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Paulo José Cunha
<upj@persocom.com.br>

 
Poesia:
  1. O saco
  2. Saudade
  3. Tráfego
  4. Ausência
  5. A recriação da luz
  6. O infinito
  7. O cálice de Kafka
  8. Plano geral
  9. Todo tempo é irredimível
  10. Dá-me o prazer?
  11. Salto sem trapézio
  12. Poetas!
  13. De fugas e vôos


Crítica e ensaio

O jornalista, professor e escritor Paulo José Cunha foi repórter de O Globo, Jornal do Brasil e Rede Globo de Televisão. É diretor de documentários e comerciais de TV. Autor de “O Salto sem Trapézio” (poesia), “A Noite das Reformas” (análise dos  bastidores da revogação do AI-5), “Vermelho, um Pessoal Garantido” e “Caprichoso, a Terra é Azul (livros de arte sobre a Festa do Boi-bumbá de Parintins-AM). É Professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e Diretor do CPCE - Centro de Produção de Televisão e Cinema da UnB. É o Editor-chefe do programa radiofônico “Escola Brasil”, voltado para a educação fundamental, veiculado para todo o país, particularmente para a região amazônica, pela Rádio Nacional Brasília e pela Rádio Nacional da Amazônia. É autor da coluna semanal “Telejornalismo em Close”, publicada em cerca de 60 jornais brasileiros e em 10 sites, inclusive no exterior. Está concluindo a elaboração de um “Manual Básico de Telejornalismo” a ser editado pela Editora da UnB. Prepara a edição de “Perfume de Resedá” (nome provisório), um poema longo iniciado em 1984 e concluído em 1997. E está organizando os originais de “Fortuna Crítica de Torquato Neto”, com poemas inéditos de Torquato e textos inspirados na obra do “anjo torto” da Tropicália. [Noticia de ago/01]

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Paulo José Cunha
SAUDADE
 

saudade é minha mão
enxugando uma lágrima 
no teu rosto
num fim de tarde
(ausência de ti é pânico)

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Paulo José Cunha
TRÁFEGO 
 

a ansiedade deste encontro
( sempre o primeiro e o último
e os carros, a fumaça, os pneus,
os retrovisores
e as mãos suadas)

angústia de um ônibus vazio
ao lado do meu táxi

- e depois da curva, além da angústia?

a luz do freio acesa
na traseira daquele ômega

- não fale agora, não fale

uma ultrapassagem
e os olhos dela pulsando 
na memória
as luzes dos sinais 
as luzes dos faróis
as luzes 

- isso me lembra uma música
   uma música muito antiga
   (que eu esqueci) 

o calor, a grama seca 
a falta de umidade
e ela aflita 
as mãos pelo cabelo

- não dá para ir mais depressa?

que seria de mim sem aqueles olhos?
e as luzes, o calor, as mãos ásperas?

- não me olhe assim, não me olhe

na curva, um ônibus lotado,
suor, saudade
uma saudade imensa
e este louco aí atrás buzinando
ultrapassou

-me beije agora, me beije

o vento pela janela
poeira fina, seca
os cabelos 
entrando nos olhos vermelhos
de fumaça e tráfego

as horas, as horas lentas, oleosas,
as unhas nos dentes,
o motorista com a barba por fazer,
o suor salgado nas mãos

- só lembro que era uma noite
de sábado
mas não me lembro
da marca do vinho 

ranger de pneus, boca amarga,
o rosto dela no retrovisor
e tantos carros, tantos 

suor frio debaixo do braço

- bonita, muito bonita, de uma beleza
assim... Catherine Deneuve, sabe como é?

os olhos úmidos 
de fumaça, náusea 
e, renitente,
pelo corpo melado,
uma vontade besta de morrer

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Paulo José Cunha
A RECRIAÇÃO DA LUZ

 

chegou triste
com olhos velhos
tinha febre frio e medo
um jeito distante
como distante trazia 
o corpo (quase arrastado)

foi-se aninhando
pássara assustada
(os olhos velhos velhos)

um soluçar de antigos sofrimentos
lágrimas de paixões nunca esquecidas
homens suados
prazeres

inteiramente só
a cabeça baixa
cabelos caindo no rosto
braços cruzados sobre o peito
e os olhos velhos

falei de barcos e fugas
da atração da morte
e das mulheres esplêndidas 
que nunca cruzaram 
a esquina do meu coração

tomou leite quente
algum conhaque
depois falou de angústias e traições
e sem saudade ( até sorrindo )
lembrou de um passado inesquecível

tinha medo do passado e do presente 
(do futuro não falou)
 

recordou sabores nunca renegados
mas que jamais mataram sua sede
 
 
 

isto tudo falou assim
até que lhe beijasse os olhos
úmidos e velhos

despediu-se com um ar distante
( como se não tivesse chegado )
apenas olhava o sofá a taça vazia o cinzeiro 
e nos olhos velhos 
havia o pedido 
de um instante a mais

então beijou-me
beijou-me um beijo lento
(menos que um beijo
uma procura )

o beijo escorreu da boca
e foi descendo até os pés
e ali
ao som de uma canção antiga
(na certeza de que não iria faltar cigarro)
entre as roupas que foram
lentamente
recobrindo o assoalho da sala
eu vi
nela toda
acender-se uma luz

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Paulo José Cunha
O CÁLICE DE KAFKA 
 
 

Não fui convidado. 
Apenas acordei aqui,
o cálice entre as mãos,
e, ao meu lado, 
a ampulheta partida. 

Nem sei a hora
em que a orquestra tocará
o último acorde. 

Apenas permaneço, 
expectante.
E já nem quero 
que me apareça 
alguém de vestido diáfano
e olhos de cristal.

(Já me daria por satisfeito 
se pelo menos me explicassem 
porque riem tanto)

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Paulo José Cunha
POETAI, POETAS, POESIA!
QUE A MORTE É NO DIA-A-DIA!

toda palavra semeia
a flor do próprio veneno
e cada frase vagueia
na versão do seu momento

toda palavra retesa
a corda do próprio arco
não faça versos não fale
o que valeu já não vale

mesmo que seja perverso
anote o verso resista
toda palavra se explica
no próprio verso em que habita

no instante exato do crime
toda palavra é uma pista
não se explique tome um porre
o que foi dito é o que morre

rasgue os versos vá embora
renegue tudo o que fez
copie de novo outra vez
passe a limpo e jogue fora 

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Paulo José Cunha
salto sem trapézio
 

qual é o grau da loucura
a dimensão do perigo
que se equilibra no fio
de uma navalha de aço?
qual é a força do braço
numa carícia ao pescoço?
a profundeza do rio
e a fundura do poço?

quanta coragem é servida
na decisão da partida?
quanta verdade se guarda
num copo de formicida?
a resistência da corda
o laço feito, a saída?

qual é a temperatura 
do brilho azul de uma arma
engatilhada no ouvido?
o cheiro do gás é doce?
qual o sentido, a ternura
do andar mais alto ao vazio?

quanta certeza ilumina
o instante à beira do salto?
que gosto sente a platéia
quando se fecha a cortina?

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Paulo José Cunha
PLANO GERAL 
 

pra que cinema, morena,
pra que tv?
pra que cinema, morena?
quem quer saber?

abra um olho e feche o outro:

um plano depois do outro
um plano depois do outro 
corte, recorte, prossiga
e vá montando seu filme
um plano depois do outro

isto é a vida, morena
isto é cinema - ou não é?

dê uma pan na cidade
abra uma zoom na paisagem
enquadre a cena e repare
que a morte é o olho fechado
e a trilha vem das esquinas

quem sabe a gente, morena
se encontra uma hora dessas
em frente a  uma moviola
numa ilha de edição?

rádio, tv, cinema,
é tudo ilusão, morena 

e então:
pra que cinema, me diga
pra que tv?

(escurinho, bilheteiro,
pipoca, pulga, chiclete 
the end, plim-plim, letreiro) 

vá lá, me diga: pra quê?

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Paulo José Cunha
TARDE
 

agora é tarde
os pássaros 
abandonaram os quintais
não sei se ainda te amo
ou se nem mais

agora é tarde
(foi por um triz)
mas passa da hora 
e a última perdiz
já foi-se embora

é tarde, amiga
agora é tarde
eu já nem lembro mais 
o verso daquela cantiga
e o pássaro de fogo
já não arde

é tarde

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Paulo José Cunha
dá-me o prazer?

a mim não importa a janela
nem a vida
muito menos a porta
da entrada
ou da saída

sou mais é participar da miragem
e bailar entre os espelhos 

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Paulo José Cunha
O INFINITO
 

Tomei por arte
a pretensão do infinito
e uma ousada aspiração de eternidade

Mas vejo Hemingway,
os dois canos da espingarda na boca,
Villa-Lobos passando giz no taco de bilhar,
Picasso segurando aquela sombrinha,
a mão ingênua de Pasolini apoiando o queixo,
Rimbaud traficando armas na África,
Fellini de pés descalços numa praia de Rímini

E eu aqui: caneta, papel
e dois tostões de poesia.

O infinito é maior.

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Paulo José Cunha
O SACO 

As mãos vazias do rico 
exibem a prova do alcançado. 
Não mais mãos do afazer, mas do já feito;
bem tratadas, finas, alisadas,
são mãos que não carregam nada, 
pois carregar já não lhes diz respeito.

Mas todo pobre, sim, carrega um saco
onde transporta o apurado 
do ir-e-vir de que se ocupa:
garrafa azul, vazia (linda pra botar 
rosa de plástico!); sobra de almoço;
produto de furto miúdo,
que ajuda a garantir o passadio; 
miudeza de camelô, pano de prato, muda de planta;
revista velha com retrato de artista; 
essas coisas.

Pelas paradas de ônibus,
filas da beneficência e ruas de comércio,
observe: 
todo pobre arrasta um fardo, 
uma tarefa, uma sina, 
um-que-fazer-eterno
guardado num saco branco, 
desses de supermercado, 
de plástico leitoso, com alcinhas.
Um saco nem leve nem pesado, 
mas incômodo feito pobreza incompleta 
(pobreza dessas 
que a morte 
nem se preocupa em cumprir
na inteireza).

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Paulo José Cunha
AUSÊNCIA
 

Quando eu sair,
fechem as portas e janelas do meu quarto
para que não fuja 
o perfume da memória.

(quero encontrar, na volta, 
o menino
rabiscando na mesma escrivaninha,
as garatujas de sempre
e acompanhando, pela janela, no quintal, 
o vôo dos pássaros de abril)

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Paulo José Cunha
Todo tempo é irredimível
 
 

Vasto campo de amor,
destroços de paixão
largados na paisagem 
de nuvem, água e verdura 

Assim se resume esta saudade

Não se redime o tempo
(tempo algum se redime)
sobretudo
o tempo nutrido de suspiros

Eis aqui, senhora, o tempo,
o tempo em minhas mãos
que deposito
a teus pés, 
pois te pertence,
já que na tua vida
foi vivido

Terias coragem de dizer
que foi tempo perdido
a nunca mais? 

Jamais, pois sabes 
que é tempo venturoso
feito
de roçar de olhos
e pele arrepiada 

Nosso tempo, espalhado no vasto campo
entre os destroços da paixão,
é tempo eterno, 
irredimível.

E nós, condenados a ele,
refulgiremos para sempre
nas retinas
as luzes, os fogos, as cores 
e a ilusão daqueles dias
em que tudo parou. 

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Paulo José Cunha
de fugas & vôos

ao poeta
não se permite correr
mas ele pode voar
quando quiser e entender

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