Hélio Pólvora
Capitu: Inocente ou culpada?
Uma crônica de
Otto Lara Resende na Folha de S. Paulo, em que se referiu à
“traição” de Capitu, provocou cartas de leitoras indignadas. As
manifestações prosseguiram, forçando o jornal a instaurar o debate.
Não é o primeiro nem será o último. O baiano Eugênio Gomes deixou-se
seduzir, no seu derradeiro livro, O Enigma de Capitu, pelo que,
àquela altura, já se transformara em batalha judicial nos fóruns da
crítica literária: a fidelidade ou infidelidade conjugal de D.
Capitolina, esposa de Sr. Bento Santiago, ambos personagens de Dom
Casmurro, romance de Machado de Assis.
Empolgado por
uma Capitu que parece injustiçada e vilipendiada pelo marido
ciumento, Eugênio Gomes empreendeu defesa de apaixonado. Pouco lhe
importou que, no início da narração, Bentinho fale no seu “comborço
Escobar”; e declare, por fim, com todas as letras, que sua mulher,
amiga de infância, e seu melhor amigo, o Escobar, juntaram-se para
traí-lo. Eugênio Gomes partiu do pressuposto de que Bento Santiago,
narrador de Dom Casmurro (no qual predomina, portanto, o seu “ponto
de vista”) escondeu, quem sabe lá, a verdade. Afinal, o depoimento é
dele, é o único depoimento com que conta o leitor. Não haveria outra
versão ?
Em busca dessa
face oculta, Eugênio Gomes exaltou-se, foi advogado brilhante,
caloroso, inventivo. Pôs Bento Santiago numa roda-viva e não deixou
de investir contra seu criador, Machado de Assis. Chegou a invocar
em favor de Capitu a tese da impregnação fisiológica, na tentativa
de explicar a semelhança do filho de Bento Santiago com o seu amigo
e suposto comborço Escobar.
Certeza mesmo
somente esta: Machado criou, por intermédio de Bentinho, uma
personagem feminina fascinante, fadada a ocupar pelos tempos afora o
banco dos réus, em longo e repetido processo. Quanto mais cresce no
espírito do narrador a convicção da infidelidade de Capitu, mais o
leitor desconfiado, desses que investigam as entrelinhas,
sentir-se-á tentado a duvidar, tais as ambivalências e dúvidas que
Machado vai semeando com mão de mestre. A brazilianist Helen
Caldwell escreveu um livro volumoso — The Brazilian Othello of
Machado de Assis, a Study of Dom Casmurro — com o intuito de também
reabilitar Capitu. Seu libelo tem mais fôlego; baseia-se em provas
circunstanciais mais numerosas, como veremos adiante, e convence
mais porque não comete o engano de identificar o narrador Bento
Santiago com o seu criador Machado de Assis.
Tem o seu quê de
fascinante, nesta nossa época de tão larga permissividade de
costumes, a reação das leitoras da Folha. Testemunhamos a crescente
afirmação da mulher na sociedade brasileira. Passando a trabalhar
fora, por imperativos econômicos,ela precipitou adesagregação
familiar. Se tivéssemos um Relatório Kinsey sobre o comportamento
sexual das brasileiras, sobretudo as de classe média, outrora um
bastião de conservadorismo, veríamos que as Capitus (segundo a
versão de Bentinho) se multiplicam; e que o ciúme sexual, inspirado
na mulher como “propriedade” do marido, vacila em suas fundações.
Por que, então, esse afã, esse zelo, essa pressa em defender Capitu
da pecha de adúltera? — ela, uma personagem de ficção vivendo no Rio
de Janeiro do Segundo Reinado? Simples manifestação de feminismo ou
algo mais? Deixemos por enquanto a pergunta no ar.
É importante
considerar o fator já mencionado do “ponto de vista” de quem narra —
Bento Santiago — e não, certamente, Machado de Assis. Cabe a
Bentinho “o critério para organizar o material narrativo de dentro
da ficção ou de fora dela” (estou citando uma definição de Raúl H.
Castagnino, crítico argentino). Em outras palavras, Bentinho
narrador ilumina a seu bel prazer o que Castagnino chama de “ângulos
especiais” da narração.
Uma narração,
qualquer que seja, refere-se ao passado, mediato ou imediato. Isso
sempre quer dizer que Bentinho terá tido tempo de dispor razões e
sentimentos, enquanto narra ou se prepara para narrar; de introduzir
artifícios destinados a cooptar o leitor. Serão artifícios capazes
de criar aquela atmosfera de “ilusão” que envolverá e prenderá o
leitor como uma teia. Quem garante que Bento Santiago não se
excedeu, que Bento Santiago não mentiu?
Ademais, sendo
ele o narrador, estaremos presos à sua palavra. Bentinho parece
saber tudo. Ele se iguala a um deus. Bertil Romberg (Studies in the
Narrative Technique of the Firstperson Novel) considera tal narrador
“onisciente, visível e onipresente”. O que nos levaria a pensar:
Bentinho, acicatado talvez por um ciúme que teria ou não fundamento,
poderia ter dissimulado partes de sua narração.
O narrador que
dissimula é um narrador perverso. Ele se propõe deliberadamente,
friamente, a iludir, a comandar um jogo de cartas marcadas, de
cartas enfiadas na manga. Será este o caso de Bentinho?
Tal
possibilidade avulta quando se observa ser o Dom Casmurro romance de
fundo intimista, de testemunho pessoal, não propriamente penumbroso,
mas de seu natural obscuro. A obscuridade machadiana será uma reação
à “claridade solar” do romance realista então em voga no último
quartel do século passado. Ora, a obscuridade facilitaria o
desempenho do
narrador Bento Santiago. Mas convém notar que ele não consegue, se é
que o intenta, retirar a empatia (Einfuehlung) leitor-Capitu. A
empatia é aquela capacidade “de entrar-se numa espécie de simbiose
mental com outros seres” (definição de Arthur Koestler, em The Act
of Creation). Daí a punição de Bentinho à mulher, no final do
romance, parecer exagerada, certamente cruel: ele sufoca o amor e
exila Capitu na Suíça. Ela morre sozinha e sem perdão. Mas há quem
acredite — e entre esses crentes está a brazilianist Helen Caldwell
— que Bentinho, doentiamente, arrastado por um ciúme mórbido
semelhante ao do Mouro de Veneza por Desdêmona, matou ele próprio o
seu amor.
Antes de Eugênio
Gomes e Helen Caldwell, a crítica brasileira aceitara passivamente o
libelo de Bentinho contra a mulher. E não chegara a formular uma
pergunta subsidiária, que Caldwell propõe: por que o romance foi
escrito de forma a deixar ao leitor a decisão sobre a culpabilidade
ou inocência de Capitu?
As provas
coligidas pelo narrador de Dom Casmurro parecem circunstanciais: a
semelhança do seu filho com Escobar, amigo do tempo do seminário; os
famosos “olhos de ressaca” ou “olhos de cigana oblíqua e
dissimulada” atribuídos a Capitu; as lágrimas de Capitu no enterro
de Escobar, amigo do casal; certas atitudes dúbias que o narrador
surpreende em ambos. Tais indicações não chegariam a configurar um
caso de adultério; seriam, quando muito, suspeitas — mas a crítica,
embalada pelo discurso emotivo de Bento Santiago, e pela deliberada
ambigüidade do texto machadiano, aceitou-as como provas conclusivas.
Caldwell toma as
confissões de Bento Santiago pelo que são: uma versão pessoal de
acontecimentos dramáticos, sujeita, portanto, a omissões voluntárias
ou casuais, e a deformações por ventura preconcebidas, muito
provavelmente, no interesse de uma defesa do narrador, perante sua
própria consciência. Afinal, ele não baniu a mulher e o filho,
matando-os pelo desprezo? Dois testemunhos acionaram na brazilianist
o mecanismo das dúvidas: o do narrador de Dom Casmurro sobre as
lacunas alheias (“assim podemos também preencher as minhas”, ele
adverte significativamente); e o testemunho do narrador de Esaú e
Jacó sobre o par de lunetas necessário “para que o leitor do livro
penetre o que for menos claro ou totalmente escuro”. Neste último
trecho há uma alusão a um “enxadrista”(que seria Machado de Assis) e
aos seus “trebelhos”(personagens e, por extensão, os leitores).
Pede-se colaboração mútua, “espécie de troca de serviços”. Helen
Caldwell aceitou a sugestão e, pondo-se a investigar, identificou o
que seria uma montagem cuidadosa, planejada, dirigida, na qual os
detalhes mais acessórios são indispensáveis ao cenário. Um jogo de
inteligência em que é preciso estar-se atento ao mais simples mover
de uma pedra. Uma encenação que não dispensa a esperteza do leitor.
Compreendida a maneira como Machado exerce a sua arte narrativa,
fácil foi a Caldwell duvidar ainda mais dos “mitos” criados em torno
de Dom Casmurro, incluindo o do pessimismo. Sabendo-se, ainda mais,
que Machado costumava guardar zelosamente fatos de sua biografia, e
que a obra de arte era para ele um objeto de Beleza, forçoso seria
concluir que a chave à compreensão de seus romances maiores estaria
antes nestes do que na sua vida.
Eis porque
Caldwell limitou sua investigação ao Dom Casmurro, apoiando-se,
porém, em Ressurreição, no qual Machado ensaiara já o grande tema do
amor frustrado pelo ciúme, no Esaú e Jacó, no Memorial de Aires e em
pequenos textos. Nessa busca, ela agiu etodicamente, qual detetive
da antiga ficção policial. Quase nada escapa ao seu pente fino.
Depois, vem o trabalho bem mais sutil de arrumar as pistas, casar
indícios, fazer com que entrem na moldura da lógica. Ao jogo
machadiano de insinuar, disfarçar e patentear indícios, Caldwell
responde com outro — uma espécie de reconstituição do "delito".
Uma das
evidências pró-Capitu: na crítica a O Primo Basílio, Machado
escreveu que a substituição do que é acessório pelo principal, a
transferência da ação, da natureza e sentimentos das personagens
para acontecimentos fortuitos, parecia-lhe incompatível, senão
contrária, com os princípios da arte. O lenço de Desdêmona tem muito
a ver com a sua morte, “mas a alma ardente e ciumenta de Otelo, a
perfídia de Iago e a inocência de Desdêmona — estes são os
principais elementos da ação”.
Pois bem, o
modelo da tragédia shakespereana estaria reproduzido em Dom
Casmurro, onde “o lenço de Desdêmona” seria a semelhança, ou
presunção de semelhança, de Ezequiel com Escobar. Seguindo a fórmula
de Machado para a ação dramática, Caldwell conclui, por
antecipação,que “o drama...está nas naturezas, paixões e condição
espiritual de Otelo-Santiago, Iago-Santiago e Desdêmona-Capitu; a
semelhança entre Ezequiel e Escobar não controla esses três
personagens, de cujas paixões flui a ação”. A partir daí, a
pesquisadora centra o seu interesse no narrador Santiago. Do
testemunho deste dependerá aquilo que se deseja comprovar. Do exame
acurado do texto infere-se, por fim, que Bentinho não tencionava
apenas, com o livro, atar as duas pontas de sua vida, mas se dirigir
a uma audiência maior, fustigado por uma consciência atormentada.
A resposta à
pergunta: por que Machado não julgou Santiago, preferindo entregá-lo
ao julgamento do leitor, Helen Caldwell intentou encontrá-la no
capítulo “O Panegírico de Santa Mônica”, um opúsculo cujo autor não
é mencionado no Dom Casmurro. Esquecimento involuntário num escritor
que escolhia cuidadosamente os nomes de suas personagens? Ou seria
mais uma “lacuna” proposital? O autor do “panegírico” seria o
próprio Machado, o anonimato sendo indispensável para não trair-lhe
o método narrativo. O amor de Santa Mônica converteu o marido
cabeçudo (eis aí um sinônimo perfeito para casmurro) e cruel ao
Cristianismo, e o filho indócil e namorador foi devolvido ao
rebanho. O amor de Capitu, ao contrário, não resgata Bentinho.
Segundo Helen Caldwell, “as obras de Machado de Assis, vistas como
um todo, formam um panegírico de Santa Mônica da mulher brasileira e
de todas as mulheres”.
Os autos desse
processo datam de l900 em nossa novelística. Os leitores continuam
divididos. Toda a defesa acima explanada parece plausível,
sensibiliza jurados. Minhas antipatias vão decididamente para o
austero (quem garante ?) Sr. Bento Santiago. Um homem que concorre
deliberadamente para o destino trágico da mulher e do filho, e é
capaz, na sua
reclusão do Engenho Novo, de comer bem, dormir bem e ir ao teatro,
deve esconder alguma coisa, quem sabe uma consciência pesada?
Mas o ciúme de
Bento é tão poderoso, tem uma força de persuasão tão grande... Um
demônio dentro de nós acaba por perguntar: e se ele contou a
verdade? E se ele foi sincero? Quem garante que Capitu e Escobar não
adulteraram? Estas indagações levam a outras do tipo: o que é a
verdade? O romancista José Saramago acaba de nos lembrar, em O
Evangelho Segundo Jesus Cristo, um fato elementar, quase sempre
despercebido: o conceito de Bem depende, para sua compreensão, da
existência do Mal. São faces da mesma moeda, o Bem e o Mal. De igual
forma, e por analogia, a Verdade e a Mentira estarão mais embebidas
uma na outra do que vulgarmente se crê. A verdade, mal começa a ser
enunciada, recebe o bombardeio da mentira, da qual não escapará sem
feridas; enquanto a mentira, por caminhos ínvios, deixa-se às vezes
penetrar pela verdade.
São
considerações válidas, pelo menos em relação à verdade ficcional —
ou seja, àquele poder supremo do criador, misto de verdade e
mentira, que arrasta o leitor e o desobriga de pensar. Machado de
Assis, com a sua ambigüidade, com a sua ambivalência, com o seu
poder de insinuar e sugerir, foi um bruxo na arte de armar
disfarçadamente tabuleiros e propor
jogos. Conforme lembrou Koestler, não há quem resista, desde os
albores da Humanidade, a uma proposta lúdica. Por isso o suposto
adultério de Capitu ainda incomoda. De outra maneira não
precisaríamos descobrir se ela é culpada ou inocente. A permanência
do enigma, a despeito dos exercícios acadêmicos de desmontagem do
romance, responde pela imortalidade
desta obra-prima universal de Machado de Assis.
Leia Machado de Assis
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