, enorme pedaço de cinza
por cair. Dois rios vermelhos jorram de seu peito esquerdo. Tonhão
nunca mais voltará para receber as novilhas nelores e o poldro
rosilho. Justiceiro, decidiu um jogo no tiro e não no taco. Não
haverá mais ajuste de contas.
Desfeita a sinuca-de-bico, vão as duas
bolas, com as cascas das balas, para o bojo do inquérito.
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