Jornal de Poesia

Psi, a Penúltima
A APARIÇÃO DA POESIA  

Gerardo Mello Mourão


          Vale sempre lembrar o verso do famoso poeta romeno, quando somos surpreendidos pela aparição da poesia que nos chega inesperadamente. 
Chega, não de onde se podia esperar, mas de onde tinha que vir. 
“Il nous vient perfois, d’un pays lointain...”, diz o verso famoso de Ilarie Voronca, ao descobrir a mera voz de um poeta que chega como o sopro de um vento novo e antigo até então insuspeitado. 

          Esta é a primeira impressão da poesia de Soares Feitosa, que entra pela sala e pela alma como um vento elementar. O poeta, de resto, vem de um país, as terras do Nordeste, do Siarah ou Ceará Grande, onde as pessoas convivem com os ventos e as pessoas afetuosamente lhes dão o nome próprio e os chamam por seus nomes. 

          Os  poetas, os  mestres da poesia, sabem que  “cantar é  nomear”.  É celebrar como sabia Rilke. E celebrar é dar o verdadeiro nome das coisas, dos lugares e das pessoas celebradas. 

          Pois no Nordeste, como os gregos que sabiam os nomes de seus ventos, seus bóreas e seus zéfiros, também sabemos os nomes de nossos ventos: o terral, o aracati, o graviúna e assim por diante.  

          O mundo está fundado sobre os nomes.  Assim acontece na história de Adão e na mitologia de ouro da teogonia de Hesíodo, quando os primeiros de nós saíram dando nomes aos seres, às árvores, aos rios, na fundação imemorial de nossas terras e de nossos céus. 

          Deus pode ter criado o mundo. Mas quem o arrancou do silêncio primitivo foi o primeiro homem, isto é, o primeiro poeta, ao pronunciar o nome de Eva ou de Deucalião, ao chamar por seus nomes as nuvens e as estrelas do firmamento e os riachos paradisíacos do primeiro dia. 

          Cantar é ser — ensinava ainda o poeta nos Sonetos a Orfeu. 

          Ser é saber a sua própria história. 

          O poeta é o contador de sua própria história, da história de seu ser e de seu existir. 

          E o ser e o existir são inseparáveis de tudo que nos cerca. 

          É preciso ter cuidado com os sentimentos. Gide lembrava que assim como o assoalho do inferno está forrado de boas intenções, segundo a advertência de Santo Atanásio, também a má literatura está cheia de bons sentimentos. 

          A coisa do poeta é o épos.  Ao fazer a história, a celebração dos dias e das noites, o sentimento não é matéria-prima do canto. Mas não está ausente na tessitura das fibras da expressão. Há que cercá-las com o sopro prodigioso que parte de dentro da aventura perigosa e fascinante do ser e do existir. 

          Pois aí está um poeta vero. O poeta Soares Feitosa, a quem conheço pelo nome — e basta o nome — e pelos espantosos poemas que me está enviando, compostos com recursos gráficos das prestidigitações eletrônicas, nos causa, de repente, aquele frisson noveaux que sempre traz a poesia verdadeira. 

          O poeta conta. Conta e canta. E canta e funda epicamente a memória lírica de nossas terras ainda quentes da mão de Deus. 

          Este país onde o sopro do espírito do Criador ainda está vivo no barro palpitante de nossa gente, país que se estende das solidões baianas do Raso da Catarina às Alagoas de Maceió, aos canaviais de Sergipe del Rey, às   Borboremas azuis das Elbas Ramalho, aos Beberibes e Capiberibes dos fastos e das lendas de Pernambuco, aos vales potiguares, aos Cariris e às Ibiapabas, aos Piauís reúnos e cavalheirescos, até onde chegaram as bandeiras da Casa da Torre, e ao país dos maranhotos, onde troaram os canhões dos piratas e as apóstrofes do Padre Vieira, e onde troa, pelas ruas de São Luís, a voz do poeta Nauro Machado. 

          É dessas fronteiras entre a eletrônica e a Grécia que nos chega a epopéia de Soares Feitosa, cearense do Recife; Recife, capital maior de nossas capitanias líricas, onde os Franciscos Brennand e os Gilbertos Freyre, como o poeta César Leal, testemunham, em prosa e verso e no barro amassado e temperado a fogo e tinta, a fundação da história de cada um de nós. 

          História que também vem sendo contada e cantada — o que é a mesma coisa — ao sol de Fortaleza, por um príncipe de afinação de cordas das violas d’amore, o poeta Artur Eduardo Benevides, pela tuba poderosa do poeta Francisco Carvalho ou pelo violão de meu saudoso amigo Otacílio Colares. E outros e outros e outros — que afinal isto é apenas uma notícia sobre Soares Feitosa. 

          Em seus poemas, o que está vivo é o Nordeste inteiro: o bode o cavalo o boi — o sentimento mortal — como no verso de outro poeta de nossa terra. 

          O mundo de Soares Feitosa é o mundo inteiro, porque é o mundo das Ipueiras, das Novas-Russas, dos Inhamuns, o mundo dos vestidos de chita das comadres, da batina e dos escorregões e das virtudes e das bravatas do vigário da paróquia. O mundo do padre-mestre, a quem conheci e que era um santo homem, mas que um dia resolveu casar, com medo da solidão da velhice.  Engano do padre santo. Ele nunca estaria só. Todas as vozes dos nossos aboios épicos e líricos estariam com ele. 

          Não estou aqui para fazer uma crítica nem um prefácio da poesia cosmogênica de Soares Feitosa. Eu não sei falar sobre poesia. Lembro-me sempre daquela história de Federico Garcia Lorca.   

          Convidado para falar sobre poesia — contou-me um dia Gerardo Diego, seu crítico e seu amigo —, o poeta limitou-se a estender as duas mãos abertas e dizer: 

           Yo no puedo, yo no sé hablar sobre poesia.    
           Yo la tengo aqui en mis manos, sé que está    
           quemando mi piel, pero no lo sé o que és.                                     
          Assim é a poesia universal deste poeta nordestino.  

          E digo universal, porque no Nordeste, mais do que nessas ricas metrópoles do Sul, somos seres universais. Sustentamos a identidade provincial de nossa raça, de nosso sangue e de nosso espírito inumerável. Somos os homens da provincialidade. E, por isso mesmo, não somos provincianos. 

          Provincianos são os outros, os que limitam o mundo à caverna platônica de suas fronteiras e ignoram os ventos que sopram pelos vales e pelas serras de outras sesmarias. 

          O poeta Soares Feitosa talvez até sem saber, como Lorca que não sabia o que era poesia, é um poeta de dimensão universal. 

          Canta a saga de nossas paróquias, de nossos vizinhos, de nossa aventura humana na pequena e brava gleba de nossa herança ontológica e existencial.   

          Mas o poeta se engana quando pensa que com seu canto nos deu o  circo e ficou com o pão. O que ele nos está dando nestes poemas é verdadeiramente o pão, o pão nosso de cada dia. O nutrimento maior, o nutrimento da poesia, mais forte do que a medula dos leões, de que se alimentavam os heróis de Homero. 

          De sua poesia, somos todos protagonistas e heróis e vítimas e testemunhas para sempre. 
  Rio de Janeiro, carnaval de 1994

      notas:
         ¹ - Padre Ignácio Américo Bezerra, poema Format Cê Dois Pontos. 
         ² - Padre Leitão, poema Padre-Mestre. 

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