Biografia:
Na noite de segunda-feira,
17 de dezembro de 1990, o escritor Rubem Braga reuniu um pequeno grupo
de amigos, cada vez mais selecionados por ele, na sua cobertura em Ipanema.
Foi uma visita silenciosa, mas claramente subentendida pelos amigos Moacyr
Werneck de Castro, Otto Lara Resende e Edvaldo Pacote. Às 23h30
da noite de quarta-feira, sedado num quarto do Hospital Samaritano, Rubem
Braga morreu, sozinho como desejara e pedira aos amigos.
A causa da morte foi uma
parada respiratória em conseqüência de um tumor na laringe
que ele preferiu não operar nem tratar quimicamente. Rubem Braga,
considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis,
nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913. Iniciou
seus estudos naquela cidade, porém, quando fazia o ginásio,
revoltou-se com um professor de matemática que o chamou de burro
e pediu ao pai para sair da escola. Sua família o enviou para Niterói,
onde
moravam alguns parentes,
para estudar no Colégio Salesiano. Iniciou a faculdade
de Direito no Rio de Janeiro,
mas se formou em Belo Horizonte, MG, em 1932,
depois de ter participado,
como repórter dos Diários Associados, da cobertura da Revolução
Constitucionalista, em Minas Gerais -- no front da Mantiqueira conheceu
Juscelino Kubitschek de Oliveira e Adhemar de Barros.
Na capital mineira se casou,
em 1936, com Zora Seljan Braga, de quem posteriormente se desquitou, mãe
de seu único filho Roberto Braga. Foi correspondente de guerra do
Diário Carioca na Itália, onde escreveu o livro "Com a FEB
na Itália", em 1945, sendo que lá fez amizade com Joel Silveira.
De volta ao Brasil morou em Recife, Porto Alegre e São Paulo, antes
de se estabelecer definitivamente no Rio de Janeiro, primeiro numa pensão
do Catete, onde foi companheiro de Graciliano Ramos; depois, numa casa
no Posto Seis, em Copacabana, e por fim num apartamento na Rua Barão
da Torre, em Ipanema. Sua vida no Brasil, no Estado Novo, não foi
mais fácil do que a dos tempos de guerra. Foi preso algumas vezes,
e em diversas ocasiões andou se escondendo da repressão.
Seu primeiro livro, "O Conde e o Passarinho", foi publicado em 1936, quando
o autor tinha 22 anos, pela Editora José Olympio. Na crônica-título,
escreveu: "A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não
pretender ser conde." De fato, quase tanto como pelos seus livros, o cronista
ficou famoso pelo seu temperamento
introspectivo e por gostar da solidão.
Como escritor, Rubem Braga
teve a característica singular de ser o único autor
nacional de primeira linha
a se tornar célebre exclusivamente através da crônica,
um gênero que não é recomendável a quem almeja
a posteridade.
Certa vez, solicitado pelo
amigo Fernando Sabino a fazer uma descrição de si
mesmo, declarou: "Sempre
escrevi para ser publicado no dia seguinte. Como o
marido que tem que dormir
com a esposa: pode estar achando gostoso, mas é
uma obrigação.
Sou uma máquina de escrever com algum uso, mas em bom estado
de funcionamento."
Foi com Fernando Sabino e Otto Lara Resende que Rubem Braga fundou, em
1968, a editora Sabiá, responsável pelo lançamento
no Brasil de escritores
como Gabriel Garcia Márquez,
Pablo Neruda e Jorge Luis Borges. Segundo o crítico Afrânio
Coutinho, a marca registrada dos textos de Rubem Braga é a "crônica
poética, na qual alia um estilo próprio a um intenso lirismo,
provocado pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados
de alma, pelas pessoas, pela natureza."
A chave para entendermos
a popularidade de sua obra, toda ela composta de
volumes de crônicas
sucessivamente esgotados, foi dada pelo próprio escritor: ele gostava
de declarar que um dos versos mais bonitos de Camões ("A grande
dor das coisas que passaram") fora escrito apenas com palavras corriqueiras
do idioma. Da mesma forma, suas crônicas eram marcadas pela linguagem
coloquial e pelas temáticas simples.
Como jornalista, Braga exerceu
as funções de repórter, redator, editorialista e cronista
em jornais e revistas do Rio, de São Paulo, Belo Horizonte, Porto
Alegre e Recife. Foi correspondente de "O Globo" em Paris, em 1947, e do
"Correio da Manhã" em 1950. Amigo de Café Filho (vice-presidente
e depois presidente do Brasil) foi nomeado Chefe do Escritório Comercial
do Brasil em Santiago, no Chile, em 1953. Em 1961, com
os amigos Jânio Quadros
na Presidência e Affonso Arinos no Itamaraty, tornou-se Embaixador
do Brasil no Marrocos. Mas Braga nunca se afastou do jornalismo. Fez reportagens
sobre assuntos culturais, econômicos e políticos na Argentina,
nos Estados Unidos, em Cuba, e em outros países. Quando faleceu,
era funcionário da TV Globo. Seu amigo Edvaldo Pacote, que o levou
para lá, disse: "O Rubem era um turrão, com uma veia extraordinária
de humor. Uma pessoa fechada, ao mesmo tempo poeta e poético. Era
preciso ser muito seu amigo para que ele entreabrisse uma porta de sua
alma. Ele só era menos contido com as mulheres. Quando não
estava apaixonado por uma em particular, estava apaixonado por todas. Eu
o levei para a Globo... Ele escrevia todos os textos que exigiam mais sensibilidade
e qualidade, e
fazia isto mantendo um grande
apelo popular.
Poemas de Rubem Braga
Remetidos por
Jacqueline
Guimaraes Ferreira
“O que ele nos conta
é o seu dia, o seu expediente de homem, apanhado no essencial, narrativa
direta e econômica. Sua novidade perene está nessa adesão
ao vivo, sonho e alienação. É o poeta do real, do
palpável, que se vai diluindo em cisma. Dá o sentimento da
realidade e o remédio para ela”
Carlos Drummond de Andrade |
POETA CRISTÃO
A poesia anda mofina,
Mofina, mas não morreu.
Foi o anjo que morreu:
Anjo não se usa mais.
Ainda se usa estrela
Se usa estrela demais.
Poeta religioso
Mocinha não pode
ler:
Pecará em pensamento,
Que o poeta gosta do Novo,
Mas pilha seus amoricos
É no Velho Testamento.
Ai, o Velho Testamento!
Eu também faço
poema,
Ora essa, quem não
faz:
Boto uma estrela na frente
E um pouco de mar atrás.
Boto Jesus de permeio
Que Deus, nos pratos de
amor,
É um excelente recheio.
E isso bem posto e disposto
Me vou aos peitos da Amada:
Sulamita, Sulamita,
Por ti eu me rompo todo,
Sou cavalheiro cristão.
Minh’alma está garantida
Num rodapé do Tristão
E o corpo? O corpo é
miséria,
Peguei doença, mas
Jorge
de Lima dá injeção!
O badalo está chamando,
Bão-ba-la-lão.
Amada, não vai lá
não!
Eu também tenho badalos
–
Bão-ba-la-lão
Eu sou poeta cristão!
(Rio, maio, 1940)
AQUELA MULHER
O médico
me levou até o elevador.
Quando cheguei
à rua
Sabia que já
não estava condenado a morrer.
Mas as horas
de perigo, de certeza da morte,
De preparação
para a morte,
As horas da
morte ainda batiam dentro de mim.
Nessas horas
a vida recuara ante meus olhos,
Cheia
De suas fascinações,
tristezas e ternuras,
Estava orgulhoso
de mim mesmo.
De meu pensamento
viril diante da morte,
Da força
de meu ódio aos inimigos que eu pensara em matar antes de morrer.
Do amor, do
grande e comovido amor
Com que eu
me despedia em silência de vós, almas queridas,
Almas queridas
a que jamais servi bem.
Ia pela rua,
mas ainda ia a meu lado
A sombra sem
terror mas inapelável
Da morte.
Foi então
que passou a desconhecida mulher
Abençoada
eternamente seja essa mulher!
Uma alta, bela,
desconhecida mulher
Que andava
com seu andar de desconhecida mansa
Seus finos
cabelos negros brilhavam ao sol
E seus olhos
eram claros como a vida que renascia.
No seu corpo
havia a doce dignidade essencial
Que é
a marca suprema da beleza na mulher.
Eu a fitei,
eu detive os seus olhos com os meus,
Foi apenas
um segundo.
Ela não
desviou os seus,
Apenas continuou
na sua marcha mansa
Não
sentiu nos meus olhos a aflição deslumbrada
A ansiosa descoberta,
a impressão de milagre
Nos meus olhos
ressucitados que saudavam
E abençoavam,
abençoavam ardentemente sua natureza de mulher.
Eu estava tão
sólido em face da morte,
De minha morte,
de minha obscura morte,
Estava tão
sólido, firme, bem plantado e certo
Perante a morte
– e agora
Era como se
a vida como alta onda desabasse
Sobre mim,
e num instante
Senti toda
a sua força furiosa, o desespero, a beleza,
A ânsia
que não tem fim, a sede, a dolorosa
Exaltação
que sempre foi a vida para mim,
A tonteira
cruel, a coragem, a promessa
O que ela me
dá, o que tomo, o que roubo,
O que espero,
e tudo, tudo o que eternamente desespero.
Senti-me fraco,
miserável, diante da vida,
À mercê
da sua força inelutável, da atração
Cruel com que
me chama todo dia.
Senti a sua
exasperante incerteza,
Senti num instante
toda a sua longa, longa,
Mortificante
melancolia.
Fazia sol na
rua.
Dois homens
pararam me olhando. Eu olhava
Longe – com
meu olhar ressuscitado
Que de longe,
muito longe, ainda
Abençoava
aquela mulher.
(São
Paulo, 1941)
SONETO
E quando nós saímos
era a Lua,
Era o vento caído
e o amr sereno
Azul e cinza-azul anoitecendo
A tarde ruiva das amendoeiras.
E respiramos, livres das
ardências
Do sol, que nos levara à
sombra cauta
Tangidos pelo canto das
cigarras
Dentro e fora de nós
exasperadas.
Andamos em silêncio
pela praia.
Nos corpos leves e lavados
ia
O sentimento do prazer cumprido.
Se mágoa me ficou
na despedida
Não fez mal que ficasse,
nem doesse –
Era bem doce, perto das
antigas.
(1947)
AO ESPELHO
Tu, que não foste
belo nem perfeito,
Ora te vejo (e tu me vês)
com tédio
E vã melancolia,
contrafeito,
Como a um condenado sem
remédio.
Evitas meu olhar inquiridor
Fugindo, aos meus dois olhos
vermelhos,
Porque já te falece
algum valor
Para enfrentar o tédio
dos espelhos.
Ontem bebeste em demasia,
certo,
Mas não foi, convenhamos,
a primeira
Nem a milésima vez
que hás bebido.
Volta portanto a cara, vê
de perto
A cara, tua cara verdadeira,
Oh Braga envelhecido, envilecido.
(1957)
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