Raul de Carvalho


Perdão

I

Regresso à minha terra; andei perdido... Chamem-me réprobo, ignaro, o que quiserem... Sou como o pássaro que, depois de ferido, Que Deus lhe dê a campa que lhe derem... Não olho altares, não rezo, não ajoelho, Mas em minha alma a comoção dorida De quem volta de longe, de bem longe..., E encontra à sua espera toda a sua vida... Ouço as primeiras falas que empreguei, Vejo as primeiras luzes que enxerguei, Amo as primeiras coisas que dei O amor que Deus pôs em quanto amei... E trago tudo junto, aqui, no peito Neste albergue de vozes, gentes, passos, Lúgubre às vezes, soalhento às vezes, E tanto, tanto meu, que lhe criei o gosto Verdadeiro de quem ama e já não chora Porque o chorar passou... a despedida Melhor que um poeta pode dar à Vida É despedir-se dela num sorriso: Talvez num beijo... Talvez numa criança Que o mundo, ao largo mundo vem mandada Por seus pais que a criaram, sua terra que a viu Quando ela foi por Deus nada e criada... Agora temos tempo de fartura (Quer faça sol ou vento, ou entristeça A minha mente, e a minha voz se esqueça...) De ir cantando de novo, à aventura... À aventura dos limos e das seivas, Das secas e dos montes, dos moinhos, Dos pais que não se fartam de sentir A dor sublime de ver crescer os filhos... Terra de alqueives, ou monda, ou de pousio, Terra de largos trigueirais ao sol, — Quem vos mandou contaminar-me, E para sempre, do vosso resplendor?... Poalha luminosa, mas agreste; Folha de zinco em brasa; imensidão; A toda a volta — Tanto em vós como em mim — Implantou Deus a solidão. Solidão! de hastes curvas no silêncio Que dá a volta inteira à terra inteira, Solidão que eu invoco como se Vos conhecesse pela primeira vez!... Subo os degraus a medo; páro e ouço... O que ouço eu? a voz dos sinos? minha mãe? É com palavras simples e em segredo Que eu beijo a terra onde nasci também, Bernardim, Florbela, meu louco e bom Fialho, Meus irmãos de pobreza, e solidão, e amor preso, Aqui vos trago o que hoje tenho: Um coração Sofredor como o vosso, e como o vosso ileso! Ó planície de alma! ó vento sem ser vento! Ó ásperas vertentes ao nascente; Ó fontes que estais secas, ó passeios Da minha mágoa adolescente... Como eu vos quero ainda! como eu sinto Que tudo o mais é tédio e é traição... Pode-se amar tudo na Vida, mas Nunca se pode trair o coração. Dele nos vem, mais tarde a confiança. Do coração nos sobe, um certo dia, Uma satisfação que já não pode Sequer chamar-se-lhe alegria. E todavia tanta... A de sabermos Que ainda em nós se ergue e não distrai A casa da esquina onde nascemos... A torre que dá horas e não cai...

II

Peço perdão a Deus de ter voltado Mais pobre e mais feliz: mais perdoado!

III

Voltei à minha terra; aqui faz sol!

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