Bio-bibliografia Ensaio e crítica: |
Poeta nômade à procura de si mesmo Per Johns Poemas reunidos, de Marco Lucchesi. Editora Record, 431 páginas. R$ 38 idéia de uma reunião de poemas, seguida de "fortuna crítica", associa-se inevitavelmente à idéia de um balanço de obra (e vida). Há de causar uma certa estranheza em quem, como Marco Lucchesi, está, a rigor, apenas no início de sua trajetória. Para um balanço é cedo, assim como seria lamentável augurar-lhe o fim, embora o já escrito se apresente - para o leitor, não para o autor - com o peso de uma maturidade inegável. Os caminhos do autor são para ele mesmo insondáveis. O tempo e a visão panorâmica, ambos implacáveis, costumam reservar-lhe surpresas impossíveis de prever. Já o compromisso do leitor, munido daquela "suspensão da descrença" de que falava Coleridge, é só com o esforço de ler o livro. E com certeza, este não será em vão, reservando-lhe, no mínimo, a visão de um horizonte raro, nascido da coragem de quem não se furtou à exigência kierkegaardiana de ser único. Não por acaso, o ad se ipsum de Kierkegaard transforma-se em Lucchesi num A se stesso, título de um poema que, segundo o autor, remonta à primeira juventude, mas já contém o fundamento de sua singularidade. E é esta singularidade que acaba justificando uma reunião que, vista pela rama, poderia parecer insólita. Nela incluíram-se não só os poemas próprios, éditos e inéditos, algumas prosas do memorial do viajante e traduções escolhidas, bem como dois livros escritos diretamente em italiano. Um conjunto díspare que, não obstante, acaba revelando uma surpreendente unidade, ao redundar em livro que se diria "escrito por dentro e por fora", nas palavras de S. Boaventura. Vale dizer, por dentro, na medida em que não perde de vista o ser único que o autor é, e por fora, ao interligá-lo com coisas e lugares que ele procura de maneira incansável, quase obsessiva, movido por uma misteriosa bússola interior. É como se coisas e lugares fossem apenas o (pre)texto de sua própria jornada interior, numa metaviagem da viagem em que "as ilhas se dissipam/ e os mares/ se entrelaçam" diante de um horizonte que foge sempre. Esta homogeneidade de partes aparentemente heterogêneas radica na natureza de seu fazer poético, que se esgalha a partir da impalpabilidade desse horizonte que foge, mas não flutua ao sabor do acaso; reporta-se à idiossincrasia de um viajante bilíngüe e poliglota, de alguém à procura de sua própria sombra: "Na funda transparência desses mares,/ na grave inquietação, junto ao abismo,/ procuras sempre, e em todos os lugares,/ a sombra de teu próprio nomadismo". Assim, das raízes herdadas avança no rumo de destinações longínquas e misteriosas, seja em Damasco, seja na velha Bizâncio, seja pendurado no deserto como num oásis fragílimo. E nesse sentido, se o horizonte lhe foge sempre, fica dele, não obstante e paradoxalmente, a concretude de uma acurada sensibilidade para a fixação de instantâneos, mercê do que alguém chamou de "olho do poeta", ou seja, o dom de ver e captar o significativo e o inusitado de cada momento, a exemplo deste: "uma/ andorinha/ pousa/ ao fim/ da tarde/ junto/ ao mar/ da Galiléia/ e assim/ mal se/ discerne/ do tempo/ a eternidade". Esse dom, aliás, cimenta a unidade do livro como um todo, perpassando com sua asa de singularidade os poemas próprios, as prosas de memórias e a escolha dos poemas traduzidos, em que se fundem com os dele certos momentos congeniais, como estes do russo Vielimir Khliébnikov: "Dostoievismo de nuvem fugaz!/ Pushkínotas de um lento meio-dia!". É o que dá consistência ao que, de outro modo, seria vago. O horizonte não se fecha mas deixa atrás de si vestígios concretos, lapidares, breves e concisos, numa contenção expressional que abriga mundos em cada pequeno filamento de poema, e atinge o clímax nos poemas italianos. Ali se encontram pequenas jóias que valem por mil palavras. Como esta: "Ripiove sul deserto/ il lume dei ricordi", na melhor tradição de um Ungaretti. E desemboca quiçá no poema nodal que se chama "Dentro me" (em "Lucca dentro"). Por mais que deambule, o viajante está imantado em suas raízes mais fundas, naquela presentíssima Lucca dentro dele, feita, não de pedra e sangue alheio (ou indiferente), mas de seu próprio sangue-rio de gerações. É como alguém que fosse recolhendo vestígios do que outros lhe deixaram pelo caminho. Caberia mencionar ainda a naturalidade com que a poesia flui na prosa ou vice-versa. Em verdade, ao contrário de muitos de seus pares, Lucchesi não se intimida diante do desafio de transpor o (pseudo) abismo que haveria entre os gêneros. Seu gênero é um gênero plural e aberto que não se fecha em nenhum gueto, na melhor cadência de uma fiction liberada de suas amarras (ainda uma lição de Kierkegaard). E pois, serve-se de ritmos que têm surpreendente leveza e adaptabilidade, nos melhores momentos ritmos curtos e descontínuos, desvelando, em súbitas fulgurações, esses admiráveis instantâneos que funcionam como ponte entre espaços e tempos díspares. A rigor, fica-se com a impressão de que se trata de um ritmo só, talvez mercê do milagre, não de uma conjunção de palavras intercambiáveis, mas de um amálgama, indecifrável em seus componentes, em que "tem rosto a palavra". E assim, "na sombra dos vivos/ no sonho dos mortos", Lucchesi nos vai conduzindo numa viagem surpreendente aos limiares de culturas e línguas diversas, abolindo fronteiras de mundos e mundividências. É o seu um cosmopolitismo que se irradia sem perder de vista a praia de onde veio, servindo de uma erudição que espanta num espírito andarilho. Aqui não se trata da opção entre Narciso e Goldmundo, personagens de Hesse, entre um que sabe e outro que vive, mas de um Narciso que traz em si um Goldmund. É possível que a erudição e o poliglotismo - e os poemas italianos - numa primeira visada, atemorizem o leitor habituado à mesmice que não exige esforço, destes tempos de vacas literariamente magras. Não obstante, vale insistir que o esforço de lê-lo compensa. A erudição de Marco Lucchesi esconde-se muito bem de qualquer conotação maçante e penosa, mas mostra-se ao revés no que tem de menos evidente e mais eficaz. É que ela jamais perde de vista o chão da realidade, que qualquer leitor pode identificar, longe do hermetismo universitário de que Lucchesi é filho, mas não seguidor. Salva-o a janela aberta de seu horizonte de viajante e o seguro instinto poético. PER JOHNS é escritor |
In O Globo,
07.05.2001 |
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