Jornal do Conto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

P.J. Ribeiro


 

O leiteiro de Drogary Mamute

 

Ainda madrugava em Drogary Mamute.

Mas, por trás das árvores que rodeavam a cidade, o ar era quente, como eram quentes as paredes das casas, os pedaços de pau, as pessoas de Drogary.

Estas eram facilmente reconhecíveis em qualquer lugar: havia uma incomum robustez nos homens uma indisfarçável avidez de homens nas mulheres.

Os que eram coluna do meio tinham as duas qualidades. Algumas, em excesso.

Sandra, acordada, pensava em Roberto, que dormia ao seu lado feito uma pedra.

Ela, desde pequena, fora acostumada a nunca saber esperar.

— Roberto que se cuidasse, dizia sempre.

Com o casamento, ele mal tinha tempo de sair de casa com os amigos ou simplesmente tomar urna birita no bar da esquina, pois ela logo vinha atrás, fazendo o maior escândalo, pra todos ouvirem: “Homem tem que ficar é perto da mulher. Mulher não é escrava. Roberto, se você quiser é melhor acabar com tudo.”

— Acorde, bem, tá na hora.

— O quê? Que que foi?

— Tá na hora da gente fazer neném.

— Hein?! Tô sonhando...

— Que nada, bem. Eu é que tô aqui em cima.

Arrosca.

Roberto então sentia aquele forte cheiro de alfazema na boca, o mesmo cheiro que o vinha perseguindo há tempos; sentia também um peso nas pernas e a proximidade de duas bolas de chumbo apertando seu peito sem trégua. E resolveu que o que seria melhor era se entregar de vez. E foi o que fez. Logo depois, sentindo muita falta de ar e suando muito, dirigiu-se ao banheiro pra fazer a barba.

Sandra demorou-se um pouco mais na cama: suspirava e abria os braços sem parar.
 

Ela sabia que só às 8 da noite teria outra oportunidade e que desta vez encontraria um Roberto pregado de serviço, mas confiava na sua habilidade.

Levantou-se e foi pra banheira: o sabonete escorria em seu corpo, docilmente, fazendo uma espuma cheirosa e ali todos se misturavam. O sabonete, o corpo, a águia fria.

E se deitava de tal forma que sentia seus pensamentos aos poucos comendo os miolos e os cabelos de sua cabeça. E uma dormência nos braços e nas pernas.

Ela era uma mulher de uns quarenta e poucos anos alisando um corpo de vinte.

— Você vem cedo hoje?

— Não sei. Lá na repartição o chefe quer qu’eu faça uns mapas. Tô apertado.

— Vê se sai cedo. A gente assim pode dar uma saidinha.

— Saidinha? Mas você não gosta de ir a lugar nenhum...

— Pra variar, bem. Depois, a gente vem com mais força, né?

Roberto, uns anos mais velho que ela, já não gostava de mais nada. Os muitos cabelos brancos assustavam-no. Ele só via a hora de sair de casa e ir pro trabalho. Pra não morrer mais depressa.

— Tiau, bem. Vê se vem animado, viu?

A árvore que ficava em frente à sua casa balançava os galhos e, apesar do vento, o ar quente penetrava até nos ossos. Sandra, na janela, se lembrava de uma outra cidade na qual ambos moraram antes e jurava que ainda ouvia os passos, os mesmos passos dos homens de paletó e gravata na calçada. Aqueles homens tinham muitas preocupações, como o fim do mês, o aluguel e coisas desse tipo. Quando moraram em Sincerity, ah, ela se lembra bem, não era raro Roberto dar uma brochada. E que ele estava virando, sem saber, um homem daqueles. Por isso, ela fez com que mudassem de lá. Os ares de Drogary eram conhecidos como os mais benéficos de todo o Oeste: lá, na inverno mais duro, fazia 40 graus à sombra.

— “A mulher tem sempre que pensar que o seu homem está a um passo da traição”, esse foi o primeiro grande ditado que ela aprendeu ao chegar a Drogary.

Mais tarde ela ficou sabendo de outras, como:

“Há muita mulher pra pouco homem. E muito homem tam¬bém”.

“Quem quiser um homem pra toda vida que faça a vida com o seu homem”.

“Por trás de uma grande amante há sempre um grande homem”.

Com a sua calcinha preta, famosa desde os tempos de colégio, Sandra remexia as nádegas fartas, de um lado para o outro, pensando: “Quero morrer com esta calcinha. Ela me dá uma sorte...”
Ao sair da janela, a campainha da porta tocou.

Com a camisola transparente e sem sutiã, ela curiosamente abriu a porta. De repente viu surgir diante de si um homem de estatura mediana, com um uniforme branco e uma garrafa de leite na mão: foi aí que ela sentiu a robustez e o desejo desenfreada dos homens de Drogary Mamute. E disse:

— Pode deixar o leite do lado de fora da porta.

As mãos do leiteiro, seguindo seus olhos, empurraram com violência a porta, jogando Sandra no chão. O leiteiro entrou pra dentro de casa como que hipnotizado.

— Que é isso?, disse chorando.

— Eu só vi uns peito muito bonito, dona, e peito bonito eu não posso ver.

— Eu sou casada, viu? Que quer de mim?

— Eu quero tudo, dona. Eu quero tudo qu’eu possa ter.

— Você me machucou. Sabia?

— Deixa eu ver.

— Como é que você entrou aqui desse jeito?

— Onde é que você machucou?

— Bem aqui no joelho. Tá vendo o que você fez?

— O que posso fazer? Por favor, deixe ajudar.

— Você é muito atrevido. Mas, pensando bem, tem uma coisa qu’eu estou gostando em você. A coragem. Você tem muita coragem.

— Não é bem coragem, dona. O negócio é qu’eu não posso ver certas coisas: quando vejo, ninguém me segura.

— Agora, qu’eu estou mais calma, vou te fazer uma pergunta: que tal está me achando? Atraente?

— Nossa mãe! Você é um troço doido. Não vê que eu estou tremendo?

— Calma, homem. Você é muito apavorado...

— Apavorado? Qualquer um ficaria assim. A dona, desse jeito... Você não tem muito cacho, não?

— Olhe, quando mocinha tive as minha aventuras. Mas só mesmo depois de casada é que virei papinha. Papinha de Roberto.

— Quer saber a verdade? Eu nunca vi antes uma mulher assim. Tão jóia.

— Você está é exagerado. Vai dizer que nunca deu uma numa melhor do que eu?

— Melhor? Nem sonhando. Mulher, você me desculpa?

— Garoto, você deu sorte. Por mim você já está desculpado: mas olhe lá, heim? Eu só desculpo uma vez.

— Você não existe. Agora, vamos, né?

— Eu não disse que você era tão apavorado? Primeiro eu quero dar uma olhadinha nele. Calma.

— Ele está doido com você. Mas só tem um defeito: quando cisma em ir num lugar é muito teimoso, cabeça-dura.

— Cabeça dura, hein? Danado.

Eles agora estavam juntos. E os seus lábios se chegavam como os despenhadeiros se chegam aos rios, perto do coração da terra.
E todo o calor de Drogary não foi bastante para os separar, como as tempestades separam os amores mais tênues e os ventos não conseguem deter as doenças e os descaramentos e não deixam os homens verem mais longe.

O sangue que corria naqueles corpos era bastante forte para espantar qualquer possibilidade de fuga ou arrependimento:
 

TODOS EM DROGARY SE SENTIAM MAIS PERTO
DE ALGUMA COISA
 

E não conheciam, absolutamente, o medo.
 

 

 

 

 

19.07.2005