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Jornal do Conto

 

 

Hélio Pólvora


 

O leopardo no Kilimanjaro

 

Sem sono. Ultimamente o sono lhe chega tarde, em geral depois da meia noite, e o obriga certas noites a ver raiar o dia, façanha que não deseja aos seus piores inimigos. Vai rever então As Neves de Kilimanjaro, mais por admiração a Hemingway do que a um velho filme.

Não dá, pensa. Não dá. Esse Gregory Peck é canastrão. Está pouco à vontade no papel de um escritor da “geração perdida”. É muito formal, muito convencional, pertence ao gênero água-com-açúcar. Teria de ser um ator maldito, desses que descarregam o vulcão, se o têm no íntimo, ou rompem a boca do balão, se algum lhes cai à porta. Positivamente Gregory Peck não tem cara de quem escreve ficções.

Ainda assim, emociona-se e perde mais sono. As pálpebras, em vez de arriarem com o peso do sono, escancaram mais os olhos. Estão ali os temas de Hemingway, suas linhas mestras: infância e juventude em Michigan, Paris da época entre as duas guerras mundiais, a Guerra Civil Espanhola, a Espanha e touradas, caçadas na África. O filme se concentra numa cena na savana africana, repetida com ligeiras variações: o escritor Harry Street agoniza num acampamento perto do Kilimanjaro. E recorda. E nessas recordações há mulheres belas.

O escritor na sua hora crítica. Harry desconfia que vai morrer e luta por uma revelação. Refaz a sua trajetória em busca de um sinal revelador, de uma síntese que lhe traga alívio. Hemingway publicou a novela The Snows of Kilimanjaro em 1937, sem prever que a cena se repetiria muitos anos depois consigo mesmo: a decadência física e mental, o suicídio com uma espingarda de dois canos, própria para caçar elefantes, na casa de Ketchum, Idaho

O filme acentua o conteúdo autobiográfico da novela. O pai de Harry, adoentado, confia-lhe um enigma à guisa de legado: perto do cume do Kilimanjaro encontraram a carcaça enregelada de um leopardo. Que fazia o leopardo naquelas alturas? Talvez, como o cantor Frank Sinatra, quisesse alcançar a estrela inatingível (the unreachable star). Eis a chave que Harry busca — e que Hemingway há de ter perseguido nas suas andanças.

“Escrever bem eqüivale a caçar”, diz o velho.

E após curta pausa significativa:

“Vai-se em busca da verdade. A presa é a verdade”.

A verdade. A verdade ficcional, sempre menos dolorosa.. Insone, o filme o deixa triste. Refere-se a um mundo que acabou. Um mundo em que a terra já não oferece grandezas, em que a guerra deixou de fazer heróis. Um mundo gangrenado, mais gangrenado que a perna do escritor Harry Street.

Já na cama, tentando dormir, o insone pensa que todos são caçadores, uns reais, outros virtuais. Ele, por exemplo, não é caçador real. Como seu pai, falta-lhe coragem para caçar e matar. Seu pai tinha uma espingarda que, de vez em quando, azeitava, carregava. Gastava tempo, aos sábados, nessa tarefa que ele menino acompanhava calado e fascinado. Os cartuchos eram preenchidos cuidadosamente com grãos de chumbo, pólvora, espoleta. O velho abria a culatra, carregava a arma, punha uma bala na agulha. Do seu canto o menino pensava: “É hoje. Ele trará, no mínimo, o unicórnio que habita os nossos bosques”. Engano. O pai queria um pretexto para vaguear pelos matos, distrair-se, sentar num cepo e aspirar o odor das árvores misturado ao cheiro da terra. Não atirava sequer em gavião, em raposa, em cobra peçonhenta. Suas caçadas eram intimistas, baseadas na memória e nas idéias que sacodem a poeira das memórias.

Caçadores fingidos e furtivos, mas ainda assim caçadores, somos nós. — o insone insistiu em pensar, a revolver-se na cama, a forçar um bocejo para atrair o sono. Insistentes, solitários, andamos a caçar as feras da selva e as feras da alma, sem contar o eterno feminino, que este, então, vive a nos rondar e a salmodiar brandos cantos de sereia, quando não nos agarra pelos cabelos e nos arrasta, de tacape em punho..

Começa a sentir leve torpor. É preciso esvaziar a cabeça, varrer os pensamentos um a um. Como será uma cabeça vazia, uma cabeça que não pensa? Deve transmitir uma sensação de grande bem-estar. Pensamentos vagam incertos, se formam e se deformam, se mutilam e reaparecem, como nuvens esgarçadas em céu de verão. Sua cabeça é uma tela em que um operador projeta cenas selecionadas de um filme, ou fragmentos de vários filmes inacabados.

Briga-se na alcova, briga-se no bar, briga-se nos gabinetes do poder em Brasília, briga-se na sala perante os austeros retratos de pais e avós, uma vergonha. A vida, diria um sovadíssimo lugar-comum, é um campo de batalha. Mas há lugares em que brigar é sacrilégio. Sim, por que brigar em plena Avenida dos Campos Elísios?

A Étoile, com o seu Arco do Triunfo, não o deixa mentir. Lá está, muda, ao fundo, acesa na memória, com ar de censura. Se pudesse, mandaria o Arco desabar sobre os litigantes, com aquela mesma facilidade com que desabam chez nous os prédios de apartamentos. Mas Paris e seus monumentos têm mais o que fazer do que punir um casal de jovens em conflito.

No instante em que o insone os alcança com a vista, a briga passa da picuinha à rusga declarada, e desta à ameaça de abrir dossiês e divulgar o conteúdo, grampear telefones e quebrar sigilos bancários. Pelo fogoso andar da carruagem verbal, acabará em sopapos. Perto, uma agência de empresa aérea. Ele imagina que o desentendimento começou ali, com sorrisos nervosos, e o casal foi às vias de fato no meio da avenida, onde há espaço para o Waterloo de corações estremecidos.

A moça, que é alta, branca e tem ares imperiais, quer andar de camelo no deserto, pois sonha com um xeque de albornoz branco e poços de petróleo; ele, do tipo intelectual, prefere rondar a casa-fortaleza de José Saramago na ilha de Lanzarote. Discutem. Ela puxa-lhe com raiva a manga do casaco. Ele dá-lhe um empurrão. A moça arrasta a mala, planta-se no canteiro dos Champs Elysées e, de mão no queixo, se põe a bater o pezinho no asfalto.

Está danada. O pezinho soa no chão como um bate-estaca. O rapaz se vai chegando, enfia as mãos nos bolsos e balança o corpo. Afinal, não se abandona uma dama longe da pátria, especialmente em Paris, cidade cheia de cabarés. Sopra uma brisa por entre o arvoredo, uma chuva de pétalas e flores cai sobre os dois.

É uma bênção, um bálsamo, a aspersão do incenso de outono tangido pelo turíbulo dos ventos. Bom momento para rir, dar o dito pelo não dito. Mas nenhum deles desamarra a cara. Ele ouve ou teria proferido a palavra whore e se lembra logo do verso de Sosígenes Costa: “estavam as prostitutas no poente”. Ou teria sido where, de where are you going? Na sua ira, o casal recorre a vários idiomas. Ela retruca em francês. Uma frase longa, da qual ele recolhe menteur, crétin e crapule.

Franceses passam frios e indiferentes. Se lhes pedissem para desapartar o casal, responderiam pelas costas: “Prenez un taxi”, como se os jovens quisessem ir ao Père Lachaise ver o túmulo de Oscar Wilde. Um sopro frio de outono percorre os Champs Elysées e empalidece toda a Étoile. O casal insiste na briga, cada um deles quer dizer a última palavra e retirar-se emproado.

Eis que agora falam português, língua farta em ofensas pesadas. Engrolam palavras, tartamudeiam, gaguejam xingamentos e, por fim, cospem-nos:

— Palerma.

— Nojenta.

Que o rapaz fosse palerma, acredita-se. A moça devia saber. Larga a mala e se afasta quase correndo.

— Et la valise? — grita-lhe, desesperado, o rapaz.

— Je m´en fous de la valise, spèce d´escargot!

Sabe argot, aquela moça. Sem voltar-se, desaparece na multidão. O rapaz fica parado um bom minuto. Mexe nos bolsos, apalermado, talvez à procura de fósforos. Por fim, agarra a mala, atravessa a avenida e mete-se num bar lateral, perto da esquina. Pede calmamente um Napoléon, enquanto tenta com os olhos atrair a atenção de uma loura na mesa próxima. Nada como um conhaque forte para escapar a todos os abandonos em Elba, em Santa Helena, em Cacha-Pregos e arredores.

Rola na cama. As imagens dão-lhe raiva, descem e subiam no balde com que a memória tira água suja da cacimba. Distende as pernas. Nisso, procurando relaxar, ouve a primavera chegar — outra primavera da sua vida. Ainda chove, e muito, ele verificou pelo ruído abafado das bátegas. Parece que o ventre de nuvens sombrias se rasga a todo o instante para despejar sobre nós as merdas placentárias de seus penicos .

Da sua janela, trancado como Franz.Kafka, mas a desejar brechas na muralha, olha o mar. Não está cerúleo, está plúmbeo e seguramente do agrado do poeta Ovídio nos seus tristes exílios. Um pássaro voa para o ninho no poste. Mancha amarela na cabeça preta, peito amarelo. É um bem-te-vi que insiste em o denunciar. Julga-o surdo, porque repete o seu piado estrídulo. Está certo, você o viu, mas não espalhe.

Outro pássaro, este marrom, pousa no chão do pátio e entra a bicar a grama, mais saltitante que personagem masculino da novela das oito. Também solta o seu pio, que por sinal é mavioso. O chão só lhe dá topadas, mas a eles (ou elas), sabiás, dá alimento. Sabiá pequeno, de restinga, com certeza descendente dos sabiás que Gabriel Soares de Souza encontrou em 1537 no litoral sul baiano. E ele que os julgava empalhados nas páginas de Gonçalves Dias, José de Alencar, Adolfo Caminha e Afrânio Peixoto...

Volta ao bem-te-vi, que novamente o denuncia. Acaba de deixar o ninho e voa para o mato da encosta. Demora-se uns minutos, perdido entre folhas e talos, e levanta vôo com um lagarto no bico. O lagarto está vivo e se contorce. Pelo visto, o filhote desse bem-te-vi deve estar crescido, com estômago de avestruz e pronto para o primeiro vôo. Bem-te-vi malandro: já criou ali, naquele ninho ou em outro ninho próximo, uns cinco filhotes, pelo menos.

Ouve três batidas rápidas. Estão a chamar por ele e têm pressa.

Abre a porta.

Ninguém.

Apenas o mar turvo, o céu de nuvens inchadas.

Quem bate? Quem o procura neste dia escuro que mais parece madrugada liquefeita? Será que se enganou, que a poluição sonora o ensurdeceu, que o bem-te-vi tem razão de insistir na sua denúncia pública?

Apenas o mar escurecido — e nada mais.

Abre um livro de crítica literária de Machado de Assis. O velho mestre viveu numa época de presumida polidez, em que todos tinham ou fingiam ter punhos de renda. No entanto, foi duro com Eça de Queirós, fez reparos a Alberto de Oliveira, desancou poetas iniciantes. Novamente as batidas. Agora, duas.

Quem o busca? Quem o quer?

Abre a janela. Nuvens pesadas ameaçam desventrar-se. Não vê ninguém. É apenas o mar, são apenas as nuvens — e nada mais.

Mas alguém chamou. Alguém chegou ao seu umbral e bateu a aldrava, uma, duas vezes. Certamente não foi Ava Gardner, lindíssima no filme. Ah, esse vento não cessa, e está gelado, traz um hálito de Mar do Norte, de Mar de Bhering, de ilha de Sacalina, por onde andou Tchékhov, tísico, a recensear presos. Ó de fora!

Ninguém responde.

E nessa linha de cogitações imerso, ouve bater mais uma vez. São três pancadas secas, nítidas, tem a impressão de estar na sala de visitas do avô, a olhar fascinado o pêndulo, ainda sem saber que o relógio de parede, ao cavar o tempo, cava num poço sem fundo, cava a eternidade do Nada.

Quem é? Quem o procura?

E somente então, ao darem seus olhos, por acaso, com a vidraça dos fundos da sala, vê nela o reflexo de um sabiá. Não é o corvo de Poe. É um sabiá de Alencar. Pousou no peitoril, talvez para se resguardar da chuva que já está a tombar, e viu-se refletido, e avançou contra a sombra de si mesmo, às bicadas, e agora apaziguado sente-se protegido de si mesmo pelo anteparo de vidro. Pois é para isso, para refletir e proteger, que existem os espelhos.

Que horas são? Procura ver os ponteiros do relógio de pulso, mas há uma névoa nos olhos. Tem preguiça de se espichar para um lado e acender a luz. E assim, inerme na cama, e insone, sente que o tempo se escoa, que o dia se avizinha, que a treva cederá vez à luz — será? O filme, o seu filme, é rebobinado na manivela da memória, outra cena selecionada ocupa a tela.

Olham-se. Não estão propriamente agastados. Não sentem raiva. Apenas tédio, indiferença. Apenas aquela impressão de que a presença de um constrange a liberdade do outro. Alguém pusera a legenda the end no filme do seu breve romance.

— Quer ir embora?—ele pergunta.

— Não sei. Você acha melhor eu ir?

— Talvez fosse bom.

O olhar da moça, nesse instante, recolhe as primeiras vagas de uma maré turva. Quanto a ele, olha pela janela a fora e nada vê salvo pássaros em fuga.

— Tem a mala — ela arrisca.

— Eu levo.

— Nesse caso, prefiro ir logo.

Ele a vê arrumar suas coisas na mala: alguns vestidos, algumas blusas, peças íntimas, cosméticos. De pé, um diante do outro, no quarto antes cenário de amores loucos, eles não se tocam mais, porque já sabem que a superfície de seus corpos é um lago congelado.

Esquecida da promessa dele, a moça pega na alça da mala.

— Deixe —ele falou. — Eu levo até à rua.

— Lá você me arranja um táxi?

— Claro.

Atravessam o jardim onde, no meio das flores e plantas, um girassol aberto parece acompanhá-los como um ponto de interrogação. O porteiro saúda-os de uma forma que não lhes parece habitual. Na calçada, a mala pousada no cimento, aguardam o aparecimento de um táxi vazio.

Ele acena para três, em vão. Quer acabar logo tudo e recolher-se ao seu ancoradouro. Pensa com algum desgosto que doravante, ao voltar para o apartamento no começo da noite, abrirá a porta para o nada. Ninguém estará à sua espera. E a sala não tardará a criar um cheiro de mofo, musgo ou líquen, que se espalhará sobre a mesa-de-centro, as cadeiras, o sofá, como se fossem campas. Isso passa, isso passa, sopra-lhe sem muita firmeza uma voz interior.

A moça espera, é uma expectativa viva, apesar da sua relativa mobilidade, à beira da calçada. E quando se curva para pegar a mala, dá a impressão de projetar um salto para uma piscina de águas azuladas, ou para, quem sabe, um mar de equívocos.

O táxi pára. Olham-se de novo, pela penúltima vez. Ele gosta de pensar em penúltimas, jamais em derradeiras, porque o derradeiro e o final ficam para depois da morte da vida e do amor. Apesar da separação de seus corpos, algo neles não quer romper-se. Como se entre a nervosa ânsia de um e de outro houvesse uma corda esticada, tensa — tão tensa e prometedora de melodias quanto a corda de uma harpa.

O motorista sai para abrir o porta-malas.

Aquele amor dos dois, que fora curto e deleitoso, resiste à dissolução. Parece dizer que os amores devem resistir, devem buscar forças em todos os naufrágios, do contrário não se transformam em amores perfeitos. Afinal, o amor perfeito é uma avenida cheia de cruzes, ossos amarelados pelo tempo e oliveiras esquálidas. Há que ter forças para vencer os martírios desses gólgotas.

Olham-se, pois — e aquela era de fato a última de todas as vezes. Ouve-se um estalido. Será a corda que se partiu, desatracando os barcos em que vão suas vidas? Ou o bater do porta-malas? O motorista se inclina sobre o volante para rodar o trinco, abrir a porta. O camarote, o convés, a navegação solitária. A moça estremece, mas não quer que seus olhos se marejem, nem que o bolo que sente formar-se na garganta suba e, em última instância, lhe desate a língua para as bobagens de costume ditas em todas as despedidas.

Tocam-se, então — um toque rápido de mãos frias. Bem sabem eles que aquelas mãos, dias ou semanas depois, poderão avançar, trêmulas, na direção do telefone — mas que o orgulho os impedirá de discar o número querido. Estavam cansados de saber que, separados para sempre pelas ruas, esquinas e multidões, ou até pelas cidades e continentes, cometeriam em pensamento a fraqueza de quererem buscar-se, na vã esperança de aquecer ardores desativados como se aquece um pão. Pensamentos que jamais se transformariam em atos e, com o correr do tempo, haveriam de adquirir a fugacidade de uma lembrança, a esmorecida brasa de uma memória.

O táxi parte. Algo acontecera a um homem e uma mulher — e, no entanto, a rua continuava a mesma, o porteiro cochila, o girassol tem as pétalas desarranjadas, como na tela de Van Gogh. E o pior é que a vida, feroz, repetia-se — indiferente a amores fúteis ou apaixonados.

Na savana africana, à sombra de uma tenda, um homem estende a perna e tenta ler. É Harry, o escritor gangrenado. Finge ler, mas em verdade bebe uísque, de modo disfarçado, para que a mulher, aquela última mulher que o acompanha ainda, não o repreenda. E diante deles, no alto gelado da montanha, está a carcaça do leopardo. Que diabo foi lazer o leopardo naquelas alturas geladas do Kilimanjaro?

Quatro horas da manhã, pelo relógio de pulso. O sono ainda está longe. Pelo visto, vai romper o dia, vai viver mais um dia de sua vida. Insone, de olhos vermelhos, um peso nas costas, o coração opresso. O que levou o leopardo a subir até o cume da montanha?

Deixa a janela aberta e entra um morcego na sua caverna. É Bin Laden ditando moda. A princípio não vê o morcego, ignora de que lado veio, se do mar, se do morro, se de algum pântano. Quando dá por ele, esvoaça e pende de uma trave.

Acha que esvoaçou porque, a princípio, lhe parece uma mariposa. Gosta de mariposas, dizem que dão sorte. E ele precisa de sorte, muita sorte. Para o quê? Não lhe perguntem que não sabe direito, talvez para sobreviver. No apagão em que vive, quase uma penumbra, mísera cota de energia para quem precisa tanto abrir os olhos, é natural que confunda mariposas com morcegos, bem-te-vis com milhafres. Mas, olhando bem, vê que é um morcego que se retorce sobre si mesmo, como um pião, dependurado do teto. E chia.

Quanto ao chiado, tudo bem. Quem não chia não arruma uns trocados com que pagar o condomínio, nem desapropria fazendas a custo zero. Quem sabe o chiado não é um idioma com verbos irregulares, pronomes oblíquos e crases traiçoeiras?

— Um rato de asas — ele diz a si mesmo.

— Apenas um morcego — chia o invasor.

— Dá no mesmo.

— É diferente. Temos asas, mas não voamos alto, por cima da carne seca, como certos ratos de vocês na administração pública.

— Pretende demorar-se?

— Não tenha medo, que não sou hematófago. Guarde o seu sangue para pagar os impostos.

— De onde vem, velho morcego?

— Do escuro para o escuro. É favor não me chamar de velho.

— Preconceito contra a velhice?

— Não. É que nós, morcegos, somos todos jovens.

E assim dizendo, torceu o focinho minúsculo e abriu as membranas das asas. Tinham uma transparência diáfana que lhe pareceu pura, incorruptível. A juventude eterna dos morcegos, pensou. Esse morcego aí, dependurado da trave, pode até chamar-se Fausto, mas não precisará fazer pacto com Mefistófeles.

— O que pretende aqui?

— Ora, caçar.

— Caçar o quê?

— Insetos, homem. Caça miúda. A caça grossa fica para vocês. A temporada de caça está aberta para os morcegos a vida inteira.

— A nossa também, mais ou menos.

— Mas tem uma diferença.

— Sim?

— Nós, morcegos, hematófagos ou insetívoros, caçamos apenas para comer. Já leu sobre a sobrevivência das espécies?

— Ouvi falar de um tal de Darwin. Olhe, se for por uma noite só, pode ficar. Já que não tenho a noite das Valquírias, terei a noite do morcego solitário. Mefisto, vamos fazer um trato.

— Qual?

— Voe alto, que tenho alergia a bafo de morcego. Cuidado para não esbarrar comigo. Às vezes eu ando de noite por esta caverna, recitando centúrias de Nostradamus em latim.

— Não há perigo. Morcegos são cegos mas têm um radar infalível. Desviam-se do obstáculo por um triz.

— Então, eu vou dormir, e você vai à caça. Bom proveito. A casa é sua.

— Boa noite, senhor — deseja-lhe o morcego.

Antes do dia romper, ele insone e de olhos vermelhos, ouve um ruflar de asas. O morcego fugia da luz, que o expunha a perigos, para a escuridão que lhe dava sustento. Ia de bucho cheio. Simples, pois não?, a vida dos morcegos. Desde que não sejam vampiros, que de incisivos afiados já temos bom estoque para as jugulares expostas.

E pensar que Harry Street morre de gangrena, na tenda, sem saber o que o leopardo foi fazer nos altos gelados do Kilimanjaro e lembrar-se das mulheres que amou. .


(Do livro Contos da Noite Fechada, 2004)