Pinto de Monteiro


Pinto de Monteiro Edifica Marco na Poesia

por Maria Alice Amorim
Pinto é um poeta superlativo. Astutíssima raposa, cobra das mais venenosas. O seu poder de criação e a velocidade de raciocínio às vezes faziam as palavras tropeçarem umas nas outras, não pelo verso quebrado, absolutamente, mas quase engolindo sílabas, dada a ligeireza dos versos despejados em turbilhão. Autor de versos contundentes, tudo em Pinto recende grandiosidade. "É um gênio da cantoria", atesta o fotógrafo Djair Freire, autor de filme Super-8 e ensaio fotográfico sobre o repentista. É o maior poeta popular de todo o Brasil, desde sempre", define, com entusiasmo, o marchand Giuseppe Baccaro, que conviveu com o poeta durante alguns anos. "Ele era único", garante o promotor de Justiça, Raimundo Antônio Marinho Patriota, filho de Louro do Pejeú. "Pinto é uma cacimba, é inesgotável", arremata o apologista Ésio Rafael.

Essa figura legendária, que atendia pelo nome de Severino Lourenço da Silva Pinto, correu muito trecho pelo Brasil afora e entregou-se à morte por absoluta falta de opção, numa noite de domingo, 28 de outubro de 1990, após viver mais de nove décadas, pelo menos, e deixar seu nome inscrito nos anais da fama, como cantador dotado de muita agilidade mental e muita ironia. Filho de um tropeiro com uma doméstica, Pinto experimentou muitas profissões, antes de se dedicar inteiramente à viola. A primeira foi de vaqueiro. Foi soldado de polícia, guarda de serviço contra a malária, auxiliar de enfermeiro, vendedor de cuscuz no Recife. "Depois larguei os cuscuz e ficava cantando na calçada do mercado de São José", declarara o próprio Pinto, certa vez.

Recordava-se, ainda, que, ao cantar como estreante, alguém o alertou: "Se você continuar, vai cantar de assombrar o mundo". E assombrou.

Numa ocasião, foi convidado a assistir a uma cantoria, em que um dos repentistas era Patativa, poeta ruim, cuja viola era toda enfeitada de fitas coloridas, Alguém pediu ao dono da casa que deixasse Pinto cantar. "Com a gente, não, não, só se for sozinho", defendeu-se a dupla. Pinto ficou em pé, no meio da sala, e disse: "Eu não sei como se ouve / cantor como Patativa / toda pronúncia é errada / toda rima é negativa / a viola só tem fita / e a cantiga é merda viva". A troca de "amabilidades" com qualquer que fosse o cantador era uma constante. Se o adversário era ruim, apertava o cerco. Se, por outra, era um do porte de Lourival Batista, a disputa fervia. Era implacável: "Ninguém edifica marco / nas margens do meu riacho / se edificar com as mãos / com os pés eu boto abaixo".

Destemido, lutou contra cangaceiros, quando era da polícia. Mas, não chegou a lutar contra Lampião, pois somente quando estava no Acre, no serviço contra a malária, é que o famoso sertanejo entrou no cangaço. Morou em muitas cidades da Amazônia, durante seis anos. Não agüentou a saudade das lapadas de aguardente, voltou ao Nordeste. Residiu longo tempo em Sertânia, cidade pemambucana próxima a Monteiro, Paraíba, onde nasceu. Por ter morado vários anos em Vitória de Santo Antão, também foi conhecido como Pinto de Vitória. Viajadíssimo, Pinto só não conheceu, do Brasil, o Rio Grande do Sul.

A Cascavel do Monteiro esguio, estatura mediana, decidido o falar, dado às variações de humor. Teve quatro mulheres. Nenhum filho, ao menos oficialmente. Aprendeu a ler e a escrever, já adulto, o que foi suficiente para aprimorar conhecimentos de história e geografia gerais, história antiga, história do Brasil. "Era um cara que lia, lia muito. Livros didáticos, de história, geografia. Era informado", assegura Raimundo Patriota. Escrevia cartas a amigos. Escrevia poemas, como Por Que Deixei de Cantar. Além desse trabalho, Baccaro conserva cerca de vinte cadernos manuscritos do poeta e diversas cartas. Basicamente, todo o material está sem catalogação. Dentre os pesquisadores, há um martelo alagoano, em que Pinto, com Elza Galdino, discorre sobre rios, acidentes geográficos e costumes de pesca nas Alagoas. Há versos sobre a fundação da Itália, demonstrando seguro conhecimento acerca da história daquele país. Há, ainda, versos sobre a viagem de D. Pedro II à Europa, quando Imperador do Brasil. Há As Quatro Américas do Sul, Vaquejadas e Belezas do Sertão. Versos sobre homens célebres da antigüidade, sobre gramática. Acerca desta, cantou: "Divide-se em quatro partes / é a etimologia / prosódia e a sintaxe / a dita ortografia / era desta forma que / Castro Nunes dividia".

O poeta era um assombro de agilidade e insolência. "Pinto foi um cantador sintético, monossilábico. Malcriado como sempre, acabava com o violeiro nas primeiras linhas", recorda Ésio Rafael, que conviveu com o repentista durante o período em que este morou em Sertânia.

Cantando em Caruaru, com Aristo José dos Santos, ouviu a estrofe que assim terminava: "moço comigo é na faca / velho comigo é no pau". Respondeu: "Mas eu sou como lacrau / que do lixo se aproxima / vivendo da umidade / se alimentando do clima / para ver se um besta assim / chega e bota o pé em cima". Num mourão malcriado, com Gato Velho, Pinto conseguiu sair-se da seguinte maneira:

Pinto — Eu vou pegar Gato Velho / pra dar no conhecimento

Gato Velho — Eu vou me montar em Pinto / pra fazer dele jumento

Pinto — Se essa praga em mim pega / você vai servir de jega / para o meu divertimento.

Repente

"A cantoria é uma manifestação muito criativa", define o pesquisador Roberto Benjamin. Cantar de improviso, exercício de criatividade, tornou-se uma tradição nordestina, e, no século passado, Francisco Romano Caluete (Romano da Mãe d'Água), Inácio da Catingueira, Silvino Pirauá de Lima, Ugolino Nunes da Costa, Bernardo Nogueira destacam-se. Quando Pinto começou a cantar, foram seus mestres Saturnino Mandu, Manuel Clementino do Angico Torto e José de Lima, segundo noticia o Dicionário bio-bibliográfico de repentistas e poetas de bancada, de Átila Almeida e José Alves Sobrinho. Conforme o próprio Pinto, a primeira cantoria foi com Mandu, de quem apanhou bastante. "Com Saturnino Mandu / eu não pude me sair / o velho meteu-me a peia / deu até o nó cair."

A segunda peleja, ainda conforme o poeta, é que foi com Manuel Clementino Leite, De Antônio Marinho, "bom baião, boa toada", diz: "comigo ele encontrou / tampa pro seu tabaqueiro". De José Catota, "esse quebrou uma perna / anda puxando dum pé". De Dimas Batista, "e bati como quem bate / em massa pra pão-de-ló". De José Batista Feitosa, "fiz ele subir sem roupa / num pé de mandacaru / comer farinha de pedra / com leite de cururu". Pinto atravessou décadas cantando, conheceu uma centena de repentistas, duelou com muitos deles, foi grande amigo do poeta e editor João Martins de Athayde. Sobre o cordelista Leandro Gomes de Barros declarou: "vi falar dele, é do meu tempo, mas não conheci". Desafiou grandes cantadores Lourival Batista, Dimas Batista, Pedro Amorim, Rogaciano Leite, Heleno Pinto (seu irmão), Antônio Marinho.

"Eu assisti Pinto no auge, com Louro. Várias vezes. Nunca consegui saber qual dos dois estava na frente. No mínimo, era um empate", relembra Raimundo Patriota. E acrescenta: "Seguir o estilo de Pinto era muito difícil. Era um estilo muito pessoal. Muitos tentaram, mas não conseguiram". A verdade é que o nome de Pinto tomou-se um marco no universo da poesia improvisada do Nordeste. Diz-se que foi o maior. Entretanto, se se compara Pinto com Antônio Marinho, ou com poetas do século passado, a favor do primeiro existem os registros fonográficos e audiovisuais de pesquisadores e repórteres".

"Antônio Marinho cantava muito e tocava muito bem. A gente pode resgatar a genialidade de Pinto. Há registro. Mas, a de Antônio Marinho, não", frisa Patriota, neto de Marinho.

Recorda, ainda, que Lourival Batista, cantador já aos 15 anos, posteriormente marido de Helena Marinho, filha de Antônio, debatendo-se com Pinto, escutou: "já apanhei de Marinho /porém só foi uma vez / aqui mesmo em Umburana / no ano de vinte e seis / mas agora eu dou no genro / desconto o que o sogro fez".

Ao ser perguntado sobre os maiores repentistas, Pinto não titubeou: "Foi o sogro e o genro". Com Job Patriota, foi mais direto: "Do meu tamanho mesmo, só Louro e Antônio Marinho. O resto é assim do seu tamanho". Quanto a Rogaciano Leite, considerado discípulo da Cascavel, Pinto coloca-o no rol dos grandes, chamando-o de "monstro". Ésio Rafael também relembra que "João Furiba cantou muito com Pinto, não tinha medo de apanhar". No Festival de Violeiros de Olinda, em 1984, Furiba — João Batista Bernardo — homenageou o mestre, presente ao acontecimento. "Seu verso hoje é açude / que abarrota a represa / rio que não perde a água / planta que possui beleza / gênio que desdobra o mundo / por conta da natureza".

Não se sabe, ao certo, com que idade Pinto morreu. Uns dizem que ele era de 1895, outros, de 1896. O próprio dizia que nasceu ora em 2 de novembro de 1896, ora em 21 de novembro de 1989. Afirma-se que morreu com mais de cem anos. "testemunhos dizem que era mais novo do que Antônio Marinho apenas dois anos", esclarece Raimundo Patriota. Conforme esse dado, Pinto teria morrido aos 101 anos, uma vez que Marinho é de 1887. já velhinho, carregava um pandeiro para acompanhá-lo nos improvisos, alegando que "o volume é mais pequeno / e o pacote é mais maneiro".

Para alegria dos admiradores, Pinto deixou sua voz registrada em dois LP’s — Pinto do Monteiro: Vida, Poesia e Verdade, produzido pela Fundação Joaquim Nabuco, e Pinto de Monteiro e Zé Pequeno: acelerando as asas do juízo, selo independente. Há, ainda, sua imagem e voz em inúmeras fitas de vídeo, Super-8, cassete, cinema. Deve haver, também, registro de muitos dos festivais dos quais participou, no Recife, são Paulo, João Pessoa, Fortaleza, Caruaru, Limoeiro, Petrolina, Campina Grande, entre outros.

No I Congresso de Cantadores do Recife, organizado por Rogaciano Leite, em 1948, no teatro de Santa Isabel Pinto do Monteiro foi o grande vencedor, juntamente com o piauiense Domingos Martins Fonseca. Em dezembro de 1970, foi ao Festival de Cinema de Guarujá, com Lourival Batista, Job Patriota, Pedro Amorim, José Nunes Filho.

Teve participação em filmes, entre eles, Nordeste: Cordel, Repente, Canção, dirigido por Tânia Quaresma.

De 1988 até a morte, Pinto permaneceu em Monteiro, cego, paralítico, porém totalmente lúcido. Seu derradeiro sonho era morrer em Pernambuco, próximo dos companheiros de viola. Não o realizou, mas garantiu que ficaria para semente, como, de fato, ficou, brotando na memória do improviso. "Quando os velhos morrerem / os que ficam cantam bem / Duda passou de Marinho / por mim não passa ninguém / eu vou ficar pra semente / pra século sem fim amém".


* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *