Mário Quintana
Entrevista
concedida a Lau Siqueira
"Caros amigos,
em janeiro de 87, eu minha ex-mulher, jornalista e hoje professora
do Curso de do Curso de Comunicação da UFPB, estávamos em Porto
Alegre visitando minha família e resolvemos entrevistar o poeta
Mário Quintana que acabava de completar 80 anos.
A entrevista foi
publicada pelo Jornal O Norte, no dia 25 de janeiro de 1987. Aquele
momento, inegavelmente, foi um dos mais belos da minha vida. Além da
entrevista, gozamos momentos de extrema amabilidade por parte do
poeta. Segue aí a entrevista, na íntegra. Desculpem os prováveis
erros, já que a emoção se renova. A revisão fica, pois, por conta de
cada um. Minha intenção é, apenas, repartir essa exclusividade.
Certamente que há muito de ingenuidade em alguma perguntas, mas,
inegavelmente há uma riqueza na espontaneidade e na inteligência de
respostas reveladoras que valem a leitura. Nosso objetivo não era
construir um "quase ensaio" (como alguns panacas metidos) onde os
entrevistadores fossem as grandes estrelas diante de um
"entrevistado suporte", mas, apenas "bater um papo" descontraído com
um dos mais originais poetas da Literatura de Língua Portuguesa. Bom
proveito. Penso que temos aqui uma relíquia.
Há braços!
Lau Siqueira
Entrevista
concedida à:Joana Belarmino e Lau Siqueira em 16 de janeiro de 1987.
Mário Quintana:
A ABL virou um depósito de ministros
Aos 80 anos, o poeta está mais avesso à Academia
No verão, a
cidade de Porto Alegre vai nos envolvendo aos poucos, com suas
galerias, seus trombadinhas altivos... Às três da tarde, a Rua da
Praia ferve de gente. Na praça da Alfândega, protestantes com seus
discursos inflamados e um cego tocando música nativa em sua gaita,
disputam ouvidos indiferentes. Cinco da tarde, o sol ficou mais
fresco. Em alguma calçada da rua barulhenta, um velhinho caminha seu
passo lento. Parece distraído, parece ausente, mas... ele é todo
atenção aos ruídos, aos cheiros de pêssegos maduros e de jornais...
aos sotaques dos turistas argentinos, uruguaios ou nordestinos.
E se alguém o
surpreende de olhos fechados e comenta: "É o Mário Quintana, como
está velhinho"... não percebe que ele está se lembrando de outra
cidade, a Porto Alegre de sessenta, quarenta, oitenta anos atrás,
tão mais calma, com suas carrocinhas de leite nas portas.
Dedicamos uma
semana de nossas férias à Porto Alegre, quando voltávamos da
fronteira, mas, não tivemos a oportunidade de surpreender o poeta em
um de seus passeios. Fomos encontrá-lo no dia 16 de janeiro, no
hotel onde reside: Porto Alegre Residence. Munidos de gravador e com
as emoções todas saindo pelos poros, subimos ao oitavo andar e
pressionamos a cigarra do 805.
Mário tem
secretária. Ela disse que teríamos apenas meia hora para conversar
com o poeta. Ele nos chamou para o seu quarto e pediu cafés.
É alegre e
simples. Já não ouve muito bem, mas, pudemos constatar que ao longo
desses anos todos, vividos quase que exclusivamente para a poesia,
sua lucidez e um senso de humor incomparável se mantém inalterados.
Naquela meia
hora alongada por vontade do poeta, sob os protestos da sua
secretária, falou-se de poesia, de velhice, de Academia... entre
muitas risadas de dois deslumbrados entrevistadores e de um menino,
um velho, um sábio... sabemos lá!!!
Houve um tempo
em que Mário Quintana ficou sem ter onde morar. Foi quando o
expulsaram do hotel Magestic, no centro de Porto Alegre. Foi
despejado, uma vez que o jornal onde trabalhava (Correio do Povo)
tinha ido à falência. O poeta saiu e o hotel se transformou,
ironicamente, na famosa "Casa de Cultura Mário Quintana".
Às vezes, com
sua voz trêmula, ele faz pausas para se lembrar de palavras,
coordenar frases. A gente tem a impressão que está se gastando em
poesia. Poesia que ainda escreve diariamente, como se tivesse
pressa, ou como se quisesse aprender sempre.
"Eu sou um
eterno aprendiz de poeta e nunca soube fazer outra coisa na vida...
No quarto ano do colégio, eu fui reprovado porque só estudava
Português, Francês e História. O resto eu nem abria. Então meu pai
me fez trabalhar na sua farmácia como prático. Depois de cinco anos
fui fazer o que mais queria, trabalhar como jornalista no Jornal O
Estado do Rio Grande".
E Mário fugia de
tudo para perseguir a poesia. Publicou seu primeiro livro aos 34
anos, apesar de fazer versos desde menino. Desde então tem mantido a
média de dois ou mais livros por ano. Este ano deverá publicar: "Da
preguiça como método de trabalho" e "Preparativos para viagens".
Acabamos a
entrevista, os papos se alongaram... já íamos sair quando o poeta
nos mostrou um segredo: um painel de fotografias de Bruna Lombardi
na porta do seu quarto (lado de dentro, lógico!). Confessou que não
fica muito à vontade quando lhe pedem, freqüentemente, para falar de
sua relação com a atriz: "Que coisa chata, como é que eu vou
explicar uma amizade? Acho também que a amizade é um tipo de amor
que não acaba nunca".
P - Existe
alguma pergunta que os jornalistas sempre fazem e que você considera
chata?
R - Não. O que
existe é uma pedida chata. Há pessoas que dizem, por exemplo: "Seu
Mário, faz uma dedicatória bem poética pra mim... Olha, o que eles
entendem por poética me deixa horrorizado.
P - Quando foi
que a poesia entrou na sua vida?
R - Eu comecei a
fazer versos desde que me entendi por gente. Eu acho que ser poeta
não é uma maneira de escrever, é uma maneira de ser. Assim, como
nascem pessoas de olhos azuis ou pretos, nascem também os poetas.
Mas eu só publiquei mesmo o meu primeiro livro muito mais tarde. Os
poetas novos tem ânsia de publicar logo, eles deveriam esperar ficar
mais amadurecidos pela vida, não é? E assim, iriam amadurecendo
também o seu instrumento, que são as palavras. O poeta quando mais
velho tem tendência de ficar melhor, com o estilo mais depurado.
Viveu mais, não é?
P - Você acha
que Mário Quintana já está pronto, é um bom poeta?
R - Olha, eu sou
m eterno aprendiz. Porque o poeta que descobre uma fórmula, ganha
renome, não quer outra vida, e fica conversando com os amigos
sentado em cima do muro sem se espetar, esse está perdido, porque eu
acho que a poesia não é mais que a procura da poesia, como acho que
também Deus se resume na procura de Deus. Eu publiquei meu primeiro
livro aos 34 anos. Foi "A Rua dos Cataventos".
P - O que você
acha da velhice?
R - eu acho que
é uma pena. Só que eu queria ter nascido 40 anos antes, e não
oitenta anos antes (risos). Tudo isso eu já vivi, sabe? Quando o
diabo me chamar eu já estou pronto.
P - Você já
viveu oitenta anos. O que é que mudou em Porto Alegre desse período
pra cá?
R - Olha,
naturalmente o que mudou foi a arquitetura, não é? Eu vejo sempre
uma cidade dentro da outra e lembro aquela cidade antiga. Mas pra me
lembrar dela eu tenho que fechar os olhos 8risos). Porto Alegre,
antigamente, era muito mais calma. Não havia tantos assaltos, tanta
violência... eu nasci no tempo das vacas gordas. Antes, o leiteiro
deixava o leite na porta de casa e ninguém roubava. Hoje roubam até
as galinhas dos despachos. Os tempos mudaram, os costumes, mas a
vida continua a mesma. Eu não sou como aqueles velhos que dizem:
"Ah, os bons velhos tempos..." eu tenho vontade de dizer para eles:
"Olha seu moço... seu moço, não, seu velho. Os tempos são sempre
bons, o senhor é que não presta mais... (risos).
P - Você
continua a escrever poesia com freqüência? Publicará algum livro
este ano?
R - Olha, eu não
sei fazer outra coisa na vida. Este ano vou publicar dois livros: Um
diário poético, com pensamentos sobre cada dia. No dia universal da
mulher, por exemplo, eu escrevi o seguinte: " De cada dois gambás -
eu não sei se na Paraíba se usa a palavra gambá para se definir um
bêbado - um é porque nãop tem mulher e o outro é porque tem.
(risos).
P - Já se tentou
três vezes colocar o seu nome na Academia Brasileira de Letras e não
se conseguiu. Qual é, agora, a sua relação com a Academia?
R - As minhas
relações com a Academia foram sempre boas, eu sempre me dei com
gente de lá. Não estou dizendo que "as uvas estão verdes", mas, na
verdade eu nunca quis pertencer à Academia. O pessoal de mentalidade
futebolística não se satisfazia com apenas um nome gaúcho no time e
achavam que devia ter outro lá. Resolveram me candidatar. Quando me
candidataram da primeira vez, eu recebi o recado de um senador, que
estava tudo preparado para entrar o Portela, os votos já estavam
prontos e que eu deveria desistir... e eu disse para ele, por
telefone, que não haveria de desistir porque o pessoal iria pensar
que era covardia minha. E seria muita desconsideração de minha
parte. Aliás, eu não gosto de Academia e jamais quis pertencer a ela
porque a gente perde um tempo enorme recebendo visitantes
estrangeiros de valor muito suspeito. Se pensa que ser estrangeiro é
grande coisa, que se francês ou inglês é uma raridade e não é bem
assim. Depois, na Academia, se começa a discutir quem vai ser o
sucessor de quem, se recebe impressões de toda a parte para se votar
e eu acho que isso atrapalha a vida do camarada, não é? Eu acho que
ultimamente a Academia virou um depósito de ministros e com o perdão
de alguns amigos que eu tenho lá, um asilo de velhos. Mas eu não
tenho nada contra a Academia. De fato não há contradição minha em
lamentar que não tenha sido eleito porque eu tensionava fazer tudo
pela academia, se fosse eleito. Acho que, antes de tudo, ela deveria
ter muita gente jovem. Eu acho que já seria uma renovação e acabava
com aquela coisa. Na academia, já não gostaram muito de mim porque
doisa naos antes da minha candidatura eu tinha dito que a Academia
era uma espécie de sociedade recreativa e funerária (risos).
P - Como é o
dia-a-dia de Mário Quintana?
R - Bem, eu
acordo de manhã, vivo de dia e durmo de noite. Não tem nada de
especial. Eu escrevo, ando, visito amigos...
P - Mário, cita
dois ou três poetas brasileiros que você considera bons.
R - Olha, eu não
gosto de citar. Eu só citarei um para evitar, depois, emissões
inadvertidas ou divertidas. Eu citarei o Carlos Drummond de Andrade
que é um dos poetas mais complexos do nosso País.
P - Mário, você
fala muito do amor nos seus poemas. Mas, você não se casou, não teve
filhos. Como explica isso?
R - Talvez
porque não tenha tido tempo. Eu andei muito. Antes eu trabalhava em
Alegrete, cidade onde nasci. Ali fui prático de farmácia. Mas quando
estava esquentando uma coisa eu mudava para outra. No quarto ano do
colégio eu fui reprovado porque só estudava Português, Francês e
História. O resto eu nem abria e um dia meu pai disse: "Olha, você
não quer estudar. É uma pena, mas, vagabundo não te quero. Vais
trabalhar na minha farmácia. " E eu fui prático de farmácia por
cinco anos. Depois quando ele faleceu, eu fui fazer a única coisa
que eu gostava: fui trabalhar de jornalista no Estado do Rio Grande.
Quando as coisas estavam esquentando de novo o Governador mandou
fechar o Estado do Rio Grande. Era o Flores da Cunha. Ele era um
velho caudilho risos). Aí fui trabalhar na Gazeta de Notícias, no
Rio. Isso em 1936. Estive lá dois anos e aí fui trabalhar na
Livraria do Globo. E sempre andando de um lado para o outro. E aí
não tive tempo. Como é que vou saber porque é que não casei. Deve
ter sido por causa dos astros, né? Vamos culpar os astros (risos).
P - (Joana) -
Casou com a poesia?
P - (Lau) - Não,
a poesia não é um casamento. É um caso, não é?
R - Ah... a
poesia é um caso mesmo!
P - Quantos
livros você traduziu?
R - Eu traduzi
para a Livraria do Globo, cento e trinta e oito livros. No tempo em
que eu era criança, o francês era moda e a minha mãe era professora
de francês. Então, quando a gente, por exemplo, não queria que os
empregados soubessem o que a gente estava dizendo, aí se falava em
francês. Grande parte da revolução de 23, por exemplo, foi preparada
em francês, porque se reuniam as senhoras dos oficiais para tomarem
chá e comunicavam as coisas todas em francês. Imagine que na minha
terra, em Alegrete, se fez revolução em francês. Que barbaridade!
Naquele tempo as comunicações com a Europa eram bem mais fáceis que
hoje. A França era a capital literária do mundo. Eu, quando estava
na farmácia do velho, tinha conta numa livraria francesa. Eles
mandavam os boletins e eu encomendava. Tudo vinha direto de Paris
para Alegrete.
P - Que recado
você vai mandar para os paraibanos?
R - Ah, eu quase
fui morar na Paraíba. Porque eu servi na revolução de trinta e
quando houve aquela batalha de Itararé (que não houve) eu estava na
cidade de Rio Branco, no norte do Paraná. Aí se chegou a um acordo e
o tenente, que era da Paraíba, me ofereceu o cargo de
tenente-contador. Mãe eu disse pra ele que não pretendia ser
soldado, nem prosseguir no serviço militar porque preferia voltar
para o Sul. Isso aí por um lado foi bom, não é? Porque depois houve
um golpe na Paraíba, imagine, eu poderia ter morrido... (risos)
Um poema de Mário:
Os antigos retratos de parede
Não conseguem ficar longo tempo abstratos.
Às vezes os seus olhos te fixam, obstinados
Porque eles nunca se desumanizaram de todo.
Jamais te voltas para trás de repente.
Não, não olhes agora!
O remédio é cantares cantigas loucas e sem fim...
Sem fim e sem sentido.
Dessas que a gente inventava para enganar a
Solidão dos caminhos sem lua.
(do livro
"Esconderijos do Tempo - composto após os 70 anos de idade)
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