Pedro Cabral
Cangaceiros
Dedicado ao Herbert
Cangaceiros escondidos num buraco de Angicos na caatinga rebelde
Cangaceiros rebeldes transmutados em caatinga,
Transformados em poeira,
Escondendo gestos nos gravetos espinhentos
de xique-xique.
Entre frutas magenta de mandacaru, a matar a sede
Cangaceiros sedentos quase espinhentos, todos rebeldes.
Uma trilha muito estreita, um caminho de terra vermelha em busca do rio
Uma ladeira cercada de mata aparente ligando o rio
a um morro-defesa
Cercando um buraco - leito de rio seco - ainda sedento
de água fresca.
Entre galhos bem secos de árvores secas que lembram a Seca
Cangaceiros sadios, quase sedentos, povoam o lugar.
Entre pedras-santuário parecendo cama, parecendo altar, parecendo assento
Cangaceiros cruentos reunidos em convenção
Promovendo estratégias
sobre as lidas dos Macacos, a vinda de Corisco,
o adeus de Lampião.
Mata-rala, translúcida, aparentemente frágil, aparentemente.
Transparente mas impossível de se mergulhar
em seu conteúdo
Aqui ou ali, às vezes um carcará, rasgando o som alto
de máquina cortante.
Cangaceiros reluzentes, sob um sol abrasador, se preparam para a noite
Quando a noite vier com suas cachaças ardentes
em garrafas lambidas
Atiçando valentias, sonhando conquistas
de ouro pungente.
Haverá presságios na noite vizinha ?
Onde senta Canário ?
O que pensa Maria ?
Cangaceiros de roupa cor da terra, da cor do burro, da cor da mata e da cor do susto
despistados de arbustos repletos de armas agudas
semelhantes suas facas
Onde o sol se reflete como se fosse pedra, como se fosse espelhos
de água e óxido.
Os pássaros - que- não -cantam não se atrevem nessas caatingas a ver neles a carniça
pois já cansaram de ver cangaceiros ser paisagem
resistente qual a pedra
E de longe assistem emudecidos o silêncio do cangaço
na mata silente.
A mata guardiã não é tida como mata, antes seja caatinga rala para quem olha de longe
Mas se a vista alcança, a mata é lança, caatingas em tranças
estruturam fronteiras
E os cangaceiros, ditos errantes, praticam frementes, grunhidos bacantes
Pois a noite os espera em festa privada
Longe de olhares, possíveis vexames em casos belígeros.
Fica de guarda, Criança!
Te cuida, Juriti !
Não dorme Cirilo !
E como se espera, a noite infalível comparece em julho de um azul noturno
Talvez as estrelas assistam silentes a gente contente
conversar no escuro
São sibilos noturnos parecendo corujas
em prosas notívagas
São cangaceiros contentes pois alguém presente contou que os Macacos
partiram certeiros para campos opostos conforme notícia.
O que sonha Zé Sereno ?
O que pensa Balão ?
O que prega Luís Pedro ?
Talvez numa fazenda, talvez numa paz longíqua, talvez manter-se guerreiro.
Talvez vingativos, em dívidas de sangue, em raivas históricas
de injustiças infindas.
Talvez numa mulher daquelas brejeiras
com a coragem de Maria.
Com a vontade de Dadá, com a presteza de Nenê, com a garra de Moça
E o ímpeto de Inacinha.
Volta-Seca, tu te alembras daquela fazenda
de casa branquinha ?
Casa branca, casa branquinha...
Certamente, houve festa pela noite embriagante até o raiar da triste madrugada
Quando tiros tramados em trilhas de cerco emboscaram em xeque
o bando dormente
Pássaros voaram, as árvores gemeram, a terra sentiu,
e os gritos fremiram.
A noite entrega ao dia, corpos mutilados deixados de lado, quengos - vazios.
Cabeças contadas mostradas ao povo, servindo de novo de ubi lex, ibi poena.
(onde há lei, há castigo).
Cangaceiros sem jazigos espalhados pelos cantos esperando por um canto
uma reza, um perdão ? Com seus olhos esbugalhados, sabendo do frio corte,
distantes do corpo.
Hoje uma história contada com a certeza do nada
Apesar de fotos e contos.
O lugar existe, a versão existe, mas os pássaros não são mais os mesmos,
as árvores talvez sejam, as pedras certamente, e até mesmo alguns viventes.
Onde andas Lampião ?
Onde estás Maria Bonita ?
Ainda sois cangaceiros ?
Ainda sois cangaceiros ?
Se tu és Lampião !
Se tu és tão bonita !
Se tu és tão bonita...
Onde andas Lampião e se por onde andas tens ainda o teu chapéu de Napoleão ?
Ainda costuras moedas em tuas armas enfeitadas como cavalhadas ibéricas ?
Ainda tens Maria Bonita em teu cortejo sacolejando teus sonhos mais íntimos ?
Que bando te acom anha ? Que sonhos te acompanham, velho guerreiro ?
Deixastes rastros de história, tu que eras mestre nos rastros da enganação.
Deixastes restos de memória, tu que vivestes tempos de solidão.
Onde andas Lampião com teu bando de cabras da peste ?
Infernizando novos mundos, novas regras, novos mestres ?
Mandando teus capangas seduzirem mulheres casadas ?
Visitando fazendeiros carentes de segurança ?
Convocando coiteiros para zelar tua estadia ?
Ou estás, aposentado, comendo em algum céu rodelas de melancia ?
Ou estás parvo, tristonho, pecador, na porta do inferno em triste melancolia ?
Ou simplesmente te encontras
enterrado no solo de Sergipe, onde dormistes a última vez ?
Os pássaros - que -não - cantam bem provavelmente não te comeram
Deixaram o privilégio para a terra seca onde pisastes em demasia
Onde riscastes caminhos que iam mas não vinham com tuas alpercatas
de couro, de ironia.
Por aqui, ninguém chora tua ausência, antes investiga tua ousadia
Tuas estratégias de sub-grupos, tua raiva, tuas invasões, tua vaidade
Destempero, riqueza, até mesmo
tua masculina fisionomia.
Não acordastes Lampião para acordar Maria Bonita
Hoje dormes inquieto
E teu povo medroso enfrenta
Outros bandos centrais.
Tu e teus cangaceiros eram apenas marginais.
O rio São Francisco te viu passar.
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