Elziário Pinto


O Festim de Baltasar

Mané... Teckel... Pharés...
I "Queimai perfumes, escravas! Trazei-nos sândalo e flores! Vinho! do vinho os vap!res Levem presságios cruéis! Por Baal! Senhores e donas, Não morra o prazer da festa! Por Baal! Por Baal! soe a orquestra, Tangei, tangei, menestréis!" As luzes tremem nas salas, Treme o ouro e a pedraria; Das ânforas transborda a orgia Como as espumas do mar: — "Por Baal! Senhores e donas, Repete a nobre assembléia, Ao grande rei da Caldéia! Ao grande rei Baltasar!" Rompe a orquestra — e as concubinas, Com os seios nus, palpitantes, Entoam febris descanses, Lasciva, ideal canção; E em volta ao seu trono de ouro Nabonid, rei poderoso, Sente a alma a nadar no gozo, Em que se afoga a razão. E ferve, referve a orgia Ao som da orquestra estridentes E a lua toca o ocidente, Sobre a cidade imortal: Talvez mande a peregrina, Do monte Efraim pendida, Um raio por despedida Do Cedron sobre o cristal. II Manda, sim, sobre ruínas Que aí só resta um montão Mirando a gentil cativa, Dileta filha de Abraão: — "Ai terra de Deus querida! Ai terra da Promissão! "Terra, terra bem-fadada, Outrora — esposa de Arão, Hoje ruínas dispersas, Hoje o luto e a escravidão; — Ai terra de Deus querida! Ai terra da Promissão! "Teus filhos gemem distante, Jamais aqui voltarão... Murchai, gardênias do prado! Chorai, divino Jordão: — Ai terra de Deus querida! Ai terra da Promissão! "Onde as endechas saudosas Dos cantores de Sião? Aves do céu, vossos carmes Não solteis mais aqui, não! — Ai terra de Deus querida! Ai terra da Promissão! "Lírio pendido no vale Varreu-te acaso o tufão? Nem uma gota de orvalho! Isaac! Davi! Salomão! — Ai terra de Deus querida! Ai terra da Promissão!" E pela encosta do monte A tristezinha lá vai, Mandando um último pranto, Um doce, sentido ai, De um lado à imersa Sodoma, Do outro ao monte Sinai. III E cresce, recresce a orgia Nos salões de Baltasar, Ondas de pura harmonia, Ânsias de puro gozar, — Entanto a cidade dorme Envolta no manto enorme Da noite — sono fatal! E aquele peito gigante Devora sede arquejante De vícios, — sede infernal! Nas salas grato ruído, Luzes, perfumes e amor; Lá fora estranho rugido, Surdo — ao longe — e ameaçador; No horizonte um fumo denso Se eleva, bem como o incenso Nas salas e a embriaguez... Que importa ao rei o horizonte, Se as flores ornam-lhe a fronte, Se o âmbar corre-lhe aos pés?! "Ao rei! ao rei poderoso! Ao reino que não tem fim! Como o Eufrates caudaloso Corra a onda do festim!" — "Perdão: as taças, senhores, Não podem, tão sem lavores, À festa de um rei convir; Temos os vasos sagrados, São soberbos, cinzelados, Do ouro fino de Ofir. "Trazei-mos", já vacilante, Diz o rei: "Viva o Senhor!" — E ruge o vento distante, Como um gemido de dor. Entram luzidos criados Trazendo os vasos sagrados Do templo de Salomão... — E ruge o vento mais forte, Lançando vascas de morte Pelos umbrais do salão. "Transborde o néctar, amigos! Eis os vasos de Jeová! Nesses lavores antigos. Vê-se a cativa Judá." — E cresce o estranho rugido, Surdo, rouco, indefinido... "São os soluços do Irã!" E ruge, ruge mais perto... "São os ventos do deserto Sobre as areias de Omã!" Nas caçoulas fumegantes, Arde o mirto e o aloés, Ao som das notas vibrantes Sobe, sobe a embriaguez. — "Por Baal! Por Baal! Pelos Medos! Quebrem-se as harpas nos dedos, Trema o teto do salão!" Horror! ao tinir das taças, Núncio de eternas desgraças, Brame na sala um tufão. "Depressa, luzes, depressa..." Diz o rei: "longe o terror! Mas não, e o vaso arremessa, Recua trêmulo... horror! — É que, em meio à noite brusca, Mão, que de brilhos ofusca, Toda a sala iluminou; Cometa, a correr ardente, Estranha cifra candente, Pelas paredes traçou! IV "Meu colar de pedrarias Àquele que decifrar Venham magos e adivinhos, Depressa, Beltisasar. Ele, o mais sábio de todos, Pode o mistério explicar!" E dorme a cidade lassa Dos vícios na prostração, E cresce, cresce o rugido Qual ressonar de um vulcão: Ou é tremenda borrasca, Ou é povo em multidão. Entre os famosos convivas Mais um conviva aparece, As sandálias do proscrito Traz — quem é que o não conhece Diante do rei se inclina, Do rei, que ao vê-lo estremece. "Benvindo sejas, cativo, Daniel Beltisasar; Se sabes ler no impossível, Tens ali — podes falar: Terás um manto de púrpura, Terás meu régio colar." De novo ante o rei se inclina A cabeça do ancião, Depois, elevando a fronte Altiva, e estendendo a mão, Busca achar na ignota cifra A divina inspiração. Nem do Tibre o velho roble! Nem os cedros do ocidente A fronte mais alto elevam Mais nobre, mais imponente! O gênio é como as estrelas, Beija os pés do Onipotente. "Rei! escuta a voz do Eterno, Que por meus lábios te fala: O crime mais execrando, O teu reinado assinala: Vê, revê tua sentença Escrita em letras de opala. "Não ouves bramir confuso Como o arfar da tempestade? São os Persas que se arrojam Sobre os muros da cidade: Perdeu-te a lascívia impura, Rei! perdeu-te a impiedade. "Profanastes os vasos santos Nas torpezas de um festim, Teus dias foram contados Como os da bela Seboim! Agora o brinde, senhores, — Ao reino que não tem fim!" V Gesto grave, altivo, acerbo, Assim fala o escravo hebreu, Soletrando o ardente verbo, Que mão de raio escreveu: E depois — braços pendidos, Olhos de chama incendidos, Verberando a maldição, Deixa a sala, onde se espalha, Como trevosa mortalha, O terror na escuridão. E quando o raio primeiro Do sol, singrando o horizonte, Rompe o denso nevoeiro Sobre o cabeço do monte, Em vez da cidade altiva, Vê — desgrenhada cativa, A dissoluta Babel, E além dos muros colossos, Daquele povo os destroços E um homem só — Daniel!

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