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[31.10.2001] ANÁLISE Escritura de Patativa ajuda a reinventar o Nordeste PAULO MOTA
Cante lá, que eu canto cá: se a imagem do Nordeste é uma ficção moderna -bricolagem de ACMs, insolência e corrupção-, eu prefiro reinventá-la pelo canto torto de Patativa do Assaré. Falo da sabedoria em estado bruto de linguagem, o grão e grau zero da voz, os aforismos noigrandes do cordel, a tensão entre o visível e o dizível nas xilogravuras, enfim, os atributos presentes no sertão de Patativa, cânones de um outro Nordeste: prenhe de inteligência, rico de carências. É possível filosofar no sertão? Se minha pátria é minha língua, Patativa traduz o Cariri cearense. Em uma vida de enxadas, fez da palavra e do martelo agalopado máquinas de repensar o mundo. Composta de um português miscigenado e curtido no silêncio do sertão, a linguagem usada no livro de estréia, "Inspiração Nordestina", causou tamanho estranhamento que a brochura era provida de um elucidário com três instâncias de decifração. Cego como Borges e semi-analfabeto, Patativa decorou na "memória de elefante" uma Alexandria de cordéis e sextilhas. Se as altas taxas de analfabetismo inventam "um Nordeste para sulista ver", as mais refinadas práticas de leitura coletiva explicam o Nordeste de Patativa. Refiro-me à figura do "autor oral", herdeiro da tradição grega da retórica e dos trovadores medievais. Permita-me, leitor ilustrado, traçar um elo entre a tradição oral das cantorias puxadas por Patativa nos outãos sertanejos, as leituras em festivais olímpicos de Heródoto, os seminários de Foucault e o mundo das mil e uma noites. No sertão de Patativa, o passado é pós-tudo: Camões é Camonge, Bocage excita as picardias, Dom Quixote é apelido de magricelos e quem é da família Diógenes não precisa ler Shakespeare. As mitologias de Patativa podem ser natureza-morta para o "cosmopolitismo provinciano" dos ciosos em importar paradigmas, mas professores de universidades de Londres e Paris já dedicaram teses ao poeta de Assaré. Ali, enxergam no drama existencial do migrante nordestino os temas da alteridade, do estrangeiro, tão caros ao século que se inicia sob o signo da intolerância. A escritura de Patativa é mais apolínea que dionisíaca, porém celebrativa. Panfletária na crítica social, instiga os que fazem a higiene de suas perturbações arrecadando donativos por toll-frees. Insere-se na tradição sertaneja de valorizar o percurso, o presente vivido. Fala de uma gente capaz de reinventar a vida cotidianamente com amizade, hospitalidade, riso ou um simples conversê. Pavões e sertanejos são mysteriozos: são muitos, querem voar.
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