Silvino Pirauá de Lima
História de Crispim e Raimundo
						O caso que vou contar
						No sertão aconteceu;
						É a história de um conflito
						Que entre dois homens se deu;
						Um foi preso e processado,
						O outro na luta morreu.
						O primeiro se chamava 
						Crispim da Cunha Dourado,
						Tinha muitos bons costumes
						Era homem ponderado;
						Como bom pai de família
						Era então considerado.
						O segundo se chamava
						Raimundo Dias Valente,
						Era homem viciado,
						Cachaceiro e imprudente;
						Não respeitava ninguém,
						Tinha fama de insolente.
						Vindo Crispim do roçado
						Encontrou casualmente
						O Raimundo que andava
						A procura de aguardente;
						Já um pouco pre-amar
						Intimando de valente.
						Chegaram em uma venda,
						Raimundo mandou botar
						Dessa vez meia garrafa,
						Mandou Crispim segurar
						No copo e beber primeiro
						Com a condição de virar.
						Crispim lhe disse: - Raimundo,
						Tal ataque não me faça;
						Para eu virar este copo
						Devo encarar a desgraça:
						O homem alcoolizado
						A qualquer perigo abraça.
						Raimundo disse: - Crispim,
						Pegou no copo virou!
						Bebe por bem ou por mal
						Visto que nele pegou,
						Se não já lhe mostrarei
						No punhal o quanto sou!
						Crispim lhe disse: - Raimundo,
						Eu não bebo aguardente;
						Para virar este copo
						Caio logo de repente;
						Mas para satisfazê-lo
						Bebo um golpinho somente.
						Raimundo foi a Crispim
						Pegou-o pela cintura;
						Disse: ou você vira o copo
						Ou eu dou-lhe a sepultura;
						Ferida de meu punhal
						Não tem remédio nem cura.
						Vendo Crispim que morria
						No punhal do tal Raimundo, 
						Com a foice que trazia
						Lhe deu um golpe profundo
						Que ele em poucos minutos
						Já estava no outro mundo.
						Vinha chegando um inspetor
						Achou Raimundo no chão,
						Prendeu logo ao Crispim
						Sem lhe prestar atenção,
						Dizendo: eu não admito
						Crimes no meu quarteirão.
						Seguiu  o tal inspetor
						Em busca do delegado,
						Chegando na casa deste
						Com Crispim preso e amarrado,
						De chapéu na mão falou-lhe
						Todo entusiasmado:
						Ilustríssimo senhor,
						Honradíssimo delegado,
						Aqui está um criminoso
						Que por mim foi capturado;
						Matou um pai de família
						Homem bem considerado.
						Logo na cadeia pública
						Foi Crispim encarcerado;
						Depuseram as testemunhas,
						Teve de ser processado,
						Sem ser em nada atendido,
						Foi logo pronunciado.
						A pronúncia sustentando
						O libelo oferecido,
						Ficou fechado o processo
						Sem Crispim ser atendido,
						Só no Tribunal do Júri,
						Podia ser decidido.
						Havendo sessão do Júri,
						Para Crispim ser julgado,
						Pela forma do direito
						Foi o Conselho formado;
						O Juiz então perguntou-lhe
						Se já tinha advogado.
						Respondeu Crispim que tinha,
						Visto lhe ser perguntado;
						O Juiz disse p’ra ele:
						- Diga lá o seu estado.
						E se sabe por qual motivo
						Vai agora ser julgado.
						Tudo Crispim respondeu,
						Com toda serenidade;
						Falando com energia
						Sem se arredar da Verdade;
						Assim mostrando que tinha
						Alguma dignidade.
						Perguntou-lhe o Juiz se houve
						Um motivo imperioso
						Para ele matar Raimundo
						Ficando assim criminoso,
						Por ter cometido um crime
						Tão medonho e horroroso?
						- Que o matei, falo a verdade,
						Não posso contradizer:
						Fui agredido por ele
						Sem poder me defender;
						Em minha defesa própria,
						Matei para não morrer!...
						Nas declarações do réu,
						O Juiz não achou excesso;
						Ficou o Júri sabendo
						Que ele era réu confesso;
						O escrivão deu começo
						A leitura do processo.
						Depois da leitura finda
						O tal processo seguiu
						Para as mãos do Promotor;
						Que sobre a mesa o abriu;
						Tendo pedido a palavra,
						A acusação proferiu:
						- Senhores, tenho nas mãos
						Um processo volumoso;
						Vede o que diz o libelo
						Contra este criminoso;
						É um assassino confesso
						Autor de um crime horroroso.
						Senhores, o réu presente
						Dominado de paixão,
						Matou um pai de família,
						Sem lhe assistir a razão:
						No processo está provado
						A sua mal intenção.
						O réu matou a Raimundo
						Por sua livre vontade,
						Deixando a família dele
						Na maior necessidade;
						A mulher na viuvez
						E os filhinhos na orfandade.
						O réu assim procedendo
						Mostrou ser muito malvado;
						Do processo se colige
						Que foi de caso pensado,
						Que ele quis cometer
						Um crime tão reprovado.
						O Réu cometeu um crime
						Em tudo repugnante,
						Qualificado na Lei
						Como delito agravante;
						Em seu favor não existe
						Nem um só atenuante.
						A viúva com os filhos
						Envoltos em negro véu
						Estão sem ter um consolo
						Com os olhos fitos no céu,
						Pedindo justiça a Deus
						E a condenação do Réu
						Chorando todos lamentam
						O ser amado perdido,
						Os filhinhos por seu pai
						A mulher por seu marido;
						Estão pedindo justiça
						Para o crime cometido.
						Senhores, o Réu presente
						É um monstro da natureza;
						Matou o seu semelhante
						Somente por malvadeza;
						Quem mata sem ter razão, 
						Nem devia ter defesa.
						Senhores, um crime tal,
						Só o pratica um incréu,
						Que não respeita a justiça
						E nem deseja ir ao Céu;
						Em nome da Lei eu peço
						A condenação do Réu.
						Como pede no libelo
						No artigo destinado;
						Cento e noventa e dois
						Gráu máximo confirmado
						Faça o conselho justiça
						A este Réu acusado.
						Terminada a acusação
						Por parte do Promotor,
						O processo foi entregue
						Ao nobre defensor
						Para fazer a defesa
						Do Réu, com todo valor.
						Então o advogado
						Se levantou da cadeira,
						Principiou a defesa
						Por uma boa maneira;
						Descrevendo claramente
						A história verdadeira.
						Meus senhores, eu lamento
						Não ser bom advogado,
						Para defender o Réu
						E ter um bom resultado;
						Fazendo ver as razões
						Que tem o meu Querelado.
						Com toda a minha franqueza,
						Atenção a todos peço,
						Para mostrar a verdade,
						É em que mais interesso
						Contra a ilegalidade
						Que vejo neste processo.
						O primeiro ponto é,
						Sobre a causa do delito;
						Não foi de caso pensado
						Que se deu o tal conflito;
						Foi um fato casual
						No qual eu muito medito.
						Contra meu constituinte
						A justiça se tornou
						Muito severa de mais;
						Pela culpa que formou,
						O que era mais necessário
						Esquecido então ficou.
						Vindo Crispim do roçado,
						Sucedeu casualmente
						Encontrar-se com Raimundo
						Que vinha ligeiramente,
						Nessa mesma ocasião
						A procurar aguardente.
						Como eram conhecidos,
						Seguiram juntos então,
						Crispim um mau pensamento
						Não tinha no coração;
						Raimundo, provavelmente,
						Já vinha com má tenção.
						Chegaram em uma venda,
						Raimundo mandou botar
						Dessa vez meia garrafa
						E logo sem demorar
						Deu a Crispim p’ra beber
						Com a condição de virar.
						Crispim lhe disse: - Raimundo,
						Eu não costumo beber;
						Para virar este copo
						Saiba que não pode ser;
						Apenas bebo um pouquinho
						Para lhe satisfazer.
						Raimundo lhe respondeu
						De um modo desleal;
						- Camarada o nosso encontro
						Hoje tem que acabar mal:
						Ou você bebe ou morre
						Na ponta de meu punhal.
						E tendo o punhal em punho
						Pegou Crispim na cintura,
						Este com medo e antevendo
						Abrir-se-lhe a sepultura,
						Deu um golpe em Raimundo,
						Quase em estado de loucura.
						Mata o seu semelhante
						É um crime horroroso,
						Mas sendo em defesa própria
						Não se torna criminoso;
						Se quem mata tem virtude
						Crispim é um virtuoso.
						A lei acusa a quem mata
						Se matar por malvadeza;
						Da mesma forma defende
						Quem mata em própria defesa;
						Deve defender Crispim
						Que matou sem ter certeza.
						Existindo no libelo
						Circunstâncias agravantes,
						Contra o meu querelado
						As provas não são bastantes,
						E eu para destrui-las
						Sobram-me os atenuantes.
						Não consta desse processo
						Haver premeditação;
						Ou emboscada que fosse
						Em lugar de solidão;
						De perpetração do crime
						Não houve tal intenção.
						Disse o nobre Promotor
						Que este infeliz querelado,
						Por ser um homem perverso,
						Matou de caso pensado;
						Peço a ele que me mostre
						Aonde isto está provado.
						A gravidade do crime
						Existe na intenção,
						Certeza de praticá-lo
						Com furiosa paixão;
						Havendo caso pensado
						Para ter execução.
						No ilustrado Conselho
						Existe a competência
						De absolver a Crispim
						Com justiça e consciência;
						Quando a verdade triunfa
						É dispensada ciência/
						Confiado no Conselho
						Pela forma do direito,
						Terá o meu querelado
						Um justo e feliz conceito;
						Tendo a absolvição
						Ficando assim satisfeito.
						O Conselho de sentença
						Vendo que toda a razão
						‘Stava ao lado de Crispim,
						Com a devida aptidão,
						Em face da mesma lei,
						Lhe deu a absolvição.
						Levantou o juiz e disse
						Com sua austera presença:
						Em vista da decisão
						Do Conselho de sentença
						Dou ao réu a liberdade
						Que a Justiça lhe dispensa.
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