Pinto de Monteiro


Gostava de Provocação

por Inaldo Sampaio

Não bastasse o fato de ter descoberto um dos maiores talentos poéticos e jornalísticos do Brasil, que foi Rogaciano Leite, Severino Lourenço da Silva Pinto (Pinto do Monteiro) inscreveu seu nome na galeria dos maiores contadores de viola do Nordeste, em todos os tempos, graças à rapidez do seu improviso e à malícia das respostas com que desafiava os seus parceiros. Esse Pinto, que foi soldado de polícia no tempo de rapaz, que nasceu e morreu pobre, na Paraíba, e que nunca deu maior importância a bens materiais, estaria fazendo 100 anos se não tivesse morrido aos 94, abandonado em cima de uma cama, cego e paralítico, na mesma cidade em que veio ao mundo no dia 21/11/1896.

Aliás, por falar na data do seu nascimento há uma certa controvérsia a respeito deste assunto. Conta Francisco Coutinho Filho, escritor paraibano (pai do também escritor Edilberto Coutinho, que faleceu recentemente) e autor do clássico Violas e Repentes, editado no Recife em 1953, que a data exata do nascimento do poeta é 1896.

Todavia, baseado em depoimento de dois irmãos do poeta que residem em Monteiro, ambos com mais de 80 anos, a imprensa paraibana registrou que o centenário do seu nascimento foi comemorado o ano passado (l895). A família não possui nenhum documento que comprove ser este o ano certo em que Pinto veio ao mundo, razão por que é mais plausível que se dê como verdadeiro o ano de 1896, assinalado por Coutinho Filho, que produziu há 43 anos, quando Pinto tinha boa memória e esteve com o escritor diversas vezes, o mais completo trabalho, da época, sobre os contadores de viola do Nordeste.

Mas, independente da data do seu nascimento, Pinto merece ser festejado, sempre, pela contribuição que deu à chamada "arte do improviso". Pessoalmente chato, de pouca conversa, raciocinava com tanta rapidez que tropeçava nas próprias palavras.

Contava o poeta Job Patriota, pernambucano de São José do Egito, também já falecido, que, cantando certa vez na cidade de Tabira, sertão do Pajeú, Severino Lourenço da Silva Pinto começou assim uma sextilha:

Foi passando uma donzela E pra ela dei psiu...

Job, que apreciava o gênero lírico, pensou imediatamente com os seus botões: "pra onde esse doido quer ir?". E Pinto continuou improvisando:

Ela parou lá na frente Perguntou: "que foi que viu?" — Foi a beleza do céu Que no seu rosto caiu.

Pinto foi um dos ases da viola que pontificaram na noite de 5 de outubro de 1948, no Teatro de Santa Isabel, no Recife, no Congresso de Cantadores, de iniciativa de Rogaciano Leite. Este último, grande poeta e extraordinário jornalista, nasceu no sítio Cacimba Nova, hoje município de Itapetim, então pertencente a São José do Egito, tendo começado a fazer versos aos 15 anos de idade exatamente pelas mãos de Pinto.

Também participaram do Congresso — algo que chocou, na época, os chamados defensores da "arte erudita" — os três irmãos Batista (Lourival, Dimas e Otacílio), Domingos Martins da Fonseca e José Soares Sobrinho.

Relata Coutinho Filho que Lourival cantou com Pinto para uma grande platéia, que lotou o teatro, surpresa com aquela forma de fazer versos. Lourival Batista, entusiasmado com os aplausos, fez de improviso esta sextilha:

A cantoria vai boa E os versos são colossais...

Nesse instante, aproxima-se um fotógrafo, que, de cócoras, bate uma foto dos dois violeiros. E Lourival continuou:

Pinto, aí da tua banda Acocorou-se um rapaz Assim nessa posição Eu não sei o que ele faz!

Pinto aproveitou a "deixa" do colega e completou:

Chegou ali o rapaz Começou a se bulir Focou na cara da gente E eu vi a luz explodir Pensei até que era um bicho Que nos quisesse engolir.

Lourival, imediatamente descreveu o resto da estória em versos:

Pinto, eu não sei distinguir Se ele é da praça ou da aldeia Pois quando se acocorou Meu sangue tremeu na veia A foto pode ser boa Mas a posição foi feia.

Em outra ocasião, Pinto e Louro estavam cantando quando Pinto findou uma sextilha queixando-se da desafinação da viola, dizendo:

— A minha precisa emenda.

Lourival pegou na deixa:

Não vejo quem compreenda Natureza de viola Com o sol não se dá bem Com chuva se descontrola Se vem o sol, ela racha Se vem a chuva, descola.

Pinto, insuperável no improviso, gostava de cantar com quem o "provocasse" porque assim inspirava-se mais para revelar o seu talento e a sua genialidade.

Na época em que reinou na viola como reinam hoje, por exemplo, Ivanildo Vilanova, Geraldo Amâncio, João Paraibano, os Nonatos, Lourinaldo Vitorino, Valdir Teles, José Cardoso, João Furiba, Moacir Laurentino, Rogério Menezes e outros — adorava cantar com Lourival porque um sabia encontrar a fórmula de provocar o companheiro.

Por essas sextilhas abaixo, vê-se o comportamento deles diante de um quadro assim. Cantavam na vila de São Vicente, hoje município de Itapetim, quando Lourival Batista, falando sobre plantas, usou o termo "carola" em vez de "corola". Pinto bateu forte:

Um rapaz que teve escola E ainda cantar errado Fala em flor e diz "carola" Muito tem-se confessado Parte de flor é "corola" Precisa tomar "coidado"

O cochilo de linguagem de Pinto, falando "coidado", em vez de "cuidado", deu a Lourival a oportunidade de poder vingar-se do colega. E fulminou:

Pra não ter um só errado Errei eu, erraste tu, Errou Pinto do Monteiro E louro do Pajeú Nesta palavra "coidado", Tire o "o" e bote o "u".

Em outra ocasião, cantando na cidade de Prata (PB) com Antônio Marinho do Nascimento, sogro de Lourival Batista, e outro gênio do repente, Pinto ouviu do companheiro a "provocação" que estava esperando:

Mas, tenha muito cuidado Com as raposas daqui

Desfecho que, obviamente, tinha a ver com os animais: o medo que galinha tem de raposa. Pinto não se intimidou:

Aonde eu chego, não vi Mal que não desapareça Raposa que não se esconda Bravo que não me obedeça Letrado que não me escute Cantor que não endoideça.

Em outra ocasião, Manoel Galdino Bandeira cantava com Pinto, em Jatobá, sertão paraibano, quando improvisou esta sextilha:

Pois, quem tem vindo ou estado Aonde Bandeira mora Se vem cantar, perde a rima Porque lhe falta a sonora Ensaca o pinho às carreiras Se desculpa e vai embora.

Pinto não se deu por intimidado e arrebentou:

Posso ir a qualquer hora Quando o tirar do engano Vou pegar sua "bandeira" Quebro o mastro, rasgo o pano Pra lhe mostrar quem sou Me transformo num tirano.

Era assim o velho Pinto: quanto mais capaz era o seu parceiro, mais ele gostava de enfrentá-lo, pois morreu sem conhecer derrota na difícil arte do improviso. É um poeta popular sobre quem pouco se estudou e se escreveu apesar do "mito" que representa para as novas gerações de cantadores que estão surgindo no Nordeste.

Ainda bem que Ivanildo Vilanova (cujo pai, José Faustino, foi parceiro de Pinto em várias cantorias) não esqueceu de homenageá-lo neste belíssimo comercial feito para uma rede de supermercado:

Pelo vaqueiro que vaga Por Pinto e sua viola Por Zumbi, o Quilombola Conselheiro e sua saga Pelo baião de Gonzaga E a luta de Virgolino O barro de Vitalino Pelo menino de engenho Por isso tudo é que tenho (Orgulho de ser nordestino)


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