Paulo de Toledo
O Espelho Desmascarador de Machado
Rimo-nos, nas
barracas de
diversões, daqueles
caricatos
espelhos,
que
nos reduzem
a
mostrengos, esticados
ou globosos.
Guimarães
Rosa — “O
Espelho”
O
conto
“O
Espelho”
de
Machado
de Assis narra a
história
de
cinco
amigos
reunidos numa
casa,
onde
discutem
sobre
“várias
questões
de
alta
transcendência”.
Um
deles, a
certa
altura,
formula uma
tese,
que
é o
tema
do
conto:
Em
primeiro
lugar,
não há uma
só
alma, há duas... [Assis, 1959, p. 259]
O
tema
da
divisão/duplicação
da
alma
é disseminado ao
longo
do
texto
através
de
signos
que
indicam mediação
ou
duplicação.
O
primeiro
desses
signos,
encontramos
logo
no 1º
parágrafo:
Entre a
cidade,
com
suas
agitações e
aventuras, e o
céu,
em
que as
estrelas pestanejavam (...) estavam os
nossos
quatro
ou
cinco
investigadores de
coisas
metafísicas... (sublinhados
nossos) [Assis, 1959, p. 257]
Constatamos,
então,
que
os
cinco
personagens
estão numa
posição
inter-mediária, mediados
entre
“a
cidade”
e o “céu”.
Outros
indícios
podem
ser
apontados
para
justificar
nossa
tese
sobre
a
disseminação
do
tema
divisão/duplicação:
No
meio da
noite... [Assis, 1959, p. 258]
A
conversa
em
seus
meandros... [Assis, 1959, p.
258]
ponto
que dividiu... [Assis, 1959, p.
258]
Cada
criatura
humana traz duas
almas
consigo... [Assis, 1959, p. 259]
as
duas (almas) completam o
homem,
que é, metafisicamente falando, uma
laranja.
Quem perde uma das
metades, perde
naturalmente
metade da
existência. [Assis, 1959, p. 259]
Durante
alguns
dias as duas
naturezas equilibraram-se... [Assis,
1959, p. 263]
diálogo
do
abismo... [Assis, 1959, p. 267]
Tic-tac,
tic-tac. [Assis, 1959, p. 267]
Nos
sonhos, fardava-me,
orgulhosamente, no
meio da
família e dos
amigos... [Assis, 1959, p. 268]
um
receio de achar-me
um e
dois, ao
mesmo
tempo... [Assis, 1959, p. 269]
(o
espelho)
não
me estampou a
figura
nítida e
inteira,
mas
vaga, esfumada,
difusa,
sombra de
sombra. [Assis, 1959, p. 269]
e sentava-me
diante do
espelho, lendo, olhando, meditando...
[Assis, 1959, p. 271]
(todos sublinhados
nossos)
Além dos
indícios levantados
acima, percebemos
também
que o narrador mostra-se dividido
quando hesita
em
quantificar os
personagens:
Quatro
ou
cinco
cavalheiros debatiam... [Assis, 1959,
p. 257]
estavam os
nossos
quatro
ou
cinco
investigadores de
coisas
metafísicas... [Assis, 1959, p. 257]
A
conjunção “ou” (inter-mediando “quatro ou cinco”) é o signo
indicador da divisibilidade, do duplo sentido exposto pelo narrador.
Mais adiante, este nos esclarece o porquê de sua hesitação:
Por
que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas
além deles, havia um quinto personagem, calado, pensando, cochilando
(...) Não discutia nunca... [Assis, 1959, p. 257]
Este “quinto personagem” verificamos
depois tratar-se de Jacobina. O que “não discutia nunca”. Jacobina,
pois, ficava no meio dos quatro amigos sem nunca tender para nenhum
dos lados. Diríamos, hoje, que ele ficava “em cima do muro”.
Jacobina é, portanto, um mediador, assim como os “serafins e os
querubins”, os quais ele toma como exemplo para justificar o seu
espírito avesso à controvérsia.
Além da hesitação do narrador em numerar quatro ou cinco
“personagens”, há também a hesitação para a confirmação da idade de
Jacobina:
Esse
homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e
cinqüenta anos... [Assis, 1959, p. 257]
O lugar-entre, a inter-mediação de Jacobina confirma-se
através da materialidade dos signos. Assim como há “quatro ou cinco”
personagens, da mesma forma a idade de Jacobina está “entre quarenta
e cinqüenta anos”. “Ou” e “entre”. A dúbia posição marcada
isomorficamente pelos signos: 4/5 <—> 40/50.
Jacobina, como a “Santa curiosidade”, é o “pomo da
concórdia”. Ele é o 5 (”quinto personagem” - 50(?) anos) dividido
ao meio. Jacobina joga pelo empate (não pelo embate) para que
ninguém saia perdendo. Assim, sem di-vergências, ele e seus amigos
representantes da classe burguesa mantém seus meios (haveres,
recursos) até o fim.
Outro número que indica mediação é a idade de Jacobina
quando ele torna-se alferes:
Tinha
vinte e cinco anos, era pobre e acabava de ser nomeado alferes da
guarda nacional. [Assis, 1959, p. 261]
50 (± a idade de Jacobina/narrador) : 2 =
25. 25 <—> 2,5 (“quinto personagem” dividido ao
meio).
5 e 50. 25 e 2,5.
Paronomásia numérica. Matemática poética. Iconização do
verbal. Parataxe. (Décio Pignatari dixit).
A
paronomásia rompe o discurso (hipotaxe), tornando-o espacial (hipotaxe),
criando uma sintaxe não-linear, uma sintaxe analógico-topológica.
[Pignatari, 1979, p. 113]
Não-linearidade — o meio machadeano de signi-ficar.
Continuando a identificar os signos
indicadores de mediação em “O Espelho”, pensamos tratar-se o nome de
Jacobina do mais interessante dentre eles.
Jacobina, além de aproximar-se do vocábulo “jacobino”,
remete, também, ao nome de Jacó, o personagem bíblico.
A aproximação com o vocábulo “jacobino” é uma clara
ironia machadeana, pois este vocábulo alude aos revolucionários
franceses, designando alguém combativo e radical, características
estas totalmente opostas ao caráter pacífico e mediador de Jacobina.
Por sua vez, o nome de Jacó leva-nos à idéia de
duplicidade. Jacó era o irmão gêmeo de Esaú. Jacó era, portanto, a
outra metade, o reflexo de Esaú. Jacobina e Joãozinho. Esaú e Jacó.
Joãozinho é o outro Jacobina, aquele rapaz inocente que amadureceu
com a descoberta da segunda alma refletida no espelho. Ou melhor,
com a descoberta de que
não há
para a alma interna outra saída senão a integração a qualquer custo
na forma dominante. [Bosi, 1970, p. 447]
Após olhar-se ao espelho, Joãozinho/Jacobina declara:
Daí em diante, fui outro. [Assis, 1959, p. 271]
Novamente, Bosi:
O que
separa o último (Joãozinho) do primeiro, o narrador da história
narrada, é, simples e brutalmente, a passagem de classe, o
aprendizado das aparências. [Bosi, 1970, p. 447]
Com este “aprendizado das aparências”, Joãozinho
torna-se outro. Torna-se ALf(T)ERes.
No fim
de três semanas, era outro, totalmente outro. Era
exclusivamente alferes. [Assis, 1959, p. 264] (sublinhados nossos)
ALfERes <-> ALTER.
Mais uma vez, o duplo, a divisão, a “alferidade” (Bosi),
ou melhor, a alteridade.
A construção do conto sobre o tema da divisão/duplicação
é ligada, obviamente, ao título da obra: “O Espelho”. No conto, tudo
é reflexo, nada é verdade. Desde o clima etéreo da casa “cuja luz
fundia-se misteriosamente com a lua que vinha de fora”, até o
aspecto fantástico que assume a história do alferes, o conto parece
ser uma especulação ("esboço") nada séria sobre a fragilidade das
idéias sustentadas pelo materialismo científico da sua época.
“O Espelho” seria então, através do recurso da ironia,
uma forma de desmascaramento da sociedade e, mais especificamente,
dos defensores do cientificismo positivista. Através da ironia
("esse movimento ao canto da boca, cheio de mistério" [Assis,
1959, p. 114]), “O Espelho” acaba
tendo a função que a máscara na cultura popular tivera, na opinião
do crítico russo Mikhail Bakhtin:
(A máscara é) a negação
da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das
transferências, das metamorfoses, das violações de fronteiras
naturais, da ridicularização, dos apelidos... [Bakhtin, 1996, p. 35]
“O Espelho”, como um conto-máscara,
expressa a “ridicularização” da sociedade brasileira, provinciana
(mas “não sem instrução”), ao tentar copiar (espelhar) os modelos
europeus, locupletando-se de “física e metafísica”.
São vários os exemplos que demonstram a forma irônica com
que Machado representa a classe burguesa brasileira e sua formação
canhestra:
quatro ou cinco
cavalheiros debatiam (...) sem que a disparidade dos votos trouxesse
a menor alteração nos espíritos. [Assis, 1959, p. 257]
estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas
metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do
universo. [Assis, 1959, p. 257]
dizendo (Jacobina) que a discussão é a forma polida do instinto
batalhador, que jaz no homem como uma herança bestial... [Assis,
1959, p. 258]
inconsistência
nos pareceres. [Assis, 1959, p. 258]
as
duas (almas) completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma
laranja. [Assis, 1959, p. 259]
os
fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça
namorada. [Assis, 1959, p. 264]
A
realidade das leis físicas não permite negar que o espelho
reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim
devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação... [Assis, 1959, p.
269/270]
Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem
cálculo, lembrou-me... [Assis, 1959, p. 270]
Com o último exemplo citado, notamos que a salvação de
Jacobina/Joãozinho (a sua idéia de vestir a farda diante do espelho)
deu-se por meio de uma “inspiração inexplicável”, de um “impulso sem
cálculo”. Ou seja, a física e a metafísica, a ciência, cedera lugar
ao “estalo”, à adivinhação.
A ironia, contida no salvamento do “herói” através de
uma “inspiração” e não de um raciocínio lógico e científico, é o
desmascaramento final da seriedade oficial burguesa e de seu
pseudo-cientificismo.
Enfim, poderíamos dizer que o que Machado busca fazer a
respeito da sociedade de seu tempo é o mesmo que o narrador de “O
Espelho”, de Guimarães Rosa procura fazer consigo mesmo:
Sendo
assim, necessitava eu transverberar o embuço, a travisagem daquela
máscara, a fito de devassar o núcleo daquela nebulosa — a minha vera
forma. [Rosa, 1988, p. 68]
A medio-cridade burguesa é, portanto, encontrada neste
soberbo conto machadeano em sua “vera forma”, despida e desmascarada
de seu “embuço”, de sua “arte difícil de pensar o pensado”
[Assis, 1959, p. 114].
Bibliografia:
ASSIS, Machado de. “O espelho”, em
Papéis Avulsos. RJ, SP e Porto Alegre, W. M. Jackson Inc. -
Editores, 1959, p. 257-271.
ASSIS, Machado de. “Teoria do
medalhão”, em Papéis Avulsos. RJ, SP e Porto Alegre, W. M.
Jackson Inc. - Editores, 1959, p. 101-115.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura
Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. SP-Brasília, Edunb & HUCITEC, 3ª ed., 1996.
BOSI, Alfredo. “A máscara e a
fenda”, em BOSI, Alfredo e outros. Machado de Assis. São
Paulo, Duas Cidades, 1970, p. 437-457.
ROSA, Guimarães. “O espelho”, em
Primeiras Estórias. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira,
28ª ed., 1988, p. 65-72.
PIGNATARI, Décio. Semiótica e
Literatura. São Paulo, Cortez & Moraes, 2ª ed., 1979.
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