P.J. Ribeiro
O leiteiro de Drogary Mamute
Ainda madrugava em Drogary Mamute.
Mas, por trás das árvores que rodeavam
a cidade, o ar era quente, como eram quentes as paredes das casas,
os pedaços de pau, as pessoas de Drogary.
Estas eram facilmente reconhecíveis em
qualquer lugar: havia uma incomum robustez nos homens uma
indisfarçável avidez de homens nas mulheres.
Os que eram coluna do meio tinham as
duas qualidades. Algumas, em excesso.
Sandra, acordada, pensava em Roberto,
que dormia ao seu lado feito uma pedra.
Ela, desde pequena, fora acostumada a
nunca saber esperar.
— Roberto que se cuidasse, dizia
sempre.
Com o casamento, ele mal tinha tempo
de sair de casa com os amigos ou simplesmente tomar urna birita no
bar da esquina, pois ela logo vinha atrás, fazendo o maior
escândalo, pra todos ouvirem: “Homem tem que ficar é perto da
mulher. Mulher não é escrava. Roberto, se você quiser é melhor
acabar com tudo.”
— Acorde, bem, tá na hora.
— O quê? Que que foi?
— Tá na hora da gente fazer neném.
— Hein?! Tô sonhando...
— Que nada, bem. Eu é que tô aqui em
cima.
Arrosca.
Roberto então sentia aquele forte
cheiro de alfazema na boca, o mesmo cheiro que o vinha perseguindo
há tempos; sentia também um peso nas pernas e a proximidade de duas
bolas de chumbo apertando seu peito sem trégua. E resolveu que o que
seria melhor era se entregar de vez. E foi o que fez. Logo depois,
sentindo muita falta de ar e suando muito, dirigiu-se ao banheiro
pra fazer a barba.
Sandra demorou-se um pouco mais na
cama: suspirava e abria os braços sem parar.
Ela sabia que só às 8 da noite teria
outra oportunidade e que desta vez encontraria um Roberto pregado de
serviço, mas confiava na sua habilidade.
Levantou-se e foi pra banheira: o
sabonete escorria em seu corpo, docilmente, fazendo uma espuma
cheirosa e ali todos se misturavam. O sabonete, o corpo, a águia
fria.
E se deitava de tal forma que sentia
seus pensamentos aos poucos comendo os miolos e os cabelos de sua
cabeça. E uma dormência nos braços e nas pernas.
Ela era uma mulher de uns quarenta e
poucos anos alisando um corpo de vinte.
— Você vem cedo hoje?
— Não sei. Lá na repartição o chefe
quer qu’eu faça uns mapas. Tô apertado.
— Vê se sai cedo. A gente assim pode
dar uma saidinha.
— Saidinha? Mas você não gosta de ir a
lugar nenhum...
— Pra variar, bem. Depois, a gente vem
com mais força, né?
Roberto, uns anos mais velho que ela,
já não gostava de mais nada. Os muitos cabelos brancos
assustavam-no. Ele só via a hora de sair de casa e ir pro trabalho.
Pra não morrer mais depressa.
— Tiau, bem. Vê se vem animado, viu?
A árvore que ficava em frente à sua
casa balançava os galhos e, apesar do vento, o ar quente penetrava
até nos ossos. Sandra, na janela, se lembrava de uma outra cidade na
qual ambos moraram antes e jurava que ainda ouvia os passos, os
mesmos passos dos homens de paletó e gravata na calçada. Aqueles
homens tinham muitas preocupações, como o fim do mês, o aluguel e
coisas desse tipo. Quando moraram em Sincerity, ah, ela se lembra
bem, não era raro Roberto dar uma brochada. E que ele estava
virando, sem saber, um homem daqueles. Por isso, ela fez com que
mudassem de lá. Os ares de Drogary eram conhecidos como os mais
benéficos de todo o Oeste: lá, na inverno mais duro, fazia 40 graus
à sombra.
— “A mulher tem sempre que pensar que
o seu homem está a um passo da traição”, esse foi o primeiro grande
ditado que ela aprendeu ao chegar a Drogary.
Mais tarde ela ficou sabendo de
outras, como:
“Há muita mulher pra pouco homem. E
muito homem tam¬bém”.
“Quem quiser um homem pra toda vida
que faça a vida com o seu homem”.
“Por trás de uma grande amante há
sempre um grande homem”.
Com a sua calcinha preta, famosa desde
os tempos de colégio, Sandra remexia as nádegas fartas, de um lado
para o outro, pensando: “Quero morrer com esta calcinha. Ela me dá
uma sorte...”
Ao sair da janela, a campainha da porta tocou.
Com a camisola transparente e sem
sutiã, ela curiosamente abriu a porta. De repente viu surgir diante
de si um homem de estatura mediana, com um uniforme branco e uma
garrafa de leite na mão: foi aí que ela sentiu a robustez e o desejo
desenfreada dos homens de Drogary Mamute. E disse:
— Pode deixar o leite do lado de fora
da porta.
As mãos do leiteiro, seguindo seus
olhos, empurraram com violência a porta, jogando Sandra no chão. O
leiteiro entrou pra dentro de casa como que hipnotizado.
— Que é isso?, disse chorando.
— Eu só vi uns peito muito bonito,
dona, e peito bonito eu não posso ver.
— Eu sou casada, viu? Que quer de mim?
— Eu quero tudo, dona. Eu quero tudo
qu’eu possa ter.
— Você me machucou. Sabia?
— Deixa eu ver.
— Como é que você entrou aqui desse
jeito?
— Onde é que você machucou?
— Bem aqui no joelho. Tá vendo o que
você fez?
— O que posso fazer? Por favor, deixe
ajudar.
— Você é muito atrevido. Mas, pensando
bem, tem uma coisa qu’eu estou gostando em você. A coragem. Você tem
muita coragem.
— Não é bem coragem, dona. O negócio é
qu’eu não posso ver certas coisas: quando vejo, ninguém me segura.
— Agora, qu’eu estou mais calma, vou
te fazer uma pergunta: que tal está me achando? Atraente?
— Nossa mãe! Você é um troço doido.
Não vê que eu estou tremendo?
— Calma, homem. Você é muito
apavorado...
— Apavorado? Qualquer um ficaria
assim. A dona, desse jeito... Você não tem muito cacho, não?
— Olhe, quando mocinha tive as minha
aventuras. Mas só mesmo depois de casada é que virei papinha.
Papinha de Roberto.
— Quer saber a verdade? Eu nunca vi
antes uma mulher assim. Tão jóia.
— Você está é exagerado. Vai dizer que
nunca deu uma numa melhor do que eu?
— Melhor? Nem sonhando. Mulher, você
me desculpa?
— Garoto, você deu sorte. Por mim você
já está desculpado: mas olhe lá, heim? Eu só desculpo uma vez.
— Você não existe. Agora, vamos, né?
— Eu não disse que você era tão
apavorado? Primeiro eu quero dar uma olhadinha nele. Calma.
— Ele está doido com você. Mas só tem
um defeito: quando cisma em ir num lugar é muito teimoso,
cabeça-dura.
— Cabeça dura, hein? Danado.
Eles agora estavam juntos. E os seus
lábios se chegavam como os despenhadeiros se chegam aos rios, perto
do coração da terra.
E todo o calor de Drogary não foi bastante para os separar, como as
tempestades separam os amores mais tênues e os ventos não conseguem
deter as doenças e os descaramentos e não deixam os homens verem
mais longe.
O sangue que corria naqueles corpos
era bastante forte para espantar qualquer possibilidade de fuga ou
arrependimento:
TODOS EM DROGARY SE SENTIAM MAIS PERTO
DE ALGUMA COISA
E não conheciam, absolutamente, o
medo.
|