Ronaldo Cagiano
A Poética da Consciência e do
Combate
Das muitas leituras que podemos
fazer da obra de Salomão Sousa, poeta goiano radicado em Brasília,
duas me parecem significativas: a poesia de consciência e a
escritura de combate; sem sombras nem rodeios. São duas linhas muito
bem estruturadas no trabalho desse autor de A Moenda dos Dias, O
Susto de Viver, Falo, Criação de Lodo e Caderno de Desapontamentos.
Buscando sacudir as consciências
nesse universo de alheamento e passividade em que a poesia moderna
se encurralou, a palavra-chave na arte de Salomão é a transgressão.
Transgressão que intenta retomar o sentido exato da construção
poética, além dos clichês líricos e confessionais. Pois a literatura
de Salomão Sousa funciona com toda eficácia, como instrumento de
resistência, de libelo, mas não sob a ótica panfletária, de
engajamento político ortodoxo, senão de explicitação do caos
instalado, para realizar, então, o exorcismo dos fantasmas que
subvertem a criação moderna, quando a pulverização das mass media e
os condicionamentos alienantes de uma cultura impingida goela abaixo
pelos cânones neoliberais disseminam uma saraivada de influências
perversas.
Salomão Sousa vai fundo com suas
incisões poéticas; numa precisão cirúrgica, desmantela certos
valores enquistados na máquina do tempo através de uma linguagem
muito particular, sem porosidade. Se de um lado economiza discursos
laudatórios e defende a síntese objetiva, de outra feita rejeita o
bom-mocismo do estilo politicamente correto, porque pretende — e
isso é fundamental em seu exercício — modificar, sacudir, e como um
Titã vislumbra nessa rebeldia um novo estágio, em que a palavra deve
apenas não ser lida, mas sentida e compreendida em toda sua extensão
e significado. É isso mesmo: a poesia de Salomão, ao permitir tantas
(re)leituras, incomoda porque refulge através de uma explicação
dolorosa das coisas que se passam em torno de nós. Não há
possibilidade de sair ileso, indiferente, sem um insight de sua
vasta formulação poética.
Outra característica na obra de
Salomão Sousa é o vezo de sinceridade, de flecha certeira contra a
mediocridade e os medíocres, com que ele tece sua crítica literária,
sua ensaística, sua expressão de anuência ou desaprovação a obras e
autores. E o faz (seja em encontros literários ou através do Chuço,
voz candente que exprime sua vasta relação com as tribos culturais
do País) com um pungente espírito estético, com abordagens
profundas, sem concessões ao mau gosto ou liberalidades
conformistas. Ofício que é fruto de um espírito de coerência, de
respeito à leitura e ao leitor, porque, como todo formador de
opinião, sabe da responsabilidade da pena que recomenda ou que
rejeita, hoje algo tão ausente nos jornais, sobretudo em Brasília,
quando as redações estão infestadas de "comunicólogos de
carteirinha", no dizer de Cassiano Nunes.
A análise da obra de Salomão Sousa
nos permite situá-la não só no contexto brasiliense, mas nacional.
Seu nome vem se firmando sem dificuldades, porque é signatário de
uma poesia inovadora, sem as camisas de força estilísticas, arejada,
original, portanto moderna. Moderna, sim, porque mantendo empatia
com a contemporaneidade, e em meio ao cipoal das (in)tensas relações
desse mundo de rápidas transformações, com seus escalonamentos de
códigos, totens e valores, consegue dar o pulo e amadurecer cada vez
mais. Uma confecção poética que transita nos vários territórios, mas
de feições nitidamente críticas, fazendo uma espécie de sintaxe
permanente do mundo, a partir de uma visão não dogmática, mas
dialética de todas as coisas.
O poeta Salomão Sousa tem plena
consciência de que a criação é exercício de liberdade e leva às
últimas conseqüências essa via do espírito inquieto, tal como se
adotasse aquele sentimento já exposto por Mário Benedetti: "Só
quando transgrido alguma ordem, a vida se torna respirável." É mais
ou menos isso o que precisa ser a leitura e é isso o que percebemos
nos livros desse poeta goiano que traz em si o itabirano "sentimento
do mundo', e que, apesar de deixar escapar, como Drummond, um certo
descontentamento com o que se passa por aí, é capaz de marejar os
olhos diante da rosa que nasce no asfalto, porque ela diz mais que
as bombas na Bósnia e tem mais eficácia que a maioria dos imbecis
que ditam as normas por aí.
A arte consiste nisso: nunca estar
contente — já proclamou Jules Renard. Nesse bom caminho está a
poética de Salomão, para quem a literatura é um combate altivo, uma
obsessão pela interpretação do que é sagrado e profano em nossa
condição. No epicentro de sua obra há lugar não só para o grito
cortante, filosófico e severo, mas um espaço psicológico, espiritual
e catártico, que nos permite, simbioticamente, fazer um denso juízo
de valor de tudo que nos incomoda, com a perfeita conciliação dos
opostos da vida. Aí reside a vitalidade de sua obra, que já atingiu
um nível de maturidade e expressão, inserindo-se, sem favor algum,
no rol dos bons poetas do Brasil.
Leia a obra de Salomão Souza
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