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Rodrigo Gurgel

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Rodrigo Gurgel

 

Sinapses: bases da criação literária

I

        Em recente entrevista publicada no Clarín1, de Buenos Aires, o ensaísta George Steiner revelou, dentre outras, suas interrogações sobre o processo de criação da obra de arte: "Sempre procurei entender onde está o segredo, qual é o mistério da poiesis (criação e poesia), e como, inclusive, a maior inteligência crítica ou analítica pertence a outra classe, diferente daquela do criador. Como funciona a explosão de sinapses cerebrais durante a criação, não o sabemos. Alguns psicólogos e cientistas cognitivos crêem que resolveram o problema. Eu me mantenho cético..."
        De fato, o processo através do qual um impulso nervoso passa de uma célula cerebral a outra - o que recebe o nome de sinapse -, é uma das descobertas que colocam o homem na soleira dos meandros do cérebro2. Os neurônios estão permanentemente conversando entre si, criando conexões inusitadas a cada milésimo de segundo e, portanto, se excitados da maneira correta, podem produzir, através de milhões de sinapses, idéias geniais. O próprio George Steiner dá um exemplo: "O pequeno Paul Klee, aos seis anos, saiu numa excursão com sua escola; a professora disse-lhes que desenhassem um aqueduto, um tema muito maçante. Todos os meninos desenharam um aqueduto, mas Paul Klee colocou um sapato em cada coluna: o aqueduto caminhava."
        Numa explicação resumida e fria, que, evidentemente, não dá conta de toda a profusão de estímulos presentes no cérebro do menino artista, os neurônios de Klee - estimulados pela ordem da professora, pela visão do aqueduto e por milhões de outras informações que jamais conseguiremos determinar - transmitiram, por meio de impulsos nervosos, certos sinais codificados que, graças aos neurotransmissores, passaram de uma célula a outra, criando as conexões que tornaram possível o ato de abstrair a imagem do aqueduto e, num átimo, imaginá-lo calçando sapatos.
        O mais curioso, no entanto, é que a transmissão de informações de um neurônio a outro ocorre quimicamente, pois há um mínimo espaço vazio entre ambos, a chamada fenda sináptica. A ciência afirma que os neurônios jamais se tocam.
        A sinapse, essa transmissão ou diálogo permanente, que promove milhões de mudanças, sentimentos, dúvidas e decisões em nossos cérebros - um processo através do qual uma informação transforma-se de impulso elétrico em impulso químico e, novamente, num outro neurônio, em impulso elétrico -, guarda o segredo da criação artística.
        Imaginar que as informações nadam de um neurônio a outro, em meio a bilhões de outras mensagens, e que, caso recebam o estímulo adequado, podem, ao invés de se perderem, produzir obras geniais, concede, ao conhecimento desse incrível processo, a qualidade de uma aventura num universo ainda por demais obscuro para o homem, apesar de ocorrer em seu próprio interior.
        Mas não são apenas os cientistas que se debruçam sobre tais enigmas. A angústia por se descobrir os tortuosos caminhos da criação tem influenciado, inclusive, muitos poetas. E, ao tentarem explicar as razões que os motivaram a escrever, muitos o fizeram através da poesia.
        Rosalía de Castro (1837-1885), a figura mais importante da poesia galega do século XIX, deixou um poema sutil, em cujo lirismo ela tangencia as raízes do processo criativo:

Cantiga3

Eu cantar, cantar, cantei;
a graça não era muita,
pois nunca por meu pesar,
fui eu menina graciosa.
Cantei como foi possível,
dando voltas e mais voltas
assim como quem não sabe
perfeitamente uma cousa.
Porém depois de mansinho
e um pouco mais alto agora,
fui soltando essas cantigas
como quem não quer a cousa.
Eu bem quisera, é verdade,
que elas fossem mais bonitas;
(...)
Isto e ainda mais quisera
dizer com língua graciosa;
mas onde a graça me falta,
o sentimento me sobra.
Entretanto isto não basta
para explicar certas cousas
que, às vezes, por fora um canta
enquanto por dentro chora.
Não me expliquei qual quisera:
sou de pouca explicação;
se graça em cantar não tenho,
o amor da terra me afoga.
Eu cantar, cantar, cantei,
a graça não era muita,
mas que fazer - desgraçada! -
se não nasci mais graciosa.

         O poema fala sobre a sua própria gênese, quer explicar-se e, contudo, parece esbarrar numa dificuldade intransponível. Semelhante a um animal que se enrola em si mesmo ou uma serpente que morde a própria cauda, os versos vão e voltam sem conseguir alcançar seu intento: descerrar o processo criativo. Mas o poema nasce, ainda que num ritmo triste, dessa mesma insatisfação.
        O jesuíta inglês Gerard Manley Hopkins (1844-1889) conseguirá aproximar-se mais do estalo sináptico:

A R.B.4

A alegre luz que gera a idéia, a força pura,
Viva e voraz, como uma chama de estopim,
Brilha uma vez mas dura pouco, e ainda assim
À mente muda em mãe de um canto que perdura.

Nove meses, ou mais, nove anos ela o apura
E dentro o gesta, gasta, gosta e alenta, enfim:
Viúva de uma visão perdida, vive; com seu fim
Sabido, a mão perfaz, nunca mais insegura.

Fogo maior, senhor da musa - uma só graça
Pede meu ser: o arroubo de uma inspiração.
Mas, se por minhas lentas linhas já não passa

A vaga, o vôo, a voz, o canto, a criação,
Meu mundo-inverno, onde esse júbilo não grassa,
É, com alguns suspiros, nossa explicação.

A labareda da inspiração é fugaz, mas concede à mente a energia para fazer brotar o poema. O cérebro o embala por um tempo indefinido, até estar seguro de que a idéia foi moldada perfeitamente. À sinapse, no caso de Hopkins, segue-se um longo processo de maturação, angustioso, sem qualquer alegria, ao qual o poeta dá o nome de "mundo-inverno".
        A impressão final é de que o escritor nunca tem absoluta consciência dos seus processos criativos ou do real valor das suas idéias, por mais originais que elas sejam. Ele simplesmente cria, cegamente, impulsionado por uma energia interior, uma força indefinida, um complexo ou uma neurose, algo que o faz expressar-se, nestes casos, através da escrita. Com a arte, ele busca, tem a ilusão, pretende criar uma realidade paralela à vida. E, de fato, momentaneamente, o faz, residindo aí a catarse que o salva de suas próprias dúvidas, insatisfações ou angústias. Há, certamente, muito de acaso nessa seqüência de acertos felizes que, por fim, formam uma obra fadada a permanecer como referência ou exemplo. Edmund Wilson cunhou uma bela analogia para explicar tal seqüência: "As novas anomalias e acidentes da vida constantemente sendo assimilados pela faculdade artística - imediatamente tomados e incrustados, tornados simétricos e iridescentes, como a pérola da ostra - até que, quando as ostras morrem e só resta sua obra, os anais da espécie humana parecem ser não uma sucessão de mortes, e sim um colar de pérolas."5
        Certamente, quando se trata da produção artística, parecerá a alguns um sortilégio falar em acaso. Mas creio não existir uma expressão melhor para definir a coincidência entre estímulos exteriores, experiência acumulada, sinapses e reflexos estéticos. O poeta Wystan Hugh Auden (1907-1973), por exemplo, relata6 ter começado a escrever poesia "porque numa tarde de domingo, em março de 1922, um amigo me sugeriu que o fizesse. A idéia jamais me ocorrera. Conhecia pouquíssimos poemas (...) e tinha pouco interesse na chamada Arte Literária. (...) Naquela ocasião, a sugestão de que eu escrevesse poesia parecia uma revelação do céu, pois nada em meu passado justificava tal curso."
        Em outro ensaio7, Auden cita um curioso exemplo, extraído de uma carta de Rossini a Louis Engel: "Quando escrevia a parte do coro em sol menor, sem querer enfiei a pena no vidro de remédio ao invés do tinteiro; fiz um borrão e, quando sequei a tinta com areia a mancha assumiu a forma de uma nota natural. Então, imediatamente, ocorreu-me o efeito que teria a mudança de sol menor para sol maior. Àquele borrão, todo - e qualquer - efeito se deve."
        Alguns prefeririam dizer que a mão de Rossini foi guiada por uma outra Mão, uma entidade maior, talvez sagrada, à qual poderíamos chamar de Destino, Providência Divina ou, simplesmente, Deus. No entanto, devemos a solução encontrada por Rossini ao acúmulo de conhecimentos e experiências que ele detinha naquele momento e, sobrepondo-se a tal somatório, primeiro, à feliz proximidade entre o tinteiro e o vidro de remédio, e, depois, às sinapses que, nascidas do ato de ver o borrão, provocaram a idéia de fazer a mudança de sol menor para sol maior. Nada mais.
        De fato, a experiência armazenada na memória parece ser um fator excitante ou potencializador das sinapses. Ao analisar o princípio de sua produção literária, Auden relata que, olhando retrospectivamente, recorda-se de, desde sempre, ver as palavras de uma forma muito pessoal: "(...) Lia a prosa tecnológica de meus livros favoritos de uma maneira peculiar. Uma palavra como pyrites (pirita de ferro), por exemplo, não possuía, para mim, simplesmente um único conteúdo significativo; era também o nome próprio de um Ser Secreto, de modo que quando ouvi uma tia pronunciar pirrits (em vez de páirits), fiquei chocado. A pronúncia era mais do que errada; era feia. A ignorância era ímpia."8 Há, portanto, antecedendo a toda criação, um pré-requisito, um dado pessoal, único e intransferível, ao qual poderíamos denominar de senso estético, e que parece reformular-se e rever-se permanentemente, na exata medida em que novas sinapses ocorrem, recriando tentativas, possibilidades, urgências e motivações, todas elas passíveis, contudo, de serem experiências infrutíferas ou erros.
        Revendo o arcabouço de casualidades que o levariam a transformar-se em poeta, Manuel Bandeira relata9 que, na meninice, quando escrevia alguns versos, "era com o mesmo espírito desportivo com que me equilibrava sobre um barril lançado a toda força das pernas, o que de modo nenhum me fazia sentir com vocação para artista de circo." Anos depois, vindo a São Paulo para matricular-se na Escola Politécnica, pois desejava tornar-se arquiteto, ele não imaginava que os fatos acabariam por redirecionar sua vida: "Pensava que a idade dos versos estava definitivamente encerrada. Ia começar para mim outra vida. Começou de fato, mas durou pouco. No fim do ano letivo adoeci e tive de abandonar os estudos, sem saber que seria para sempre. Sem saber que os versos, que eu fizera em menino por divertimento, principiaria então e fazê-los por necessidade, por fatalidade."
        O que Bandeira chama de "fatalidade" é apenas o conjunto de infelizes coincidências que o fizeram contrair tuberculose em 1904, e forçaram-no a exilar-se , entre 1913 e 1914, no sanatório suíço de Clavadel. Do ano em que o poeta adoece até 1917, quando publica seu primeiro livro, A Cinza das Horas, é que se dará a etapa decisiva e a inusitada gestação de um dos maiores escritores da língua portuguesa.
        Treze anos de hesitações, buscas, leituras, ociosidades e decepções, tendo a tuberculose como um mórbido pano de fundo, somaram-se às experiências da infância e a bilhões de sinapses para gerar um poeta, comprovando, nas palavras de Edmund Wilson, que "a literatura é apenas o resultado de nossas brutais colisões com a realidade, cujas repercussões, depois de nos recolhermos ao abrigo de nosso íntimo, tentamos explicar, justificar, harmonizar, colocar numa ordem lógica na corrente uniforme de um pensamento que se reestrutura depois de ser, por um momento, destroçado e dilacerado por elas".10
        Essa longa e sinuosa marcha - cujos frutos e raízes ganharam especial atenção de Manuel Bandeira, e acabaram por servir à construção de uma sólida obra poética -, tentaremos analisá-la na segunda parte deste artigo.




1Sábado, 31 de agosto de 2002.
2Recomendo, aos que se interessarem pelo tema, o artigo da pesquisadora Sílvia Helena Cardoso, onde busquei as informações aqui utilizadas e que pode ser encontrado aqui 3Tradução de Henriqueta Lisboa. In Lisboa, Henriqueta. Poesia Traduzida, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2001.
4Tradução de Augusto de Campos. In Campos, Augusto de. Hopkins - A beleza difícil, Editora Perspectiva, São Paulo, 1997.
5Os Anos 20, Editora Companhia das Letras, São Paulo, 1987.
6"Fazer, saber e avaliar", in Auden, W. H.. A mão do artista, Editora Siciliano, São Paulo, 1993.
7"Escrever", op. cit.
8"Fazer, saber e avaliar", op. cit.
9"Itinerário de Pasárgada", in Bandeira, Manuel. Seleta de Prosa, Editora Nova Fronteira, 2ª reimpressão, Rio de Janeiro, 1997.
10Os Anos 20, op. cit.

2.outubro.2002

(Este artigo foi escrito para ser publicado no sítio DIGESTIVO CULTURAL)

Sinapses: bases da criação literária

Rodrigo Gurgel



                II


        A ciência caminha, cada vez mais, no sentido de comprovar que as sinapses são a forma encontrada pelo cérebro, após séculos de seleção natural, para armazenar e dinamizar as informações obtidas através da experiência. Pesquisas recentes asseveram que indivíduos com maior treinamento profissional chegam a ter, para cada neurônio, 17% mais sinapses do que os não preparados, havendo correlação, inclusive, entre educação e ramificação de neurônios.
        As sinapses ocorrem, assim, numa progressão cumulativa. Os neurônios, quando estimulados, produzem sinapses; e essas sinapses armazenam, num movimento incessante, sob a forma de novas conexões sinápticas, as informações adquiridas, qualificando sempre mais as interligações entre os neurônios, formando ciclos que se repetem numa aspiral ascendente, o que talvez explique porque muitos artistas - e tantos outros profissionais - conseguem superar-se constantemente, além de explicar também o fato da ciência - e do conhecimento humano em geral - progredir.
        Esse efeito cumulativo das sinapses é muito visível no trajeto pessoal do poeta Manuel Bandeira, evocado nas páginas memorialísticas de Itinerário de Pasárgada1. Experiência após experiência, casualidade após casualidade, a começar da infância, serviram para formar a personalidade poética, o senso estético e o somatório de referenciais que desembocaram numa das mais sólidas produções literárias da língua portuguesa. Bandeira recorda seus primeiros contatos com a poesia, lendo os versos pueris encontrados em algumas histórias da carochinha; depois, as cantigas de roda, as trovas populares, as "coplas de zarzuelas", os "couplets de operetas francesas" e mais os "versos de toda sorte que me ensinava meu pai". Entre os oito e nove anos, recorda-se de procurar, no Jornal do Recife, "a poesia que diariamente vinha na primeira página". E, aos dez anos, faz quadrinhas "gracejando a propósito dos namoros" dos tios maternos.
        A figura paterna é, sem dúvida, um elemento preponderante na formação do poeta: "Na companhia paterna ia-me embebendo dessa idéia que a poesia está em tudo - tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas." O pai fazia-o, também, decorar poemas, além de influenciá-lo com a curiosa mania de invocar, dias a fio, com determinadas palavras.
        Poeta "por fatalidade", como Bandeira se autodefine, ele publica seu primeiro livro, A Cinza das Horas, em 1917, "sem a intenção de começar carreira literária: desejava apenas dar-me a ilusão de não viver inteiramente ocioso". O homem cuja confessada ambição, semeada pelo pai, era a arquitetura, tornou-se poeta graças "às circunstâncias", transformando-se, finalmente, também segundo sua própria definição, num poeta das circunstâncias: "(...) Meus primeiros versos datam dos dez anos e foram versos de circunstância. Até os quinze não versejei senão para me divertir, para caçoar. Então vieram as paixões da puberdade e a poesia me serviu de desabafo. Ainda circunstância. Depois chegou a doença. Ainda circunstância e desabafo. Fiz algumas tentativas de escrever poesia sem apoio nas circunstâncias. Todas fracassaram."
        As declarações acima, contudo, escamoteiam muito da formação intelectual de Bandeira, contradizem as explicações que ele fornece para a gestação de alguns de seus principais poemas e simplificam, exageradamente, uma criatividade em permanente reelaboração.
        Dizendo-se "instruído pelos fracassos", ele confessa ter tomado consciência de suas limitações entre 1904, quando adoece, e 1917. Uma autoconsciência que emerge de processos paralelos, como se dois afluentes corressem um ao lado do outro, confluindo, subitamente, em determinados momentos, e transbordando na forma de poesia.
        De um lado, Bandeira afirma ter verificado, em sua experiência pessoal, que seu esforço consciente para criar resultava somente em "insatisfação, ao passo que o que me saía do subconsciente, numa espécie de transe ou alumbramento, tinha ao menos a virtude de me deixar aliviado de minhas angústias". Após sucessivas experiências, ele diz recusar o processo de escrever em estado de lucidez, resignando-se a fazê-lo "quando Deus é servido".
        Há um outro Bandeira, no entanto, complementar a este primeiro, é verdade, mas diverso. Um Bandeira que se aproxima das palavras e do exercício poético como um incansável estudioso. Alguém que afirma ter compreendido,com o tempo, "que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com idéias ou sentimentos". Um poeta que, conscientemente, diz aproveitar-se "dos lapsos de memória" e "dos exames de variantes": "Quantas vezes, querendo lembrar uma estrofe de um poema, uma trova popular, e não conseguindo reconstituí-la fielmente, fazia da melhor maneira o remplissage, depois, cotejando as duas versões - a minha e o original, verificava qual delas era melhor, pesquisava o segredo da superioridade e, descoberto, passava a utilizá-lo nos meus versos."
        Incansável, ele pesquisa e coteja versões diferentes de um mesmo poema, exercitando-se e aprendendo "a conhecer os valores plásticos e musicais dos fonemas", demonstrando conhecer muito bem a nossa fonologia: "A poesia é feita de pequeninos nadas e (...), por exemplo, uma dental em vez de uma labial pode estragar um verso."
        É surpreendente como ele enumera, sem qualquer receio ou pudor, suas influências literárias e extraliterárias, citando, inclusive, os escritores e os amigos que o marcaram, recordando como, em sua infância, as pessoas comuns ganhavam aos seus olhos uma densidade inusitada - o que ele define como "o caráter de personagens homéricos" -, e ditando as lições complexas, frutos de minuciosos estudos, mas que em suas palavras ganham uma aparente e convidativa facilidade: "Cedo compreendi que o bom fraseado não é o fraseado redondo, mas aquele em que cada palavra está no seu lugar exato e cada palavra tem uma função precisa, de caráter intelectivo ou puramente musical, e não serve senão a palavra cujos fonemas fazem vibrar cada parcela da frase por suas ressonâncias anteriores e posteriores."
        Portanto, aqueles que se satisfazem com o Bandeira "poeta das circunstâncias" pouco apreenderão de um processo criativo que pode, de fato, explodir em sinapses arrebatadoras, mas que só o faz por trazer uma base sólida, uma formação clássica e um penetrante conhecimento de versificação, comprovando que a criação, antes de tudo, é um processo eminentemente racional.
        Acompanhar as elucidações de Bandeira sobre as diferentes gestações de seus poemas é compreender como as sinapses podem ser realmente cumulativas e como, reagindo aos estímulos da realidade, elas se imbricam, se interagem, respondendo ao apelo da vida, das emoções e, ao mesmo tempo, recriando-se a partir desses mesmos estímulos. Pasárgada leva anos para ter o primeiro verso gerado e mais alguns para, finalmente, ser concluído. Outros, nascem enquanto o poeta dorme. Outros, por fim, surgem de abrupto, e A última canção do beco talvez seja o mais curioso desse grupo: "Na véspera de me mudar da rua Morais e Vale, às seis e tanto da tarde, tinha eu acabado de arrumar os meus troços e caíra exausto na cama. Exausto da arrumação e um pouco também da emoção de deixar aquele ambiente, onde vivera nove anos. De repente a emoção se rimou em redondilhas, escrevi a primeira estrofe, mas era hora de vestir-me para sair, vesti-me com os versos surdindo na cabeça, desci à rua, no beco das Carmelitas me lembrei de Raul de Leoni, e os versos vindo sempre, e eu com medo de esquecê-los, tomei o bonde, saquei do bolso um pedaço de papel e um lápis, fui tomando as minhas notas numa estenografia improvisada, se não quando lá se quebrou a ponta do lápis, os versos não paravam... Chegando ao meu destino, pedi um lápis e escrevi o que ainda guardava de cor... De volta a casa, bati os versos na máquina e fiquei espantadíssimo ao verificar que o poema se compusera à minha revelia, em sete estrofes de sete versos de sete sílabas."

Eis o resultado, caros leitores:

Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!

Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!


Beco de sarças de fogo,
De paixões sem amanhãs,
Quanta luz mediterrânea
No esplendor da adolescência
Não recolheu nestas pedras
O orvalho das madrugadas,
A pureza das manhãs!

Beco das minhas tristezas,
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas...
E eras só de pobres quando,
pobre, vim morar aqui.

Lapa - Lapa do Desterro -,
Lapa que tanto pecais!
(Mas quando bate seis horas,
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava
A conceição de Maria,
Que graças angelicais!)


Nossa Senhora do Carmo,
De lá de cima do altar,
Pede esmolas para os pobres,
- Para mulheres tão tristes,
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo
De noite se agasalhar.

Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais,
És como a vida, que é santa
Pesar de todas as quedas.
Por isso te amei constante
E canto para dizer-te
Adeus para nunca mais!

As sete estrofes de sete versos de sete sílabas não podem, certamente, ser obra do acaso. O poema é fruto da emulação do real e do desencadeamento de informações armazenadas desde o surgimento, no embrião, das primeiras conexões de neurônios; e, nelas, estão os versos das histórias infantis, os pregões dos vendedores ambulantes, os exercícios de tradução, a memória paterna, a obsessão do artista e, também, o que Ribeiro Couto disse em seu discurso, ao recepcionar Bandeira na Academia Brasileira de Letras: "(...) Trouxe-nos aquilo que a leitura dos grandes livros da humanidade não pode substituir: a rua."
        O artista nada mais é senão o que, de forma prolixa, Edmund Wilson decifra: "Os maneirismos do artista, seu estilo fortemente marcado, que seus admiradores particularmente apreciam, podem na verdade, do ponto de vista de suas ambições e de sua concepção original, representar apenas as limitações do hábito, a queda no sulco do menor esforço, os estigmas lamentáveis porém inevitáveis (...) de suas peculiaridades físicas, dos fracassos de sua família e das limitações de sua nação e raça."2 Ou o que, de forma sintética, Bandeira nos diz: "Somos duplamente prisioneiros: de nós mesmos e do tempo em que vivemos".
        Frágil em sua aparente perenidade, o poeta nasce do ensejo, do instante, mas também da história, da sucessão de experiências cujos resultados mais íntimos sempre nos escapam e, para os quais, o poema, a obra de arte, é, ao mesmo tempo, uma sublimação, uma escapatória e uma afirmativa, um sim irrepreensível. Solitário em seu instante, subjugado por suas sinapses e emoções, "aos olhos dos outros, um homem é poeta se tiver escrito um bom poema. Aos próprios olhos, ele é poeta apenas no momento em que faz a última revisão num novo poema. No momento anterior, era apenas um poeta em potencial; no momento seguinte, é um homem que parou de escrever poesia, talvez para sempre."3
        Toda obra nasce da incerteza, ainda que alguns, após a glória e a fama terem se manifestado em suas vidas, afirmem o contrário. A angústia e a capacidade de, em meio às incertezas, refletir sobre o próprio processo de criação conformam parcela da energia que impulsiona o escritor. Contudo, toda obra está presa a essas infinitas e dessemelhantes conexões que expusemos neste breve ensaio, sempre emolduradas pelo binômio espaço/tempo, mas cujo verdadeiro nome é, apenas, fragilidade.





1In Bandeira, Manuel. Seleta de Prosa, Editora Nova Fronteira, 2ª reimpressão, RJ, 1997.
2In Os Anos 20, Editora Cia. das Letras, São Paulo, 1987.
3Auden, W. H., "Fazer, saber e avaliar", in A mão do artista, Editora Siciliano, São Paulo, 1993.


16.outubro.2002

 

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