Rodolfo Mata  

Um Olhar Sobre a América Hispânica
Entrevista com o crítico e poeta Haroldo de Campos
                  
 
RM: Qual é a relação estabelecida entre o senhor e as vanguardas hispano-americanas? Parece que esse aspecto de seu trabalho não está condensado ou recolhido de maneira suficientemente clara. 

HC: O trabalho que mais dados oferece para a compreensão de minha relação com o pano de fundo latino-americano, hispano-americano mais especificamente, é "A Ruptura dos Gêneros", do qual existem duas versões. Em América Latina en su literatura, coletânea da UNESCO, publiquei uma versão mais condensada, obedecendo ao limite de páginas definido para a confecção da antologia. A versão completa foi publicada depois, na coletânea "Elos" da Editora Perspectiva, sob o título Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana. Para completar o volume, inclui uma conversa-entrevista que tive com o poeta português Melo e Castro sobre o problema do barroco. Esse é o texto que mais circunstanciadamente estabelece meus vínculos com a vanguarda latino-americana. Traz as minhas preferências - meus vínculos na órbita das preferências - que também tenho referido em outras passagens, como nos ensaios "Constelação para Octavio Paz" (publicado em Transblanco e em Signos em rotação) e "Da razão antropofágica" (publicado em Metalinguagem). Ruptura dos gêneros... traz a relação básica, a relação que privilegio no contato com a vanguarda latino-americana e que também orientou, em certa medida, meus contatos pessoais. Além desse texto, há um pequeno trabalho em que falo do meu itinerário latino-americano. Foi publicado há pouco, na revista Mário, da Secretaria Estadual da Cultura do Centro de Estudos Mário de Andrade, edição comemorativa do centenário do escritor paulista. 

        Minha relação com a vanguarda latino-americana começou passando por Vicente Huidobro e César Vallejo e, mais tarde, mostrou coincidências surpreendentes com Oliverio Girondo. Apenas em 1971, quando estive em Austin, Texas, como professor visitante, é que tive a oportunidade de conhecer En la masmédula, publicada pela Losada, em 1956. Talvez houvesse alguma outra edição ligeiramente anterior, alguma edição privada, mas a primeira edição para efeitos públicos é a de 1956, que só conheci em 1971. Essa obra me deu imediatamente a noção de quão próximos, embora talvez com premissas e endereços diferentes, tínhamos estado Girondo e eu. Os poemas de En la masmédula, sobretudo os mais radicais, parecem estabelecer um diálogo com os poemas de uma série que comecei a escrever em 1955, e que publiquei em 1956, chamada O âmago do ômega (os poemas de tipografia em branco sobre preto). Lamentei muito não ter conhecido seu livro antes, já que poderia ter ido a Buenos Aires e estabelecido contato pessoal com Girondo, o que em 1971 já não era possível, pois o escritor argentino havia morrido. Jorge Schwartz fez um estudo sobre essa aproximação num capítulo de seu Vanguarda e Cosmopolitismo, comparando O âmago do ômega --os poemas da "fenomenologia da composição"-- e En la masmédula. 

        Por volta de 1957, meu irmão Augusto de Campos traduziu um fragmento de Altazor, de Huidobro, publicado no Jornal do Brasil. Quanto a Vallejo, também conhecíamos e líamos a edição de Trilce, publicada na Argentina. Nosso interesse pela vanguarda latino-americana compreendia, entre outros, esses autores, quando tomei conhecimento de uma nova vanguarda, representada por Rayuela, de Cortázar, romance precedido de Los reyes. Em 1967, escrevi o primeiro ensaio publicado no Brasil sobre Rayuela, "O jogo da amarelinha", no Correio da Manhã. A partir daí, e depois de eu ter enviado este ensaio a Cortázar, além dos números até então publicados da revista Invenção, surgiu primeiramente um contato, depois transformado em amizade pessoal, que durou alguns anos. Cortázar veio duas vezes ao Brasil e eu fui convidado a fazer o prefácio, a introdução ao volume sobre Rayuela, publicado na coleção Archives, volume organizado por Saúl Yurkiévich e Julio Ortega, igualmente meus amigos pessoais. 

        O contato com Octavio Paz deu-se um pouco mais tarde, em 1968 (o que narro no prefácio ao Transblanco), através de Celso Lafer, que havia sido seu aluno e comentado sobre o interesse do poeta mexicano pela poesia concreta. Surgiu então toda a nossa correspondência. Paralelamente, estabeleci contato pessoal, nexos, relações de amizade com Severo Sarduy, com Cabrera Infante, sempre com a característica de que essas relações não eram relações buscadas diretamente no nível pessoal, mas partiam, antes, de um interesse estético em comum. O nível pessoal surgia como conseqüência do nível estético. Entrei em contato com Sarduy, não em função de alguma atividade diplomática ou mundana, mas porque estava interessado em sua obra De donde son los cantantes. Foi a partir de meu interesse e dos contatos que posteriormente estabelecemos que nossa amizade se firmou. Sarduy escreveu sobre minha poesia e eu publiquei e prologuei os ensaios de Escrito sobre um corpo, aqui no Brasil. Hoje, venho acompanhando a tradução de Jorge Schwartz de De donde son los cantantes, que deverá ser ultimada. Propus para esse romance o título, em português, Cantando seus males espantam. Com Cabrera Infante deu-se o mesmo. Eu o conheci por intermédio de Tres tristes tigres, um livro que me interessou muito. Estabelecemos contatos e ele também se interessou pela poesia concreta. Desse ponto de partida textual, estético, nasceu a relação de ordem pessoal.  

        Além de romancistas e poetas, também mantive contatos com críticos, como Emir Rodríguez Monegal, grande amigo meu, com quem troquei muitas informações, experiências, e cuja perda foi muito triste para as letras brasileiras. Monegal era um dos raros críticos hispano-falantes e professores de literatura latino-americana que davam ao Brasil um lugar de destaque. Nunca deu um curso em que não falasse dos autores brasileiros a par dos hispano-americanos, com a perspectiva da literatura comparada. Nunca deixou de considerar autores brasileiros como Guimarães Rosa, Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto e Oswald de Andrade.  

RM: É curioso constatar a dificuldade de intercâmbio existente entre críticos, poetas e romancistas da América hispânica e da portuguesa. Qual tem sido a experiência do senhor nessa plano? Qual o papel cultural das traduções?  

HC: Sou um leitor de língua brasileira que, desde a juventude, lê poesia em espanhol. Em meu curso secundário, o espanhol era matéria obrigatória, e eu estudei durante um ano língua e literatura espanholas, num momento em que se é bem receptivo às línguas. Falo e escrevo espanhol, ao contrário de meus interlocutores latino-americanos, que sempre tiveram muita dificuldade com o português. Cabrera Infante leu Machado de Assis numa tradução para o inglês. Cortázar lia português com enorme dificuldade, fazendo um grande esforço. Os autores tinham muito interesse pela literatura em língua brasileira, mas não conheciam bem o idioma.  

        Quando comecei minha atividade poética, a partir dos anos de 1948 e 1949, eu não lia só poetas brasileiros, lia também muita poesia em espanhol. García Lorca, por exemplo, era um dos poetas mais lidos na minha geração. Mas, como eu procurava conhecer tudo o que houvesse nesse campo, além de Lorca, li Juan Ramón Jiménez e Pablo Neruda. Li muito precocemente o Trilce de Vallejo. De Huidobro, li os fragmentos que pude obter, já que só consegui uma antologia bastante representativa de sua obra em 1959, em minha primeira viagem à Espanha. Em resumo, enquanto eu era uma pessoa que estava na condição de conhecer literatura espanhola e hispano-americana por experiência direta de leitura, de freqüentar aqueles autores na língua original, meus interlocutores de língua espanhola, quase que via de regra, estavam descobrindo autores como Oswald de Andrade e Mário de Andrade, pelas referências que eu mesmo lhes fazia, sem conseguir ter acesso aos originais em português. 

        E digo mais, a tradução para o espanhol do Macunaíma foi feita graças à minha revisão. Arranjei como editora a Seix Barral de Barcelona, através da minha amizade com Pere Gimferrer, e acompanhei pessoalmente a tradução. Se não fosse a minha revisão pessoal, Héctor Olea não teria conseguido traduzi-lo como o fez. O seu original foi objeto de uma profunda revisão de minha parte, porém não uma revisão, digamos assim, do ponto de vista extensivo, e sim do ponto de vista da orientação, indicando as coisas a fazer, os jogos de palavras a preservar, a maneira de proceder. E isso eu fiz com Macunaíma em espanhol, fiz com Macunaíma em francês, acompanhando a tradução de Thieriot; e também com Oswald em francês, que acompanhei. Também dei sugestões a Héctor Olea com relação à tradução de Miramar e acompanhei as versões italianas de Miramar e Serafim. Fiz não apenas contatos intelectuais no exterior, como procurei utilizar as minhas técnicas, o meu conhecimento do problema da tradução, minha experiência, para que as traduções dos autores brasileiros no exterior fossem efetivas. Se forem comparadas a tradução para o espanhol de Serafim Ponte Grande que consta no volume Ayacucho e a tradução de Miramar, feita por Héctor Olea sob o meu impulso, do ponto de vista de minha teoria da tradução, de minhas sugestões de revisão, as diferenças serão visíveis. A tradução do Serafim não foi feita sob a minha orientação, pois naquele momento eu estava com muito trabalho. O Serafim, logo em seu início, tem um jogo de palavras fundamental. "O primeiro contato do Serafim com a Malícia": é uma brincadeira com a cartilha, "cá, qué, qui, có, cu", e a tradutora realmente perde esse jogo. Se esse jogo - que para um leitor de língua portuguesa é óbvio e até um pouco chulo, de um nível de linguagem grosseiro, tratado, porém, com humor - é perdido no início, perde-se desde logo a natureza do que é o Serafim, que é um jogo de tipo rabelaisiano. 

        Nas conversas e contatos com meus amigos latino-americanos, não me preocupei, simplesmente, em levar a eles meu trabalho pessoal ou informações gerais sobre a nossa literatura. Na realidade, creio que contribui para que algumas obras fundamentais, sobretudo, Mário e Oswald, fossem divulgadas com parâmetros adequados à sua apreciação. Cabrera Infante, por exemplo, nunca tinha ouvido falar de Macunaíma, um livro que tem muito interesse para uma pessoa como ele. 

        Meus contatos obedeciam a um propósito programático de exportar a literatura brasileira e de alguma maneira contribuir para a integração dessa literatura em um contexto latino-americano mais vasto. Achava uma pena que eu pudesse ler Borges, Cortázar, e que os latino-americanos de língua espanhola não pudessem ler Oswald e Mário de Andrade. Machado de Assis já estava traduzido. Como Borges, é um autor de uma linguagem mais neutra, aparentemente, que não oferece tanta resistência à tradução. Minha proposta de apresentar novos autores, de orientar traduções era um projeto de cunho cultural. Os contatos que estabeleci não foram, como já indiquei, aleatórios, faziam parte de meu projeto. Procurei autores com os quais tinha uma afinidade eletiva, do ponto de vista estético. 

RM: Falemos um pouco de Octavio Paz. O senhor observou em Transblanco que o trabalho do poeta mexicano foi de grande importância para a poesia latino-americana, porque apontava para o rompimento com o impasse representado pelo estilo pós-nerudiano que nela se havia instalado. 

HC: Bem, o que eu tinha em vista, quando fiz essa observação, foi que parte da poesia latino-americana se deixou envolver por uma retórica de metáforas fáceis que substituía, assim, qualquer preocupação estrutural com a linguagem do poema. Isto acontecia com o próprio Neruda, mas sobretudo com seus discípulos e epígonos. A melhor fase de Neruda, no meu modo de ver, está em Residencia en la tierra e em alguns momentos do Canto general. Nessa fase, Neruda aproxima-se de Poeta en Nueva York, de García Lorca, o grande livro metafórico da poesia em língua espanhola, livro onde a metáfora barroca explode, mas explode de uma maneira extremamente trabalhada, com grande critério artesanal, e não em um estilo simplesmente acumulativo. Depois disso, Neruda acabou desenvolvendo uma espécie de dispositivo retórico que tornava sua poesia muito previsível (embora ela tivesse momentos excelentes). De fato, tal dispositivo, sobretudo quando manipulado pelos epígonos, era bastante monótono e pouco interessante.  

        É nesse sentido que a presença de Paz foi realmente fundamental, pois ele não era apenas um poeta que produzia sua obra e ficava indiferente ao resto. Paz era um poeta que exercia uma pedagogia poética, uma pedagogia pela crítica e pela ensaística. Paz tinha por Neruda uma consideração especial, por razões não só pessoais como da estética da poesia latino-americana em língua espanhola. Não coincidimos nisso, pois minha tradição é diferente. No entanto, como observador "fora do jogo", tenho condições de perceber, não simplesmente aquilo que os dois poetas tinham em comum, mas sim o que a presença de Paz retificava na tradição nerudiana, que me parecia uma tradição repetitiva e já sem força. Octavio Paz trouxe de novo a noção de estrutura para o poema, noção que de certa maneira tinha sido abafada pela parte mais repetitiva da tradição nerudiana, mas que já existia em poemas como Altazor, de Huidobro, ou Trilce, de Vallejo.  

        É preciso notar que, em relação a essa primeira vanguarda (de Huidobro e Vallejo), a presença nerudiana foi tão impactante e esmagadora, que seus elementos acabaram ficando ocultos, latentes. Foi necessária a emergência de Octavio Paz, com toda sua força de poeta, crítico, ensaísta, para que os vínculos com essa vanguarda fossem retomados. Paz, ele próprio, em sua ensaística, prestou reverência mais de uma vez a Trilce e a Altazor, embora não tratasse especificamente de Girondo ou de En la masmédula, sua obra mais radical. Mas, de qualquer maneira, as obras de Vallejo e Huidobro são anteriores. Como já mencionei, En la masmédula é de 1956, enquanto Trilce foi publicada em 1922 e o poema Altazor, em 1931 (embora o próprio Huidobro afirmasse que o vinha concebendo desde 1919, apesar do aspecto duvidoso que estas declarações possam oferecer quanto à datação do poema). 

        Assim, a retomada das linhas de força de uma poesia estrutural, de uma poesia preocupada com a linguagem que não fosse simplesmente um "estouro de bardo", como o era no caso de Neruda, foi realizada por Paz. Seu exemplo serviu muito às gerações jovens, não só latino-americanas, já que Paz começou a ser muito traduzido e exportado. Hoje, sua poesia é um ponto de referência para jovens poetas latino-americanos, para os de língua inglesa e francesa. Sobretudo nessas duas línguas, há poetas da geração posterior à de Paz que aprenderam com ele e que são atentos à sua poesia. 

        Paz, vale enfatizar, representou um deslocamento de uma área mais retórica da poesia em língua espanhola na América Latina, para um pólo muito mais essencial de uma poesia capaz de refletir sobre o seu próprio mecanismo, capaz de ser metalingüística em relação ao seu próprio trabalho. Os textos recolhidos em Transblanco têm esse sentido, inclusive as cartas que troquei com o poeta, nas quais sublinho minha posição. A mais extensa carta de Paz, em que ele responde a perguntas instigantes que eu lhe faço, é uma carta muito bonita. Acho que essa carta é até rara, pois é a primeira vez, creio, que ele faz, de uma maneira sintética, um retrospecto de toda a sua poesia, sua carreira, falando inclusive dessa tradição metafórica e de sua importância no contexto hispano-americano.  

RM: Esta carta representa um ponto fundamental nas comparações que podem ser feitas entre o seu trabalho e o de Octavio Paz. Mas podemos dizer que o diálogo iniciado nela ficou um pouco... bem..."cada qual no seu pedaço", não é? Trata-se de uma atitude de muito respeito e reconhecimento de um pelo outro, mas que guarda também uma outra relação, entre duas linhas da vanguarda. A linha seguida pelo senhor, que participa do trabalho dos formalistas, do futurismo russo e do construtivismo, e a linha na qual Paz se inseriu, que atravessa o surrealismo. Para mim, isso traz duas visões da obra de Mallarmé, que podem ser encontradas principalmente em "Los signos en rotación", que é o epílogo de El arco y la lira, de Octavio Paz, e nos textos da Teoria da poesia concreta. O senhor poderia comentar essas duas aproximações de Mallarmé? 

HC: Considero que a poesia francesa poderia ser resumida, embora de uma maneira brutal, em duas grandes linhas, do ponto de vista da "tradição do novo", sem falar de Baudelaire, que constituiria uma espécie de tempo ainda anterior a essas duas linhas. As linhas da modernidade têm, por um lado, Mallarmé, que dá a vertente mais estrutural, e, por outro lado, Rimbaud, que dá a alquimia do verbo, de onde viria o surrealismo. Mallarmé é o construtivismo e Rimbaud é o surrealismo. Mas isso não significa que essas duas linhas estejam incomunicáveis, que alguém não possa ser, ao mesmo tempo, herdeiro de Mallarmé e de Rimbaud.  

        Paz é um poeta com uma herança surrealista muito marcada, que presta todo um tributo a Breton. Embora respeite o trabalho de Breton, meu interesse por ele é reduzido. Tenho muito mais interesse em Antonin Artaud e em outras linhas do surrealismo. Entretanto, Paz foi capaz de conciliar, em sua poesia, essa alquimia verbal de ascendência rimbaudiana com o pensamento estrutural do poema, que vem de Mallarmé. Daí a diferença entre Paz e Neruda.  

        Paz tem uma dupla consciência, junta o surrealismo de linhagem rimbaudiana ao senso estrutural, metalingüístico do poema, proveniente de Mallarmé, e traz uma nova vitalidade à poesia de língua hispânica (em um momento em que ela estava dessorada, exatamente por esse cânon nerudiano repetitivo) e também a possibilidade de um novo poema. Trata-se da linha que eu já rastreio em Libertad bajo palabra, livro que recolhe a poesia de Octavio até 1958, se bem me recordo. Antes da fase que tem Blanco como seu momento culminante, a poesia recolhida em Libertad bajo palabra mostrava que Paz tinha, além de um sentido de construção da metáfora, uma linha de acordo com o poema condensado, à maneira do haikai japonês. Tinha também uma linha do poema reflexivo, representada agudamente por aquele texto "Las palabras". E essas linhas serviram de antídoto àquele dispositivo narcotizante da metáfora nerudiana. Tratava-se de resgatar o trabalho cada vez mais digno de ser revalorizado de poetas como o Vallejo, de Trilce, ou como o Huidobro, de Altazor. 

        Considero que a contribuição fundamental de Paz se encontra ali, e foi a partir do reconhecimento dessa contribuição que o nosso diálogo se travou. Porque eu vinha de uma tradição completamente diferente, na qual nunca pesou o surrealismo, pesou o barroco. O García Lorca de Poeta en Nueva York, Góngora e toda essa tradição da geração de Lorca tiveram muita importância desde o começo da nossa poesia. Na leitura de meu livro de estréia, Auto de Possesso (1950), deixa-se sentir a presença da metáfora, da lição da metáfora barroquista, neobarroca. E não só na minha poesia. Essa presença também é forte na primeira poesia de Décio Pignatari. 

RM: Existe uma outra diferença que acho fundamental. Trata-se de uma certa "religião da poesia" que Octavio Paz pratica e que já aparece em El arco y la lira. É um elemento transcendentalista que se reporta à sua experiência oriental e a uma visão singular de Mallarmé. Depois, em Los hijos del limo, Paz chega inclusive a citar uma carta de Mallarmé, na qual o autor francês diz que enfrentou dois abismos: o Nada, ao que tinha chegado sem conhecer o budismo, e a Obra. Paz, também com freqüência, refere-se ao sunyata, o "vazio" budista, onde os contrários convivem. Isso de certo modo explica suas estratégias textuais ligadas ao paradoxo. O poeta mexicano usa constantemente o paradoxo como figura lógica em seu discurso. Ao contrário, o senhor se volta para um trabalho mais direto com a linguagem; não cria nunca uma metafísica do fazer poético. 

HC: Bem observado. De fato, uma outra grande influência da poesia concreta, e também do meu trabalho em particular, foi a pragmática poética de Ezra Pound, a poesia como um artesanato, como uma questão de competência artesanal. Pound disse em algum momento que "a sinceridade de um poeta se mede pela sua técnica". A técnica significa também alguma coisa de ético, quer dizer, praticar um ofício, como o ofício poético, significa dominá-lo. Assim, embora eu leia muita filosofia e tenha muitos interesses pela filosofia oriental, tanto budista como chinesa ou hindu, e pelo zen budismo na sua formulação japonesa, a minha relação com o Oriente não provém de uma relação em termos filosóficos, mas em termos de linguagem. Eu não fiquei meditando ou lendo, tentando reconstituir, comprender, abranger ou assimilar em termos ocidentais a visão dos vários tipos de budismo. Fui diretamente estudar japonês. É diferente. Em vez de ficar especulando sobre a filosofia zen, o que fiz, como leitor, foi tomar a filosofia zen, o budismo, no sentido operacional para a minha poesia.  

        Nos anos de 1956 e 1957, estudei japonês. Primeiro como aluno da Aliança Cultural Brasil-Japão, que se abriu aqui em São Paulo em 1956, e depois como aluno particular do professor José Sant'Ana do Carmo (especialista brasileiro em língua japonesa). Estava interessado na estrutura e no funcionamento do ideograma. Foi nessa época que comecei a fazer minhas primeiras traduções de haikais, e a cogitar em traduzir, no futuro, uma peça do teatro nô: Hagoromo. E também, embora nunca tenha estudado chinês, através do estudo que fiz dos ideogramas, vi a possibilidade de trabalhar com o chinês clássico, que é muito simples. Tendo uma tradução bilingüe e sabendo operar com os ideogramas, pode-se trabalhar com bastante eficácia no campo, já que se trata de poemas muito reduzidos, de poucas palavras. Cada ideograma representa uma palavra e, com a ajuda dos textos bilingües e comentados, é possível recriar esses poemas como eu fiz com os de Li Tai Po e de outros poetas. 

        Minha ligação com o Oriente foi feita, seguindo o exemplo de Pound, através do contato específico com a linguagem, sobretudo com a linguagem japonesa, com a técnica do ideograma, e a partir daí com as tentativas de criar métodos e meios para recriar, ou para transcriar, em português, aquele tipo de poesia vinda do Oriente. Procurei a intervenção do próprio ideograma dentro de um texto, de uma estrutura poética espacializada. Assim, fui introduzindo técnicas da poesia concreta, espacial, para transcriar o haikai. 

        Se minha relação com o Oriente deu-se via linguagem/poesia, talvez a relação de Paz tenha-se dado sobretudo via filosofia ou via meditação sobre os vários tipos de pensamento oriental, embora também possa ter sido via poesia. Entretanto, não me consta que Paz, ao trabalhar com poesia, tenha estudado alguma língua oriental. Seu trabalho com os haikais e com a poesia chinesa foi mediado pelas traduções existentes dos textos para o inglês, o francês ou para o próprio espanhol; ou então ele trabalhava com uma pessoa que conhecesse japonês ou chinês. Eu fui alfabetizado em japonês, em seus dois alfabetos, os silabários hirakana e katakana, como qualquer criança que entrasse na escola. Aprendi japonês na mesma cartilha que se usava nas escolas para crianças, no Japão. Não havia métodos audiovisuais naqueles anos da década de 1950 (pelo menos não no Brasil). Me dediquei a estudar o ideograma, o kanji, a técnica da ordem dos traços, o reconhecimento no dicionário de um kanji, de um ideograma, comecei a traçar alguns kanjis mais simples. Aprendi aquilo tudo enquanto técnica operacional da linguagem, o que foi muito importante para mim. Tudo isso mostra bem o que você disse: minha perspectiva é uma perspectiva eminentemente do concreto, do material. Vamos falar do ideograma chinês? Vamos. Mas, em vez de ficar lendo coisas sobre o ideograma chinês (e eu li muitas), vamos ver como é que isso funciona, estudando uma língua em que o ideograma existe como instrumento. Foi exatamente isso que eu fiz. 

RM: Então, poderíamos dizer que foi através da linguagem que o senhor chegou a uma idéia filosófica da linguagem, não é?  

HC: Foi através da linguagem, embora isso não exclua o fato de eu ter lido muitos livros sobre zen budismo, sobre budismo hindu, sobre literatura sânscrita. A entrada efetiva iniciou-se com a tarefa, às vezes penosa, de freqüentar duas vezes por semana um instituto junto com alunos, na maior parte meninos. Eu e minha mulher, Carmen, além de sermos os mais velhos da classe, éramos os únicos brasileiros de origem. Todos os meninos eram nisseis, tinham outros interesses. Essa experiência não foi uma experiência muito fácil, nem muito bem resolvida. Dois dias por semana à noite (o instituto só funcionava à noite), nós íamos até a Praça da Sé, onde estava o instituto (e morávamos em Perdizes!). Freqüentávamos o curso, fazíamos os exercícios, as lições de casa. Assim, foi através dessa maneira humilde, digamos, modesta, mas a única possível para se ingressar em uma língua, que nos iniciamos no japonês. Não se pode pretender estudar uma língua sem passar por esses trâmites.  

        Mais recentemente, nos anos 80, fiz o mesmo com o hebraico. Fui alfabetizado, aprendi a escrever e a ler hebraico em dois alfabetos diferentes: um manual e outro de letras de forma. Passava dias traçando aquelas letras. Eu não soube como é a poesia bíblica, eu li a poesia bíblica em hebraico. Não toda, mas a parte que me interessava para os meus propósitos, e a li em hebraico e a traduzi a partir do hebraico. Mas para isso tive que ser alfabetizado, tive que passar horas e horas fazendo exercícios penosos. Meu método foi sempre esse, do contato direto, o que não impede que eu tenha lido muitas coisas a respeito da língua. No caso da Bíblia, por exemplo, li muita coisa sobre hermenêutica, sobre filosofia bíblica, sobre as questões religiosas que a Bíblia invoca. Até ser possível traduzir, é preciso perceber como é o funcionamento da língua no plano da superestrutura ideológica, religiosa, metafísica, etc. Mas a minha entrada é a "física", através do foco da linguagem. 

        Entretanto, isso não quer dizer que eu ache que um ou outro acesso seja melhor ou pior. Trata-se de uma questão de propensão. Eu, por exemplo, sempre gostei de estudar línguas. Para mim, sempre foi uma espécie de esporte. Eu nunca pratiquei esporte nenhum, nem nunca tive predileção por jogo algum. Aprendi a jogar xadrez e não gostei, não gosto de jogar baralho, não tenho nenhum outro tipo de hobby. Meu hobby é o estudo de línguas estrangeiras. Desde muito cedo, desde que eu estava na Faculdade de Direito, comecei a estudar alemão, depois estudei japonês, depois estudei russo, e depois hebraico. Mais de uma vez estudei grego antigo. Mas isso não atribui um valor específico à minha experiência, é apenas a minha maneira de ser, a minha maneira de operar. Naturalmente, Octavio Paz é um notável poeta-pensador, tem também as suas peculiaridades, mas formalmente ele tem outros caminhos. 

RM: Acho que ele tem uma veia muito antropológica e também faz isso derivar para a questão da crítica política. Ele tem desenvolvido essa linha.  

HC: São escolhas. 

RM: Sim, são escolhas... Porém, isso provoca indiretamente opiniões por vezes muito maniqueístas. Quando realizei meu trabalho comparativo da obra do senhor com a de Octavio Paz, algumas pessoas me perguntavam: "mas como comparar, se eles são tão diferentes?" Acho que questões como esta tentam colocar os senhores em um certo nicho classificatório, segundo o qual, Haroldo de Campos é um poeta concreto, ao passo que Octavio Paz é um poeta da tradição, porque foi refletir sobre a cultura asteca e falar de questões antropológicas. Entretanto, o ponto de confluência representado por Transblanco é o fato mais evidente que permite questionar esse tipo de classificação. 

HC:  As pessoas que fazem esse tipo de pergunta provavelmente ainda estão presas a uma maneira um pouco redutora de ver as coisas, aqui no Brasil. A poesia concreta, depois de seu lançamento em 1956 em São Paulo e em 1957 no Rio de Janeiro, teve um impacto muito violento e polêmico, porque colocou em questão exatamente a tradição do verso, num momento em que muitas pessoas estavam tentando reabilitar o soneto, especialmente a chamada "Geração de 45". Foi uma intervenção muito violenta e, como ela foi inicialmente muito radical e muito ortodoxa, colocou a poesia "em pânico".  

        Nós, pessoalmente, tínhamos uma carreira anterior à poesia concreta, porque em 1951 cada um de nós já tinha um livro publicado. Em 1950, saíram o meu Auto do possesso e O carroussel, de Décio Pignatari, e, em 1951, Augusto lançou O rei menos o reino. Em 1952, já tínhamos lançado o primeiro número de Noigandres e o segundo número, em 1955, continha o meu poema Ciropédia. A poesia concreta estreou publicamente em 1956 e depois veio a fase mais radical, com os poemas de poucas palavras, tipo "Nascemorre" e "Branco", que são poemas bastante mondrianescos, minimalistas. Os primeiros poemas já inteiramente concretos são, porém, os da série Poetamenos, de meu irmão Augusto, e datam de 1953 (impressos em várias cores). 

        Acho que as pessoas, a partir daquele impacto, nunca mais se recobraram, nunca foram capazes de assimilar até a própria evolução de nosso trabalho. Eu deixei de fazer poesia concreta, no sentido estrito, já no final dos anos 60. Quer dizer, no momento em que ainda estava fazendo alguns poemas concretos, eu já estava escrevendo as Galáxias, obra que comecei em 1963 e cujos primeiros fragmentos publiquei em 1964. As Galáxias são uma experiência que tem ligação com a poesia concreta, no plano micrológico, microestrutural, mas são uma experiência exatamente de sinal oposto, porque, em vez de ser a compactação minimalista, são a expansão neobarroca, na sua pulsão mais veemente. Entretanto, algumas pessoas - muitas delas, inclusive, no meio acadêmico - ficaram com a idéia errada e são as que mais lentamente assimilam as coisas novas, quando assimilam... Ficaram com a idéia de que "aquele é um poeta concreto". É importante observar que Octavio Paz não ficou marcado como um "poeta surrealista" - embora se saiba que ele foi durante algum tempo surrealista de preceito, ligado a Breton, e participante de seu grupo. Ao contrário, eu, Augusto e Décio ficamos marcados como "concretistas", a exemplo dos Andrades - Mário e o Oswald - que, em um certo momento, ficaram marcados como "futuristas". 

        Na verdade, para mim isso é indiferente. Eu hoje entendo o concreto, não mais naquele sentido específico de poesia concretista. O concreto existe no sentido da materialidade da linguagem, e nesse sentido é que eu sempre fui e serei um poeta concreto. Qualquer poeta, em qualquer tradição, tem de ser concreto, porque o poeta que não traduz a sua postura na materialidade da linguagem não faz poesia, faz um discurso sentimental, um discurso filosófico, mas não faz poesia. A poesia depende da concreção da linguagem, daquilo que é considerado a "materialidade" do signo. Nesse sentido mais vasto, continuo poeta concreto, mas as pessoas, às vezes, perdem a noção de que a minha poesia teve um antes e tem um depois. Eu publiquei vários livros como Signância quase céu (experiências das mais diferentes), posteriormente ao momento mais estritamente concretista. 

        Mas, voltando à comparação de minha poesia com a de Octavio Paz, se for traçado um paralelo entre o seu trabalho e o meu, numa perspectiva mais ampla, levando em conta, não apenas a fase "concretista", mas os vários momentos de meu percurso, como se faz com Paz, há muitas coisas a serem discutidas. Por exemplo, as Galáxias, que eu comecei a escrever em 1963 e conclui em 1976, representam um caso limite de poesia e prosa que poderia ser objeto, por exemplo, de uma comparação com El mono gramático, que é um livro bastante posterior, mas que tem a característica de ser, não só um livro crítico, mas um livro produzido nos limites entre a poesia e a prosa. Eis aí um aspecto, um paralelo, não ao nível da crítica de influências - pois isso não interessa - mas ao nível das propostas de cada poeta; um paralelo que pode ser traçado com fecundidade, porque trata de duas etapas do trabalho representativas de cada um. Isso também pode ser feito com a poesia visual. Meu trabalho neste campo, por exemplo, a série "Fenomenologia da Composição" O âmago do ômega (1955-1956), aqueles poemas que escrevi em branco sobre preto, podem ser um tema, um ponto de referência para estabelecer uma conversa a respeito de Blanco de Octavio Paz, e de sua relação com a poesia visual. 

        Como se vê, há vários momentos de meu percurso poético que podem ser comparados ao percurso de Paz, sem falar do trabalho crítico, da maneira como vejo a tradução e a tradição. O fato de eu ser um poeta que em determinado momento praticou uma poesia de extrema vanguarda, minimalista, não me impediu nunca de traduzir as literaturas mais remotas, as literaturas mais diversas, as mais aparentemente distantes do meu próprio trabalho, na medida em que eu acreditava, desde o início, na confluência de toda poesia na e sobre a linguagem. Assim, a mesma preocupação de Paz com os astecas, ou com certos aspectos da cultura mexicana, ou hindu, no meu caso, eu a transferi para o repertório fundante da literatura ocidental. Traduzi Dante. Traduzi as cenas finais do Segundo Fausto. Traduzi Mallarmé, Un coup de dés. Da Ilíada, embora não tenha um projeto de tradução integral, traduzi o Canto I, a "Ira de Aquiles". Com a poesia hebraica, eu fiz coisa similar: traduzi o Eclesiastes, o Bere'shith (Gênese), o "Discurso de Deus" a Jó. Traduzi, ademais, poesia japonesa e chinesa. 

        Eu diria que há muitos aspectos - por mais diferentes que sejam as resultantes, ao nível da prática poética - de confluência na maneira com que Octavio Paz vê a literatura e na maneira pela qual eu também a vejo, na medida em que ambos somos interessados pela tradução, ambos somos interessados pelo repensamento crítico da tradição, naturalmente desde a tradição mais remota até o Romantismo e aquilo que se pode chamar de "tradição moderna". Ora, evidentemente, na obra de cada um de nós, isso produziu muitas vezes percursos e resultados diversos, mas também produziu confluências e momentos de bastante diálogo. O importante é exatamente pensar tudo isso muito mais em termos de convergência e diálogo, do que em termos de "influência", entendida esta à maneira tradicional. E é exatamente isso, a diferença aliada ao diálogo, o que faz o assunto se tornar interessante. 

RM: Não sei se Octavio Paz realmente conseguiu realizar o projeto de fazer um filme baseado em Blanco. Isso viria a formar parte de seus trabalhos no campo da poesia visual, campo em que ele reconhece os esforços dos poetas concretos. Mas se eu considerar um trabalho como os vídeo-poemas que os senhores estão desenvolvendo, não acharia nada semelhante na obra de Octavio Paz. Em Poesía y fin de siglo, Paz comentava que estava começando a projetar poemas na tela do televisor. O senhor tem alguma notícia destes trabalhos? 

HC: Li em algum lugar que ele tinha feito experiências desse tipo, mas acho que foram os Discos visuales, em colaboração com Vicente Rojo. Ele tinha um plano cinematográfico a respeito de Blanco, mas nunca cheguei a ver nada do que teria sido feito nessa direção. 

RM: E quanto ao tema do barroco? Parece que a diferença assinalada pelo senhor com respeito ao Oriente, de certa forma se repete. Em seus trabalhos sobre o barroco, noto a existência de um olhar dirigido com certa ênfase sobre a escritura e a linguagem. Em Octavio Paz, a abordagem do barroco, baseada principalmente na análise da obra de sor Juana Inés de la Cruz, ocorre numa linha muito mais próxima da história da cultura, da antropologia cultural. Os aspectos diretamente vinculados à linguagem partem do ponto de vista da retórica barroca, da métrica. Por exemplo, em um trecho do livro sobre Sor Juana, Paz fala que, no futuro, talvez os poetas olhem para ela, vejam a questão da métrica e tentem resgatar as formas que a poeta levou ao máximo desenvolvimento. A visão de Paz aproxima-se muito mais da questão retórica, da recuperação das formas fixas, do que da concepção da "concretude da linguagem" que o senhor explicou. Não há nele esse aspecto do "verbi-voco-visual" que os poetas concretos procuraram. 

HC: Nunca dialogamos diretamente sobre o assunto do barroco, inclusive porque quando Paz publicou o livro sobre Sor Juana, o período de nossa correspondência mais freqüente já tinha praticamente se encerrado. Ambos estamos mais velhos, mas Paz, sobretudo, ficou muito absorvido por outras atividades. Passou a ser um poeta muito assediado pela imprensa e, dada a sua projeção internacional, teve cada vez menos possibilidade de entabular e manter correspondência. De minha parte, por questões principalmente de falta de tempo, também fui me tornando um correspondente mais difícil. A fase que está documentada no Transblanco é o momento áureo, digamos assim, da nossa relação epistolar. Os problemas discutidos naquelas cartas foram os que chegamos a abordar com suficiente profundidade. 

        Quanto ao barroco, o diálogo existe, mas de uma maneira implícita, dada a publicação de seu trabalho sobre Sor Juana e do meu Seqüestro do barroco. Aí, evidentemente, temos uma visão até certo ponto concorde em relação à importância do barroco, e à necessidade de o barroco ser recuperado com olhos modernos. Por exemplo, Paz vê no poema "Primero sueño" de Sor Juana uma espécie de precursor de Un coup de dés, de Mallarmé, como poema da reflexão, e de Altazor, de Huidobro, em um outro nível. Com olhos do presente, ele recupera a mensagem do passado, isto é, vê a diacronia com olhos sincrônicos. Eu realizo a mesma operação, resgatando o barroco do ponto de vista da modernidade. 

        Há pessoas que taxam de "anacronismo" qualquer tentativa de leitura do barroco que estabeleça seu olhar no presente. Pensam que a idéia de recuperar do passado aquilo que fala ao presente, como diria Walter Benjamin, aquilo que é importante para o presente, é perigosa, pois deforma a história. Alguém dirá que o que Octavio Paz afirma a respeito de Sor Juana é uma invenção modernizante. Algumas pessoas reagiram desse modo quando meu irmão Augusto escreveu que Gregório de Mattos era uma espécie de "primeiro antropófago" da literatura brasileira. Argüíam que Gregório de Mattos não tinha aquela atitude oswaldiana, que aquilo obedecia a outro contexto de época. Lê-lo como um primeiro antropófago era projetar sobre o Gregório a imagem do Oswald, lendo-o, portanto, anacronicamente. Essas pessoas não imaginavam que era uma maneira de fazer o Gregório de Mattos útil para o presente. Ninguém pretendia que o barroco Gregório de Mattos fosse igual ao vanguardista Oswald de Andrade, como Octavio Paz jamais projetou Mallarmé sobre Sor Juana para ler forçadamente o "Primero sueño" como uma espécie de precursão de Un coup de dés. Octavio Paz reconstituiu o contexto de Sor Juana e viu que, nele, o "Primero sueño" se projetava como poema aberto para o futuro. Dessa maneira, no sentido de ver com olhos sincrônicos a diacronia, houve realmente uma atitude semelhante e, nesses termos, existe um diálogo implícito entre a leitura de Sor Juana feita por Octavio Paz e a minha leitura de Gregório de Mattos no Seqüestro do barroco.  

        O estudioso Enrico Mario Santí, numa comunicação sobre Sor Juana, apresentada num encontro em torno de Octavio Paz, no Escorial (Espanha), afirmou que Sor Juana, apesar de ter sua poesia editada ainda em vida, foi objeto, depois, de uma espécie de conspiração de silêncio ao longo do tempo. Santí dizia que, com Sor Juana, apesar de todas as diferenças, tinha havido um "seqüestro", como o de Gregório de Mattos. Foi o livro de Octavio Paz, a releitura feita em Las trampas de la fe, que a resgatou desse "seqüestro", representando a ruptura dessa série de barreiras de rejeição e de menosprezo que a poeta havia sofrido, por razões de tipo religioso, ético e estético. Nesse sentido, a poesia da Sor Juana teria sofrido um "seqüestro", um processo de ocultação, um caso de "rasura" diferente do que ocorreu com Gregório, que nunca chegou a ser editado em vida e não tem sequer um códice do próprio punho (todos os seus códices foram recolhidos por terceiros). De qualquer modo, a "ocultação" funcionou com relação a ambos. 

        Em termos da prática da escritura, desde 1955, no artigo sobre a "Obra de Arte Aberta", eu já falava de "neobarroco", ou da possibilidade de um "barroco moderno", que em vez de tender a uma obra fechada, de tipo "diamante", fosse uma obra aberta. Os traços barroquizantes já aparecem nos meus poemas dos anos 50. Como exemplos, cito os poemas "Lamento Sobre o Lago de Nemi" (1949) e "Teoria e Prática do Poema", ambos incluídos em minha antologia poética Xadrez de estrelas (1976), cujo título já é uma citação do Padre Antonio Vieira, objeto da célebre "Carta Atenagórica" da monja mexicana. 

        Esse traço também está presente no poema "Ciropédia" e permanece na série da "Fenomenologia da Composição", em que há um certo cultivo barroquizante que contrasta com as experiências visuais mais geométricas, "minimalistas". É claro que explode de uma maneira veemente, como eu já disse, nas Galáxias. Quanto à poesia de Paz, vejo uma presença barroquizante no processo escritural, sobretudo no Mono gramático, embora se possam encontrar muitos elementos metafóricos, elementos gongorinos, dispersos por sua poesia. Mas, de fato, talvez seja este o texto onde isso aparece mais concentrado. Certos traços quevedianos, por exemplo, encontram-se no próprio Blanco. Quevedo, aliás, é citado e homenageado mais de uma vez na poesia de Paz. 

RM: Em "Homenaje y profanaciones"? 

HC: Exatamente. Há aí uma menção explícita da obra de Quevedo: o soneto "Amor constante más allá de la muerte". 

RM: E no contexto latino-americano, quais sãos os autores com que o senhor dialoga quanto à questão do neobarroco? 

HC: Dialogo sobretudo com Severo Sarduy. Trocamos cartas e Sarduy escreveu o texto "Hacia la concretud", publicado como apêndice ao meu livro Signância, em que fala sobre o neobarroco. E eu, por meu turno, escrevi um prefácio à edição brasileira de Escrito sobre un cuerpo, onde abordo a presença do barroco em sua obra. Temos muitas manifestações dispersas de correspondência não publicada. O Severo, de fato, é um escritor totalmente neobarroco. Tudo o que ele faz está marcado por essa escolha, e aí encontramos um campo de diálogo muito fecundo. 

RM: Entre o que eu tenho lido de Severo Sarduy, me agrada muito Big Bang. É interessante a junção do barroco com as modernas teorias científicas que Sarduy faz nesse livro, uma coincidência muito feliz no trabalho dos senhores. 

HC: Big Bang... Ele tem outro livro inteiro sobre esse tema, chamado La nueva inestabilidad. Aliás, ele faz uma leitura das Galáxias, em termos de uma teoria cósmica, cosmológica, nesse texto que está como apêndice a Signância Quase Céu. 

        Há um outro autor que tenho que mencionar, embora não latino-americano. Trata-se de Andrés Sánchez Robayna, poeta espanhol muito identificado com os poetas da América Latina, diretor da revista Syntaxis. Ele é um interlocutor tanto de Sarduy quanto meu, a quem conheço desde muito jovem. Eu escrevi o prefácio de Tinta, seu primeiro livro, e sou membro do conselho da revista Syntaxis, desde que ela foi criada há cerca de dez anos. Robayna tem um texto muito interessante que saiu publicado em jornal na Espanha e que vai ser republicado no próximo livro que ele está prestes a editar. É um texto em que Robayna faz uma confrontação entre o lado concreto e o lado barroco da minha poesia, ou seja, entre as Galáxias e os poemas mais visuais, mostrando que entre eles não existe uma oposição, mas sim uma espécie de secreta inter-relação. São como se fossem dois pólos de uma mesma postura diante da poesia. 

        Robayna faz um trabalho muito bem feito, é especialista em Góngora, especialista em Sor Juana... Descobriu na biblioteca da universidade, em Tenerife (Ilhas Canárias), um manuscrito de um poeta barroco canário contemporâneo de Sor Juana, que fez o primeiro comentário ao "Primero Sueño". Esse autor, poeta barroco tardio, tentava explicar o "Primero Sueño", ainda contemporaneamente, dentro do marco do próprio barroco. Quer dizer, não foi um crítico posterior, foi um crítico imerso ainda no barroco. E Robayna resgatou esses comentários, então inéditos, num livro que se chama Para leer Primero Sueño, editado no México, pela Fondo de Cultura Económica. Com Robayna tenho estabelecido um longo diálogo sobre o barroco. Ainda recentemente, trocamos cartas falando de problemas específicos, de autores que eu estou pesquisando e ele também. Robayna está preparando mais trabalhos no campo e eu pretendo fazer uma resenha desse livro sobre o "Primero Sueño", que é um livro dedicado a Octavio Paz. 

RM: Como explicar o neobarroco no contexto da pós-utopia? Como o senhor vê a relação entre o neobarroco e a pós-vanguarda? Segundo o que li em suas entrevistas e nos artigos em que o senhor aborda o tema do fim das vanguardas, há vários elementos que se integram para formar o panorama de uma nova era, que o senhor chama de pós-utópica, na qual fica inscrito o neobarroco. 

HC: Esse caso da pós-modernidade e da questão pós-utópica também é um exemplo de um diálogo implícito com Octavio Paz. Trata-se de mais um diálogo travado, não por cartas ou pessoalmente, mas através dos textos. Em 1984, fui convidado a ir ao México para a celebração dos setenta anos de Octavio Paz e me pediram para falar sobre a crise das vanguardas. E eu, que havia acabado de ler o seu livro Los hijos del limo, tomei-o como pretexto e fiz, não em oposição, mas em correlação com as idéias de Paz, uma formulação do que eu entendia como a situação da vanguarda naquele momento, e que me parece que continua sendo a situação da vanguarda hoje. A minha maior diferença em relação a Paz estava no fato de que ele de alguma maneira aceitava o termo "pós-moderno", segundo afirmava no final do livro. Ele aceitava o termo pós-moderno, embora o considerasse insuficiente para caracterizar a situação em que se dava a poesia naquele momento. Criticava, mas identificava como pós-moderno o tipo de trabalho poético realizado depois, digamos assim, da crise das vanguardas históricas.  

        Eu propunha uma terminologia um pouco diferente, que envolvia uma concepção talvez um pouco distinta da sua, embora não oposta. O termo pós-modernidade não me parecia aceitável, porque eu entendia que não era naquele momento, nos anos 80, ou um pouco antes, que estava se delineando uma pós-modernidade. Eu entendia que moderno era Baudelaire e pós-moderno era Mallarmé. Baudelaire respeitou a estrutura do soneto, a forma tradicional da poesia, e implodiu semântica, métrica e sintaticamente essa forma. Estourou-a a partir de dentro, implodiu-a. Preservou as formas, mas estourou a temática, os elementos tradicionais que essa forma continha. Moderno é Baudelaire, o grande pai da modernidade, como dizia muito bem Walter Benjamin, e pós-moderno é Mallarmé. Mas não qualquer Mallarmé, o Mallarmé especificamente de Un coup de dés, de 1897, quando o poeta explode a forma do poema, dispersa o verso tradicional e as suas medidas tradicionais, e fragmenta prismaticamente a sintaxe, para realmente abrir a era pós-moderna. Acho que estamos vivendo essa era pós-moderna, que ainda estamos na posteridade de Mallarmé. Abordo essas questões no ensaio "Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação; o poema pós-utópico" (publicado na Folha de São Paulo, em duas partes, e na revista Vuelta de Octavio Paz, traduzido por Néstor Perlongher). Penso em incluí-lo num livro que estou preparando com meus ensaios sobre literatura universal. 

        Partindo da tese da associação da modernidade a Baudelaire, da pós-modernidade a Mallarmé, e da abertura do espaço da pós-modernidade por Un coup de dés, passo a examinar as diversas vanguardas, culminando na poesia concreta, não porque ela seja a mais importante - isso seria descabido - mas porque ela levou às últimas conseqüências o problema da linguagem não-discursiva em poesia. Aliás, segundo o próprio Paz, nem Mallarmé, nem Pound romperam radicalmente com o discurso. Quem rompeu com o discurso e tentou compor um ideograma ocidental foram os poetas concretos. Isso não significa que a poesia concreta seja mais importante do que isso ou aquilo. A poesia concreta, na sua fase mais característica, de poesia "minimalista" ou "pré-minimalista" (já que o termo "minimalismo" só foi cunhado posteriormente); enfim, a poesia concreta em seu momento de maior concentração, geométrico, de poucas palavras, realmente procurou realizar verdadeiros ideogramas ocidentais. Nesse sentido, ela foi mais radical, porque rompeu mais com o discurso do que o próprio Mallarmé, do que o próprio Pound. Isso, aliás, é uma coisa que o Octavio reconhece numa carta importante, publicada em Transblanco. 

        Ora, a partir do momento em que o processo da chamada pós-modernidade foi levado ao extremo, eu expando o raciocínio. Após ter examinado as várias tendências da vanguarda em várias literaturas, inclusive na latino-americana, eu expando o contexto para refletir sobre o que é que faz com que uma vanguarda seja vanguarda. A conclusão à qual chego é de que uma vanguarda depende de uma atitude coletiva e de um "princípio esperança", ou seja, as vanguardas se caracterizam por uma idéia de querer não apenas modificar a linguagem, mas modificar o mundo, ainda que isso possa ser uma utopia muito tingida de sonho, de idealização. Mas, de fato, todas as vanguardas dignas desse nome são coletivas e têm um projeto coletivo, um "projeto esperança". Maiakóvski estava ligado à Revolução Russa, e os próprios futuristas italianos, com todos os seus erros ideológicos, estavam ligados à idéia da máquina, da modernização.  

        No nosso caso específico, havia todo um projeto de renovação brasileira, havia a criação de Brasília, onde o presidente Juscelino Kubitschek teve como artista predileto o arquiteto Oscar Niemeyer, que era marxista. No Governo Juscelino, havia uma incorporação democrática e mais ampla de setores da população antes marginalizados, e uma grande liberdade no plano das idéias. Celso Lafer estudou os aspectos positivos da "Era Juscelínica". Depois, tivemos a frustração do golpe militar, ditatorial, de 1964, que durou vinte anos. Vinte anos de frustração e sufoco; de censura político-ditatorial, à direita, e de repressão ideológica "estalinista", à esquerda. 

        Houve um momento, então, em que percebi - estávamos nos anos 70 - que mundialmente e no Brasil havia uma crise das certezas ideológicas. Octavio Paz também observaria isso. Paz faria uma crítica ao futuro, afirmando que, em nome exatamente de um futuro idealizado, as necessidades do presente acabaram sendo esquecidas, e, em nome de "paraísos" totalitários, acabaram sendo negadas as tentativas de realização do "aqui e agora". Concordo com Paz e chego à conclusão de que exatamente por essas razões, por essa crise das ideologias e das utopias, por essa urgência de se pensar a poesia do presente e não programar a poesia do futuro, nós estamos vivendo um momento em que a noção de vanguarda e a própria vanguarda como atitude coletiva e como "princípio esperança" entraram em crise.  

        Não quero dizer com isso que amanhã não possa surgir uma vanguarda. Suponhamos que na União Soviética, no que restou da União Soviética, na Rússia pós-comunista, criem-se novas condições para uma perspectiva utópica e possa surgir ali uma poesia de vanguarda. Mas acho difícil que isso aconteça nas condições internacionais, tais como as via nos anos 80 e as vejo agora. A vanguarda está em crise, e os poetas não estão dispostos a se reunir e a abolir suas diferenças, partindo para uma programação da poesia do futuro. Estão tentando reconquistar aquilo que sobra do presente, reconstruir o presente, fazer a poesia do presente com os recursos disponíveis. 

        Mas pós-utopia não é simplesmente uma negação da utopia; é uma negação do aspecto futurológico da utopia. A dimensão crítica com que a utopia nos permitia pensar o presente e exigir dele transformações, isso permanece, como seu principal resíduo vivo. Ou seja, a dimensão crítica da utopia, ínsita, ou interna ao conceito de utopia, continua presente. A utopia perde um pouco dessa idéia visionária de ficar projetando para o futuro aquilo que não pode realizar no presente, mas mantém sua dimensão crítica e, através dessa dimensão crítica, pode fazer a recuperação de certas tradições do passado, que não haviam tido condições de prosperar, e oferecer instigações para o presente. E eu não vejo essa operação como um nostágico e eclético retorno ao passado. Daí eu entender a tradução como uma operação fundamental para a poesia pós-utópica. Tudo isso, muito melhor do que estou explicando agora, está exposto no trabalho "Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação; o poema pós-utópico", que mencionei. Tradução como dispositivo crítico de leitura e reprocessamento da tradição viva. 

RM: Complementando esse aspecto utópico da vanguarda, eu gostaria de fazer algumas perguntas ao senhor no que toca à vanguarda como educação da percepção. No começo do movimento da poesia concreta, Décio Pignatari, Augusto de Campos e o senhor ampliaram seu leque de recursos poéticos, seguindo as idéias do verbi-voco-visual. Depois, ajustando-se ao que chamaram de "fisiognomia da nossa época", avançaram na incorporação das novas tecnologias na produção poética. Agora, os senhores continuam aquele projeto conjunto na elaboração dos vídeo-poemas. Experimentaram a televisão, o laser e, agora, o vídeo e o computador. A imagem, neste último, já aparece viva, animada, como os senhores a pensaram nos anos 60. Me parece uma culminação desse trabalho, mas que também aponta, penso eu, para um determinado impasse na questão da tecnologia que pode ser aproveitada como um meio para expandir as faculdades perceptivas do homem. Como o senhor vê esta situação? O trabalho dos senhores se encerra nesse ponto ou existe algum novo projeto se desenvolvendo na linha de aproveitamento dos recursos tecnológicos? 

HC. As posições de cada um de nós são diferentes. Minhas preocupações atuais, no que eu chamo de fase da poesia pós-utópica, da poesia da presentidade, estão muito ligadas ao meu projeto de tradutor-transcriador. Estou muito ligado à idéia do verbal, da possibilidade de refazer o passado no presente, mantendo um ponto de vista crítico. Reutilizar elementos da minha experiência de tradutor para enfrentar novos problemas que a minha poesia coloca e que a minha dicção poética propõe. Por exemplo, entre os novos poemas de minha coletânea editada pela Global, há dois que se chamam "Rimas Petrosas" e que são influenciados por minha tradução da lírica de Dante. Um poema que tem uma epígrafe tirada do Cântico dos cânticos é também influenciado pela minha leitura bíblica. E assim por diante. 

        Enfim, eu estou muito voltado atualmente para o elemento verbal e para a possibilidade de reaproveitamento da minha experiência de tradutor na realização da minha poesia em várias dicções, mantendo sempre, evidentemente, esse sentido crítico da utopia. Mas, é claro, se por uma parte o termo "vanguarda" não tem nenhum sentido, por outra, tem muito sentido. Se me perguntassem: "o senhor é de retaguarda ou de vanguarda?", eu responderia: "sou de vanguarda". Mas "vanguarda" não é um termo satisfatório. No meu modo de ver, vanguarda hoje não exprime exatamente a atitude da consciência crítica pós-utópica, pela qual me interesso. Porém, se eu tiver que optar em uma disjunção retaguarda-vanguarda, é evidente que direi sempre que meu trabalho representa uma vanguarda e sustentarei isso. Representa a vanguarda possível em um quadro pós-utópico. De modo nenhum é um trabalho que cultiva a nostalgia - essa sim de retaguarda -, que se interessa por uma restauração eclética, de tudo permitido, de "vamos voltar ao soneto", nada disso. Essas posições nostálgicas são "acríticas" e não me dizem respeito. 

        Quanto aos novos media, às novas tecnologias, eu vejo o seu aproveitamento como uma possibilidade de meu trabalho, mas não como a única. Sempre tive ligações e interesses pela música, pela pintura. Além da historiografia literária, da tradução, da poesia de várias línguas, sempre me interessei por outros sistemas semióticos. Nessa linha, tenho desenvolvido um trabalho conjunto com o cineasta Júlio Bressane. Acabamos de completar, com a atriz Betty Coelho, o segundo vídeo de uma trilogia baseada em textos das minhas Galáxias: Galáxia albina, Galáxia dark e Galáxia ruiva. Também tenho feito outras experiências de vídeo com o grupo de vídeo-makers que colabora com Júlio Bressane aqui em São Paulo: Cássio Maradei e Gil Hungria.  

        No que toca a trabalhos com computador, tenho realizado alguns, juntamente com Augusto e Décio, no Laboratório de Computação Gráfica da Escola Politécnica da USP. Entretanto, não dou a esse tipo de atividade um caráter principal. Para mim ele é uma linha possível. Já o caso de meu irmão Augusto é diferente, pois sua proposta poética é mais intersemiótica, de modo que o seu trabalho caminha muito para os novos media. Isso fica claro no seu trajeto, que vai das novas tipografias e grafias ao trabalho em computador. Há tempos ele adquiriu um computador pessoal e hoje está trabalhando muito nele, às vezes com a colaboração de Arnaldo Antunes, o jovem poeta e músico que foi ligado aos "roqueiros" Titãs. Augusto está fazendo experiências interessantíssimas neste campo, experiências que interferem em sua atividade como crítico e tradutor. Por exemplo, seu último livro, sobre Rimbaud, além de ser um livro de transcriações poéticas, foi planejado graficamente como uma homenagem intersemiótica a Rimbaud. Augusto trabalha com outras linguagens, usa o computador para fazer uma espécie de poema semiótico. Na programação visual do livro esses interesses pelo computador e pelas novas linguagens computacionais interferem. 

        Eu não tenho um computador, não tenho interesse em ter computador pessoalmente. Não me afeiçôo a isso. Sou uma pessoa que até hoje ainda gosta de escrever à mão, bater à máquina. É claro que o trabalho em computador é importante, mas não é o que me está seduzindo. Pode ser que no futuro eu venha até a fazer essa experiência, mas no momento não é o meu gosto particular.  

        O caso de Décio Pignatari é, digamos assim, intermediário, porque ele é, ao mesmo tempo, poeta e prosador, mas é também pintor, tem ateliê, gosta de pintar e tem toda uma atividade nesse campo. Ele tem mais inclinações do que eu nessa área. Décio participa, conosco, do trabalho conjunto com o grupo da Escola Politécnica, realizado em supercomputador. Mas, que eu saiba, não está trabalhando no momento em computador pessoal. No passado recente, interessou-se pela holografia, experiência que compartilhou com Augusto, e da qual não participei, por estar envolvido em outros trabalhos.  

        A diferença de Augusto e Décio, tenho trabalhado mais com vídeo. Meu envolvimento com esse tema decorre de minha associação com Bressane. Vem desde o filme Os Sermões (vida do Pe. Antônio Vieira), em que tive uma rápida participação; depois, um curta-metragem sobre Oswald de Andrade, Encontro de Oswald e Isadora, em que dei assessoria poética ao Bressane, até o projeto da trilogia em redor de Galáxias. Trata-se de um projeto de poema-cinema, proveniente da colaboração entre cineasta e poeta (um poeta que, nos vídeos, se faz também "performer", lendo textos das Galáxias). 

        Concordo com você quando diz que as novas tecnologias permitiram que nós realizássemos muitas coisas que tínhamos entrevisto na época mais ortodoxa da poesia concreta e que só agora, através do raio laser (das experiências patrocinadas pela Folha de São Paulo), do vídeo, do computador, podem encontrar um nível ideal para sua realização. Isso de fato é verdade. Augusto, que talvez tenha sido, entre nós, o mais fiel à experiência original da poesia concreta, até por sua sensibilidade semiótica, está hoje plenamente integrado às novas tecnologias.  

RM: Pode-se dizer que o projeto do senhor aproxima-se mais de uma linha de trabalho verbal? O que o senhor tem publicado ultimamente e quais são seus planos futuros? 

HC: Meu trabalho se aproxima da linguagem verbal, mas não em um sentido estrito, um verbal fechado. Um verbal visando às outras linguagens, verbal com abertura intersemiótica. O meu medium específico não é necessariamente o computador, nem o vídeo, é a linguagem e a linguagem servida pelo livro. Pretendo publicar uma nova coletânea de poemas, em relação à qual o conjunto de novos poemas que saiu em minha antologia da Editora Global funciona como uma amostra. Meu projeto, como já disse, não está ligado necessariamente ao trabalho no computador, ainda que o livro vá incluir alguns poemas nessa linha. Quanto à experiência com o vídeo, vou continuá-la, porque para mim é muito prazeroso trabalhar com Júlio Bressane que, no meu modo de ver hoje, é o nosso maior cineasta de vanguarda. 

        Em 1993, publiquei um conjunto de cerca de vinte poemas que escrevi durante minha visita ao Japão, em 1990. Eu o intitulei Yuguen: charme sutil e foi publicado em uma versão para o espanhol, por Andrés Sánchez Robayna, como brinde dos dez anos de aniversário da revista Syntaxis. Estou inclinado a fazer uma edição aqui com as fotos que a minha mulher Carmen tirou desses locais que eu tematizo, as etapas da minha viagem pelo Japão: os templos, os túmulos de Bashô, de Fenollosa, etc..  

        No campo da tradução, lancei uma recriação da peça "Hagoromo", pela editora "Estação Liberdade". O texto é bilingüe, e vem acompanhado de um ensaio introdutório meu e de ilustrações de Tomie Othake. No campo da poesia bíblica, publiquei Bere'shith, a cena da origem, minha tradução da primeira história da criação, mais um capítulo do "Livro de Jó" e ainda um terceiro ensaio sobre a intertextualidade nessa poesia bíblica.  

        Neste ano realizaram-se duas reedições: Transblanco, com mais alguns textos sobre Paz, e Ideograma com um novo prefácio meu. Ainda este ano, ou no começo do próximo, vai sair a minha reedição de uma tradução feita por um poeta pré-romântico brasileiro, José Elói Ottoni, a partir da versão latina do "Livro de Jó". Essa tradução estava completamente esquecida e eu a reponho em circulação. Quero também publicar um trabalho sobre aspectos da tradução poética; tenho semi-pronto um livro sobre poética da tradução, um conjunto de ensaios que se chama Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. Tenho finalmente uma coletânea de ensaios, que eu estou organizando, sobre temas de literatura universal, com o título O Arco-íris branco, que é uma expressão extraída de Goethe. Sem falar de outra reedição em projeto: as minhas traduções de Dante, tanto as "Rimas Petrosas" como os "Seis cantos do Paraíso". Então já tenho muita coisa a fazer. Trabalho não falta. Energia (espero) tampouco... 

  

          Agosto 1994
 

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Página  atualizada  por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  06  de janeiro de 1998