I
Em
recente entrevista publicada no Clarín1, de Buenos Aires,
o ensaísta George Steiner revelou, dentre outras, suas interrogações
sobre o processo de criação da obra de arte: "Sempre procurei entender
onde está o segredo, qual é o mistério da poiesis (criação
e poesia), e como, inclusive, a maior inteligência crítica ou analítica
pertence a outra classe, diferente daquela do criador. Como funciona
a explosão de sinapses cerebrais durante a criação, não o sabemos.
Alguns psicólogos e cientistas cognitivos crêem que resolveram o
problema. Eu me mantenho cético..."
De fato, o processo através do qual um impulso nervoso passa
de uma célula cerebral a outra - o que recebe o nome de sinapse
-, é uma das descobertas que colocam o homem na soleira dos meandros
do cérebro2. Os neurônios estão permanentemente conversando
entre si, criando conexões inusitadas a cada milésimo de segundo
e, portanto, se excitados da maneira correta, podem produzir, através
de milhões de sinapses, idéias geniais. O próprio George Steiner
dá um exemplo: "O pequeno Paul Klee, aos seis anos, saiu numa excursão
com sua escola; a professora disse-lhes que desenhassem um aqueduto,
um tema muito maçante. Todos os meninos desenharam um aqueduto,
mas Paul Klee colocou um sapato em cada coluna: o aqueduto caminhava."
Numa explicação resumida e fria, que, evidentemente, não
dá conta de toda a profusão de estímulos presentes no cérebro do
menino artista, os neurônios de Klee - estimulados pela ordem da
professora, pela visão do aqueduto e por milhões de outras informações
que jamais conseguiremos determinar - transmitiram, por meio de
impulsos nervosos, certos sinais codificados que, graças aos
neurotransmissores,
passaram de uma célula a outra, criando as conexões que tornaram
possível o ato de abstrair a imagem do aqueduto e, num átimo, imaginá-lo
calçando sapatos.
O mais curioso, no entanto, é que a transmissão de informações
de um neurônio a outro ocorre quimicamente, pois há um mínimo espaço
vazio entre ambos, a chamada fenda sináptica. A ciência afirma que
os neurônios jamais se tocam.
A sinapse, essa transmissão ou diálogo permanente, que promove
milhões de mudanças, sentimentos, dúvidas e decisões em nossos cérebros
- um processo através do qual uma informação transforma-se de impulso
elétrico em impulso químico e, novamente, num outro neurônio, em
impulso elétrico -, guarda o segredo da criação artística.
Imaginar que as informações nadam de um neurônio a outro,
em meio a bilhões de outras mensagens, e que, caso recebam o estímulo
adequado, podem, ao invés de se perderem, produzir obras geniais,
concede, ao conhecimento desse incrível processo, a qualidade de
uma aventura num universo ainda por demais obscuro para o homem,
apesar de ocorrer em seu próprio interior.
Mas não são apenas os cientistas que se debruçam sobre tais
enigmas. A angústia por se descobrir os tortuosos caminhos da criação
tem influenciado, inclusive, muitos poetas. E, ao tentarem explicar
as razões que os motivaram a escrever, muitos o fizeram através
da poesia.
Rosalía de Castro (1837-1885), a figura mais importante
da poesia galega do século XIX, deixou um poema sutil, em cujo lirismo
ela tangencia as raízes do processo criativo:
Cantiga3
Eu
cantar, cantar, cantei;
a graça não era muita,
pois nunca por meu pesar,
fui eu menina graciosa.
Cantei como foi possível,
dando voltas e mais voltas
assim como quem não sabe
perfeitamente uma cousa.
Porém depois de mansinho
e um pouco mais alto agora,
fui soltando essas cantigas
como quem não quer a cousa.
Eu bem quisera, é verdade,
que elas fossem mais bonitas;
(...)
Isto e ainda mais quisera
dizer com língua graciosa;
mas onde a graça me falta,
o sentimento me sobra.
Entretanto isto não basta
para explicar certas cousas
que, às vezes, por fora um canta
enquanto por dentro chora.
Não me expliquei qual quisera:
sou de pouca explicação;
se graça em cantar não tenho,
o amor da terra me afoga.
Eu cantar, cantar, cantei,
a graça não era muita,
mas que fazer - desgraçada! -
se não nasci mais graciosa.
O
poema fala sobre a sua própria gênese, quer explicar-se e, contudo,
parece esbarrar numa dificuldade intransponível. Semelhante a um
animal que se enrola em si mesmo ou uma serpente que morde a própria
cauda, os versos vão e voltam sem conseguir alcançar seu intento:
descerrar o processo criativo. Mas o poema nasce, ainda que num
ritmo triste, dessa mesma insatisfação.
O jesuíta inglês Gerard Manley Hopkins (1844-1889) conseguirá
aproximar-se mais do estalo sináptico:
A
R.B.4
A
alegre luz que gera a idéia, a força pura,
Viva e voraz, como uma chama de estopim,
Brilha uma vez mas dura pouco, e ainda assim
À mente muda em mãe de um canto que perdura.
Nove
meses, ou mais, nove anos ela o apura
E dentro o gesta, gasta, gosta e alenta, enfim:
Viúva de uma visão perdida, vive; com seu fim
Sabido, a mão perfaz, nunca mais insegura.
Fogo
maior, senhor da musa - uma só graça
Pede meu ser: o arroubo de uma inspiração.
Mas, se por minhas lentas linhas já não passa
A
vaga, o vôo, a voz, o canto, a criação,
Meu mundo-inverno, onde esse júbilo não grassa,
É, com alguns suspiros, nossa explicação.
A
labareda da inspiração é fugaz, mas concede à mente a energia para
fazer brotar o poema. O cérebro o embala por um tempo indefinido,
até estar seguro de que a idéia foi moldada perfeitamente. À sinapse,
no caso de Hopkins, segue-se um longo processo de maturação, angustioso,
sem qualquer alegria, ao qual o poeta dá o nome de "mundo-inverno".
A impressão final é de que o escritor nunca tem absoluta
consciência dos seus processos criativos ou do real valor das suas
idéias, por mais originais que elas sejam. Ele simplesmente cria,
cegamente, impulsionado por uma energia interior, uma força indefinida,
um complexo ou uma neurose, algo que o faz expressar-se, nestes
casos, através da escrita. Com a arte, ele busca, tem a ilusão,
pretende criar uma realidade paralela à vida. E, de fato, momentaneamente,
o faz, residindo aí a catarse que o salva de suas próprias dúvidas,
insatisfações ou angústias. Há, certamente, muito de acaso nessa
seqüência de acertos felizes que, por fim, formam uma obra fadada
a permanecer como referência ou exemplo. Edmund Wilson cunhou uma
bela analogia para explicar tal seqüência: "As novas anomalias e
acidentes da vida constantemente sendo assimilados pela faculdade
artística - imediatamente tomados e incrustados, tornados simétricos
e iridescentes, como a pérola da ostra - até que, quando as ostras
morrem e só resta sua obra, os anais da espécie humana parecem ser
não uma sucessão de mortes, e sim um colar de pérolas."5
Certamente, quando se trata da produção artística, parecerá
a alguns um sortilégio falar em acaso. Mas creio não existir uma
expressão melhor para definir a coincidência entre estímulos exteriores,
experiência acumulada, sinapses e reflexos estéticos. O poeta Wystan
Hugh Auden (1907-1973), por exemplo, relata6 ter começado
a escrever poesia "porque numa tarde de domingo, em março de 1922,
um amigo me sugeriu que o fizesse. A idéia jamais me ocorrera. Conhecia
pouquíssimos poemas (...) e tinha pouco interesse na chamada Arte
Literária. (...) Naquela ocasião, a sugestão de que eu escrevesse
poesia parecia uma revelação do céu, pois nada em meu passado justificava
tal curso."
Em outro ensaio7, Auden cita um curioso exemplo,
extraído de uma carta de Rossini a Louis Engel: "Quando escrevia
a parte do coro em sol menor, sem querer enfiei a pena no vidro
de remédio ao invés do tinteiro; fiz um borrão e, quando sequei
a tinta com areia a mancha assumiu a forma de uma nota natural.
Então, imediatamente, ocorreu-me o efeito que teria a mudança de
sol menor para sol maior. Àquele borrão, todo - e qualquer - efeito
se deve."
Alguns prefeririam dizer que a mão de Rossini foi guiada
por uma outra Mão, uma entidade maior, talvez sagrada, à qual poderíamos
chamar de Destino, Providência Divina ou, simplesmente, Deus. No
entanto, devemos a solução encontrada por Rossini ao acúmulo de
conhecimentos e experiências que ele detinha naquele momento e,
sobrepondo-se a tal somatório, primeiro, à feliz proximidade entre
o tinteiro e o vidro de remédio, e, depois, às sinapses que, nascidas
do ato de ver o borrão, provocaram a idéia de fazer a mudança de
sol menor para sol maior. Nada mais.
De fato, a experiência armazenada na memória parece ser
um fator excitante ou potencializador das sinapses. Ao analisar
o princípio de sua produção literária, Auden relata que, olhando
retrospectivamente, recorda-se de, desde sempre, ver as palavras
de uma forma muito pessoal: "(...) Lia a prosa tecnológica de meus
livros favoritos de uma maneira peculiar. Uma palavra como pyrites
(pirita de ferro), por exemplo, não possuía, para mim, simplesmente
um único conteúdo significativo; era também o nome próprio de um
Ser Secreto, de modo que quando ouvi uma tia pronunciar pirrits
(em vez de páirits), fiquei chocado. A pronúncia era mais
do que errada; era feia. A ignorância era ímpia."8 Há,
portanto, antecedendo a toda criação, um pré-requisito, um dado
pessoal, único e intransferível, ao qual poderíamos denominar de
senso estético, e que parece reformular-se e rever-se permanentemente,
na exata medida em que novas sinapses ocorrem, recriando tentativas,
possibilidades, urgências e motivações, todas elas passíveis, contudo,
de serem experiências infrutíferas ou erros.
Revendo o arcabouço de casualidades que o levariam a transformar-se
em poeta, Manuel Bandeira relata9 que, na meninice, quando
escrevia alguns versos, "era com o mesmo espírito desportivo com
que me equilibrava sobre um barril lançado a toda força das pernas,
o que de modo nenhum me fazia sentir com vocação para artista de
circo." Anos depois, vindo a São Paulo para matricular-se na Escola
Politécnica, pois desejava tornar-se arquiteto, ele não imaginava
que os fatos acabariam por redirecionar sua vida: "Pensava que a
idade dos versos estava definitivamente encerrada. Ia começar para
mim outra vida. Começou de fato, mas durou pouco. No fim do ano
letivo adoeci e tive de abandonar os estudos, sem saber que seria
para sempre. Sem saber que os versos, que eu fizera em menino por
divertimento, principiaria então e fazê-los por necessidade, por
fatalidade."
O que Bandeira chama de "fatalidade" é apenas o conjunto
de infelizes coincidências que o fizeram contrair tuberculose em
1904, e forçaram-no a exilar-se , entre 1913 e 1914, no sanatório
suíço de Clavadel. Do ano em que o poeta adoece até 1917, quando
publica seu primeiro livro, A Cinza das Horas, é que se dará
a etapa decisiva e a inusitada gestação de um dos maiores escritores
da língua portuguesa.
Treze anos de hesitações, buscas, leituras, ociosidades
e decepções, tendo a tuberculose como um mórbido pano de fundo,
somaram-se às experiências da infância e a bilhões de sinapses para
gerar um poeta, comprovando, nas palavras de Edmund Wilson, que
"a literatura é apenas o resultado de nossas brutais colisões com
a realidade, cujas repercussões, depois de nos recolhermos ao abrigo
de nosso íntimo, tentamos explicar, justificar, harmonizar, colocar
numa ordem lógica na corrente uniforme de um pensamento que se reestrutura
depois de ser, por um momento, destroçado e dilacerado por elas".10
Essa longa e sinuosa marcha - cujos frutos e raízes ganharam
especial atenção de Manuel Bandeira, e acabaram por servir à construção
de uma sólida obra poética -, tentaremos analisá-la na segunda parte
deste artigo.
1Sábado,
31 de agosto de 2002.
2Recomendo, aos que se interessarem pelo tema, o artigo
da pesquisadora Sílvia Helena Cardoso, onde busquei as informações
aqui utilizadas e que pode ser encontrado aqui
3Tradução de Henriqueta Lisboa. In Lisboa,
Henriqueta.
Poesia Traduzida, Editora da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2001.
4Tradução de Augusto de Campos. In Campos, Augusto
de. Hopkins - A beleza difícil, Editora Perspectiva, São
Paulo, 1997.
5Os Anos 20, Editora Companhia das Letras, São
Paulo, 1987.
6"Fazer, saber e avaliar", in Auden, W. H.. A
mão do artista, Editora Siciliano, São Paulo, 1993.
7"Escrever", op. cit.
8"Fazer, saber e avaliar", op. cit.
9"Itinerário de Pasárgada", in Bandeira, Manuel.
Seleta de Prosa, Editora Nova Fronteira, 2ª reimpressão,
Rio de Janeiro, 1997.
10Os Anos 20, op. cit.
2.outubro.2002
(Este artigo foi escrito para ser publicado
no sítio DIGESTIVO
CULTURAL)
Sinapses:
bases da criação literária
Rodrigo Gurgel
II
A ciência caminha, cada vez mais, no sentido de comprovar
que as sinapses são a forma encontrada pelo cérebro, após séculos
de seleção natural, para armazenar e dinamizar as informações
obtidas através da experiência. Pesquisas recentes asseveram que
indivíduos com maior treinamento profissional chegam a ter, para
cada neurônio, 17% mais sinapses do que os não preparados, havendo
correlação, inclusive, entre educação e ramificação de neurônios.
As sinapses ocorrem, assim, numa progressão cumulativa.
Os neurônios, quando estimulados, produzem sinapses; e essas sinapses
armazenam, num movimento incessante, sob a forma de novas conexões
sinápticas, as informações adquiridas, qualificando sempre mais
as interligações entre os neurônios, formando ciclos que se repetem
numa aspiral ascendente, o que talvez explique porque muitos artistas
- e tantos outros profissionais - conseguem superar-se constantemente,
além de explicar também o fato da ciência - e do conhecimento
humano em geral - progredir.
Esse efeito cumulativo das sinapses é muito visível no
trajeto pessoal do poeta Manuel Bandeira, evocado nas páginas
memorialísticas de Itinerário de Pasárgada1.
Experiência após experiência, casualidade após casualidade, a
começar da infância, serviram para formar a personalidade poética,
o senso estético e o somatório de referenciais que desembocaram
numa das mais sólidas produções literárias da língua portuguesa.
Bandeira recorda seus primeiros contatos com a poesia, lendo os
versos pueris encontrados em algumas histórias da carochinha;
depois, as cantigas de roda, as trovas populares, as "coplas de
zarzuelas", os "couplets de operetas francesas" e mais os "versos
de toda sorte que me ensinava meu pai". Entre os oito e nove anos,
recorda-se de procurar, no Jornal do Recife, "a poesia que diariamente
vinha na primeira página". E, aos dez anos, faz quadrinhas "gracejando
a propósito dos namoros" dos tios maternos.
A figura paterna é, sem dúvida, um elemento preponderante
na formação do poeta: "Na companhia paterna ia-me embebendo dessa
idéia que a poesia está em tudo - tanto nos amores como nos chinelos,
tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas." O pai fazia-o,
também, decorar poemas, além de influenciá-lo com a curiosa mania
de invocar, dias a fio, com determinadas palavras.
Poeta "por fatalidade", como Bandeira se
autodefine, ele
publica seu primeiro livro, A Cinza das Horas, em 1917,
"sem a intenção de começar carreira literária: desejava apenas
dar-me a ilusão de não viver inteiramente ocioso". O homem cuja
confessada ambição, semeada pelo pai, era a arquitetura, tornou-se
poeta graças "às circunstâncias", transformando-se, finalmente,
também segundo sua própria definição, num poeta das circunstâncias:
"(...) Meus primeiros versos datam dos dez anos e foram versos
de circunstância. Até os quinze não versejei senão para me divertir,
para caçoar. Então vieram as paixões da puberdade e a poesia me
serviu de desabafo. Ainda circunstância. Depois chegou a doença.
Ainda circunstância e desabafo. Fiz algumas tentativas de escrever
poesia sem apoio nas circunstâncias. Todas fracassaram."
As declarações acima, contudo, escamoteiam muito da formação
intelectual de Bandeira, contradizem as explicações que ele fornece
para a gestação de alguns de seus principais poemas e simplificam,
exageradamente, uma criatividade em permanente reelaboração.
Dizendo-se "instruído pelos fracassos", ele confessa ter
tomado consciência de suas limitações entre 1904, quando adoece,
e 1917. Uma autoconsciência que emerge de processos paralelos,
como se dois afluentes corressem um ao lado do outro, confluindo,
subitamente, em determinados momentos, e transbordando na forma
de poesia.
De um lado, Bandeira afirma ter verificado, em sua experiência
pessoal, que seu esforço consciente para criar resultava somente
em "insatisfação, ao passo que o que me saía do subconsciente,
numa espécie de transe ou alumbramento, tinha ao menos a virtude
de me deixar aliviado de minhas angústias". Após sucessivas experiências,
ele diz recusar o processo de escrever em estado de lucidez, resignando-se
a fazê-lo "quando Deus é servido".
Há um outro Bandeira, no entanto, complementar a este
primeiro, é verdade, mas diverso. Um Bandeira que se aproxima
das palavras e do exercício poético como um incansável estudioso.
Alguém que afirma ter compreendido,com o tempo, "que em literatura
a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com idéias
ou sentimentos". Um poeta que, conscientemente, diz aproveitar-se
"dos lapsos de memória" e "dos exames de variantes": "Quantas
vezes, querendo lembrar uma estrofe de um poema, uma trova popular,
e não conseguindo reconstituí-la fielmente, fazia da melhor maneira
o remplissage, depois, cotejando as duas versões - a minha
e o original, verificava qual delas era melhor, pesquisava o segredo
da superioridade e, descoberto, passava a utilizá-lo nos meus
versos."
Incansável, ele pesquisa e coteja versões diferentes de
um mesmo poema, exercitando-se e aprendendo "a conhecer os valores
plásticos e musicais dos fonemas", demonstrando conhecer muito
bem a nossa fonologia: "A poesia é feita de pequeninos nadas e
(...), por exemplo, uma dental em vez de uma labial pode estragar
um verso."
É surpreendente como ele enumera, sem qualquer receio
ou pudor, suas influências literárias e extraliterárias, citando,
inclusive, os escritores e os amigos que o marcaram, recordando
como, em sua infância, as pessoas comuns ganhavam aos seus olhos
uma densidade inusitada - o que ele define como "o caráter de
personagens homéricos" -, e ditando as lições complexas, frutos
de minuciosos estudos, mas que em suas palavras ganham uma aparente
e convidativa facilidade: "Cedo compreendi que o bom fraseado
não é o fraseado redondo, mas aquele em que cada palavra está
no seu lugar exato e cada palavra tem uma função precisa, de caráter
intelectivo ou puramente musical, e não serve senão a palavra
cujos fonemas fazem vibrar cada parcela da frase por suas ressonâncias
anteriores e posteriores."
Portanto, aqueles que se satisfazem com o Bandeira "poeta
das circunstâncias" pouco apreenderão de um processo criativo
que pode, de fato, explodir em sinapses arrebatadoras, mas que
só o faz por trazer uma base sólida, uma formação clássica e um
penetrante conhecimento de versificação, comprovando que a criação,
antes de tudo, é um processo eminentemente racional.
Acompanhar as elucidações de Bandeira sobre as diferentes
gestações de seus poemas é compreender como as sinapses podem
ser realmente cumulativas e como, reagindo aos estímulos da realidade,
elas se imbricam, se interagem, respondendo ao apelo da vida,
das emoções e, ao mesmo tempo, recriando-se a partir desses mesmos
estímulos. Pasárgada leva anos para ter o primeiro verso
gerado e mais alguns para, finalmente, ser concluído. Outros,
nascem enquanto o poeta dorme. Outros, por fim, surgem de abrupto,
e A última canção do beco talvez seja o mais curioso desse
grupo: "Na véspera de me mudar da rua Morais e Vale, às seis e
tanto da tarde, tinha eu acabado de arrumar os meus troços e caíra
exausto na cama. Exausto da arrumação e um pouco também da emoção
de deixar aquele ambiente, onde vivera nove anos. De repente a
emoção se rimou em redondilhas, escrevi a primeira estrofe, mas
era hora de vestir-me para sair, vesti-me com os versos surdindo
na cabeça, desci à rua, no beco das Carmelitas me lembrei de Raul
de Leoni, e os versos vindo sempre, e eu com medo de esquecê-los,
tomei o bonde, saquei do bolso um pedaço de papel e um lápis,
fui tomando as minhas notas numa estenografia improvisada, se
não quando lá se quebrou a ponta do lápis, os versos não paravam...
Chegando ao meu destino, pedi um lápis e escrevi o que ainda guardava
de cor... De volta a casa, bati os versos na máquina e fiquei
espantadíssimo ao verificar que o poema se compusera à minha revelia,
em sete estrofes de sete versos de sete sílabas."
Eis o resultado, caros leitores:
Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!
Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!
Beco de sarças de fogo,
De paixões sem amanhãs,
Quanta luz mediterrânea
No esplendor da adolescência
Não recolheu nestas pedras
O orvalho das madrugadas,
A pureza das manhãs!
Beco das minhas tristezas,
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas...
E eras só de pobres quando,
pobre, vim morar aqui.
Lapa - Lapa do Desterro -,
Lapa que tanto pecais!
(Mas quando bate seis horas,
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava
A conceição de Maria,
Que graças angelicais!)
Nossa Senhora do Carmo,
De lá de cima do altar,
Pede esmolas para os pobres,
- Para mulheres tão tristes,
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo
De noite se agasalhar.
Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais,
És como a vida, que é santa
Pesar de todas as quedas.
Por isso te amei constante
E canto para dizer-te
Adeus para nunca mais!
As sete estrofes de sete versos de sete sílabas não podem,
certamente, ser obra do acaso. O poema é fruto da emulação do
real e do desencadeamento de informações armazenadas desde o
surgimento, no embrião, das primeiras conexões de neurônios;
e, nelas, estão os versos das histórias infantis, os pregões
dos vendedores ambulantes, os exercícios de tradução, a memória
paterna, a obsessão do artista e, também, o que Ribeiro Couto
disse em seu discurso, ao recepcionar Bandeira na Academia Brasileira
de Letras: "(...) Trouxe-nos aquilo que a leitura dos grandes
livros da humanidade não pode substituir: a rua."
O artista nada mais é senão o que, de forma prolixa,
Edmund Wilson decifra: "Os maneirismos do artista, seu estilo
fortemente marcado, que seus admiradores particularmente apreciam,
podem na verdade, do ponto de vista de suas ambições e de sua
concepção original, representar apenas as limitações do hábito,
a queda no sulco do menor esforço, os estigmas lamentáveis porém
inevitáveis (...) de suas peculiaridades físicas, dos fracassos
de sua família e das limitações de sua nação e raça."2
Ou o que, de forma sintética, Bandeira nos diz: "Somos duplamente
prisioneiros: de nós mesmos e do tempo em que vivemos".
Frágil em sua aparente perenidade, o poeta nasce do
ensejo, do instante, mas também da história, da sucessão de
experiências cujos resultados mais íntimos sempre nos escapam
e, para os quais, o poema, a obra de arte, é, ao mesmo tempo,
uma sublimação, uma escapatória e uma afirmativa, um sim irrepreensível.
Solitário em seu instante, subjugado por suas sinapses e emoções,
"aos olhos dos outros, um homem é poeta se tiver escrito um
bom poema. Aos próprios olhos, ele é poeta apenas no momento
em que faz a última revisão num novo poema. No momento anterior,
era apenas um poeta em potencial; no momento seguinte, é um
homem que parou de escrever poesia, talvez para sempre."3
Toda obra nasce da incerteza, ainda que alguns, após
a glória e a fama terem se manifestado em suas vidas, afirmem
o contrário. A angústia e a capacidade de, em meio às incertezas,
refletir sobre o próprio processo de criação conformam parcela
da energia que impulsiona o escritor. Contudo, toda obra está
presa a essas infinitas e dessemelhantes conexões que expusemos
neste breve ensaio, sempre emolduradas pelo binômio espaço/tempo,
mas cujo verdadeiro nome é, apenas, fragilidade.
1In Bandeira, Manuel. Seleta de Prosa, Editora
Nova Fronteira, 2ª reimpressão, RJ, 1997.
2In Os Anos 20, Editora Cia. das Letras, São
Paulo, 1987.
3Auden, W. H., "Fazer, saber e avaliar", in
A mão do artista, Editora Siciliano, São Paulo, 1993.
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