RM: Qual é a relação
estabelecida entre o senhor e as vanguardas hispano-americanas? Parece
que esse aspecto de seu trabalho não está condensado ou recolhido
de maneira suficientemente clara.
HC: O trabalho que mais dados oferece
para a compreensão de minha relação com o pano de
fundo latino-americano, hispano-americano mais especificamente, é
"A Ruptura dos Gêneros", do qual existem duas versões. Em
América Latina en su literatura, coletânea da UNESCO, publiquei
uma versão mais condensada, obedecendo ao limite de páginas
definido para a confecção da antologia. A versão completa
foi publicada depois, na coletânea "Elos" da Editora Perspectiva,
sob o título Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana.
Para completar o volume, inclui uma conversa-entrevista que tive com o
poeta português Melo e Castro sobre o problema do barroco. Esse é
o texto que mais circunstanciadamente estabelece meus vínculos com
a vanguarda latino-americana. Traz as minhas preferências - meus
vínculos na órbita das preferências - que também
tenho referido em outras passagens, como nos ensaios "Constelação
para Octavio Paz" (publicado em Transblanco e em Signos em rotação)
e "Da razão antropofágica" (publicado em Metalinguagem).
Ruptura dos gêneros... traz a relação básica,
a relação que privilegio no contato com a vanguarda latino-americana
e que também orientou, em certa medida, meus contatos pessoais.
Além desse texto, há um pequeno trabalho em que falo do meu
itinerário latino-americano. Foi publicado há pouco, na revista
Mário, da Secretaria Estadual da Cultura do Centro de Estudos Mário
de Andrade, edição comemorativa do centenário do escritor
paulista.
Minha relação
com a vanguarda latino-americana começou passando por Vicente Huidobro
e César Vallejo e, mais tarde, mostrou coincidências surpreendentes
com Oliverio Girondo. Apenas em 1971, quando estive em Austin, Texas, como
professor visitante, é que tive a oportunidade de conhecer En la
masmédula, publicada pela Losada, em 1956. Talvez houvesse alguma
outra edição ligeiramente anterior, alguma edição
privada, mas a primeira edição para efeitos públicos
é a de 1956, que só conheci em 1971. Essa obra me deu imediatamente
a noção de quão próximos, embora talvez com
premissas e endereços diferentes, tínhamos estado Girondo
e eu. Os poemas de En la masmédula, sobretudo os mais radicais,
parecem estabelecer um diálogo com os poemas de uma série
que comecei a escrever em 1955, e que publiquei em 1956, chamada O âmago
do ômega (os poemas de tipografia em branco sobre preto). Lamentei
muito não ter conhecido seu livro antes, já que poderia ter
ido a Buenos Aires e estabelecido contato pessoal com Girondo, o que em
1971 já não era possível, pois o escritor argentino
havia morrido. Jorge Schwartz fez um estudo sobre essa aproximação
num capítulo de seu Vanguarda e Cosmopolitismo, comparando O âmago
do ômega --os poemas da "fenomenologia da composição"--
e En la masmédula.
Por volta de 1957, meu
irmão Augusto de Campos traduziu um fragmento de Altazor, de Huidobro,
publicado no Jornal do Brasil. Quanto a Vallejo, também conhecíamos
e líamos a edição de Trilce, publicada na Argentina.
Nosso interesse pela vanguarda latino-americana compreendia, entre outros,
esses autores, quando tomei conhecimento de uma nova vanguarda, representada
por Rayuela, de Cortázar, romance precedido de Los reyes. Em 1967,
escrevi o primeiro ensaio publicado no Brasil sobre Rayuela, "O jogo da
amarelinha", no Correio da Manhã. A partir daí, e depois
de eu ter enviado este ensaio a Cortázar, além dos números
até então publicados da revista Invenção, surgiu
primeiramente um contato, depois transformado em amizade pessoal, que durou
alguns anos. Cortázar veio duas vezes ao Brasil e eu fui convidado
a fazer o prefácio, a introdução ao volume sobre Rayuela,
publicado na coleção Archives, volume organizado por Saúl
Yurkiévich e Julio Ortega, igualmente meus amigos pessoais.
O contato com Octavio
Paz deu-se um pouco mais tarde, em 1968 (o que narro no prefácio
ao Transblanco), através de Celso Lafer, que havia sido seu aluno
e comentado sobre o interesse do poeta mexicano pela poesia concreta. Surgiu
então toda a nossa correspondência. Paralelamente, estabeleci
contato pessoal, nexos, relações de amizade com Severo Sarduy,
com Cabrera Infante, sempre com a característica de que essas relações
não eram relações buscadas diretamente no nível
pessoal, mas partiam, antes, de um interesse estético em comum.
O nível pessoal surgia como conseqüência do nível
estético. Entrei em contato com Sarduy, não em função
de alguma atividade diplomática ou mundana, mas porque estava interessado
em sua obra De donde son los cantantes. Foi a partir de meu interesse e
dos contatos que posteriormente estabelecemos que nossa amizade se firmou.
Sarduy escreveu sobre minha poesia e eu publiquei e prologuei os ensaios
de Escrito sobre um corpo, aqui no Brasil. Hoje, venho acompanhando a tradução
de Jorge Schwartz de De donde son los cantantes, que deverá ser
ultimada. Propus para esse romance o título, em português,
Cantando seus males espantam. Com Cabrera Infante deu-se o mesmo. Eu o
conheci por intermédio de Tres tristes tigres, um livro que me interessou
muito. Estabelecemos contatos e ele também se interessou pela poesia
concreta. Desse ponto de partida textual, estético, nasceu a relação
de ordem pessoal.
Além de romancistas
e poetas, também mantive contatos com críticos, como Emir
Rodríguez Monegal, grande amigo meu, com quem troquei muitas informações,
experiências, e cuja perda foi muito triste para as letras brasileiras.
Monegal era um dos raros críticos hispano-falantes e professores
de literatura latino-americana que davam ao Brasil um lugar de destaque.
Nunca deu um curso em que não falasse dos autores brasileiros a
par dos hispano-americanos, com a perspectiva da literatura comparada.
Nunca deixou de considerar autores brasileiros como Guimarães Rosa,
Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto e Oswald de Andrade.
RM: É curioso constatar a dificuldade
de intercâmbio existente entre críticos, poetas e romancistas
da América hispânica e da portuguesa. Qual tem sido a experiência
do senhor nessa plano? Qual o papel cultural das traduções?
HC: Sou um leitor de língua brasileira
que, desde a juventude, lê poesia em espanhol. Em meu curso secundário,
o espanhol era matéria obrigatória, e eu estudei durante
um ano língua e literatura espanholas, num momento em que se é
bem receptivo às línguas. Falo e escrevo espanhol, ao contrário
de meus interlocutores latino-americanos, que sempre tiveram muita dificuldade
com o português. Cabrera Infante leu Machado de Assis numa tradução
para o inglês. Cortázar lia português com enorme dificuldade,
fazendo um grande esforço. Os autores tinham muito interesse pela
literatura em língua brasileira, mas não conheciam bem o
idioma.
Quando comecei minha atividade
poética, a partir dos anos de 1948 e 1949, eu não lia só
poetas brasileiros, lia também muita poesia em espanhol. García
Lorca, por exemplo, era um dos poetas mais lidos na minha geração.
Mas, como eu procurava conhecer tudo o que houvesse nesse campo, além
de Lorca, li Juan Ramón Jiménez e Pablo Neruda. Li muito
precocemente o Trilce de Vallejo. De Huidobro, li os fragmentos que pude
obter, já que só consegui uma antologia bastante representativa
de sua obra em 1959, em minha primeira viagem à Espanha. Em resumo,
enquanto eu era uma pessoa que estava na condição de conhecer
literatura espanhola e hispano-americana por experiência direta de
leitura, de freqüentar aqueles autores na língua original,
meus interlocutores de língua espanhola, quase que via de regra,
estavam descobrindo autores como Oswald de Andrade e Mário de Andrade,
pelas referências que eu mesmo lhes fazia, sem conseguir ter acesso
aos originais em português.
E digo mais, a tradução
para o espanhol do Macunaíma foi feita graças à minha
revisão. Arranjei como editora a Seix Barral de Barcelona, através
da minha amizade com Pere Gimferrer, e acompanhei pessoalmente a tradução.
Se não fosse a minha revisão pessoal, Héctor Olea
não teria conseguido traduzi-lo como o fez. O seu original foi objeto
de uma profunda revisão de minha parte, porém não
uma revisão, digamos assim, do ponto de vista extensivo, e sim do
ponto de vista da orientação, indicando as coisas a fazer,
os jogos de palavras a preservar, a maneira de proceder. E isso eu fiz
com Macunaíma em espanhol, fiz com Macunaíma em francês,
acompanhando a tradução de Thieriot; e também com
Oswald em francês, que acompanhei. Também dei sugestões
a Héctor Olea com relação à tradução
de Miramar e acompanhei as versões italianas de Miramar e Serafim.
Fiz não apenas contatos intelectuais no exterior, como procurei
utilizar as minhas técnicas, o meu conhecimento do problema da tradução,
minha experiência, para que as traduções dos autores
brasileiros no exterior fossem efetivas. Se forem comparadas a tradução
para o espanhol de Serafim Ponte Grande que consta no volume Ayacucho e
a tradução de Miramar, feita por Héctor Olea sob o
meu impulso, do ponto de vista de minha teoria da tradução,
de minhas sugestões de revisão, as diferenças serão
visíveis. A tradução do Serafim não foi feita
sob a minha orientação, pois naquele momento eu estava com
muito trabalho. O Serafim, logo em seu início, tem um jogo de palavras
fundamental. "O primeiro contato do Serafim com a Malícia": é
uma brincadeira com a cartilha, "cá, qué, qui, có,
cu", e a tradutora realmente perde esse jogo. Se esse jogo - que para um
leitor de língua portuguesa é óbvio e até um
pouco chulo, de um nível de linguagem grosseiro, tratado, porém,
com humor - é perdido no início, perde-se desde logo a natureza
do que é o Serafim, que é um jogo de tipo rabelaisiano.
Nas conversas e contatos
com meus amigos latino-americanos, não me preocupei, simplesmente,
em levar a eles meu trabalho pessoal ou informações gerais
sobre a nossa literatura. Na realidade, creio que contribui para que algumas
obras fundamentais, sobretudo, Mário e Oswald, fossem divulgadas
com parâmetros adequados à sua apreciação. Cabrera
Infante, por exemplo, nunca tinha ouvido falar de Macunaíma, um
livro que tem muito interesse para uma pessoa como ele.
Meus contatos obedeciam
a um propósito programático de exportar a literatura brasileira
e de alguma maneira contribuir para a integração dessa literatura
em um contexto latino-americano mais vasto. Achava uma pena que eu pudesse
ler Borges, Cortázar, e que os latino-americanos de língua
espanhola não pudessem ler Oswald e Mário de Andrade. Machado
de Assis já estava traduzido. Como Borges, é um autor de
uma linguagem mais neutra, aparentemente, que não oferece tanta
resistência à tradução. Minha proposta de apresentar
novos autores, de orientar traduções era um projeto de cunho
cultural. Os contatos que estabeleci não foram, como já indiquei,
aleatórios, faziam parte de meu projeto. Procurei autores com os
quais tinha uma afinidade eletiva, do ponto de vista estético.
RM: Falemos um pouco de Octavio Paz.
O senhor observou em Transblanco que o trabalho do poeta mexicano foi de
grande importância para a poesia latino-americana, porque apontava
para o rompimento com o impasse representado pelo estilo pós-nerudiano
que nela se havia instalado.
HC: Bem, o que eu tinha em vista, quando
fiz essa observação, foi que parte da poesia latino-americana
se deixou envolver por uma retórica de metáforas fáceis
que substituía, assim, qualquer preocupação estrutural
com a linguagem do poema. Isto acontecia com o próprio Neruda, mas
sobretudo com seus discípulos e epígonos. A melhor fase de
Neruda, no meu modo de ver, está em Residencia en la tierra e em
alguns momentos do Canto general. Nessa fase, Neruda aproxima-se de Poeta
en Nueva York, de García Lorca, o grande livro metafórico
da poesia em língua espanhola, livro onde a metáfora barroca
explode, mas explode de uma maneira extremamente trabalhada, com grande
critério artesanal, e não em um estilo simplesmente acumulativo.
Depois disso, Neruda acabou desenvolvendo uma espécie de dispositivo
retórico que tornava sua poesia muito previsível (embora
ela tivesse momentos excelentes). De fato, tal dispositivo, sobretudo quando
manipulado pelos epígonos, era bastante monótono e pouco
interessante.
É nesse sentido
que a presença de Paz foi realmente fundamental, pois ele não
era apenas um poeta que produzia sua obra e ficava indiferente ao resto.
Paz era um poeta que exercia uma pedagogia poética, uma pedagogia
pela crítica e pela ensaística. Paz tinha por Neruda uma
consideração especial, por razões não só
pessoais como da estética da poesia latino-americana em língua
espanhola. Não coincidimos nisso, pois minha tradição
é diferente. No entanto, como observador "fora do jogo", tenho condições
de perceber, não simplesmente aquilo que os dois poetas tinham em
comum, mas sim o que a presença de Paz retificava na tradição
nerudiana, que me parecia uma tradição repetitiva e já
sem força. Octavio Paz trouxe de novo a noção de estrutura
para o poema, noção que de certa maneira tinha sido abafada
pela parte mais repetitiva da tradição nerudiana, mas que
já existia em poemas como Altazor, de Huidobro, ou Trilce, de Vallejo.
É preciso notar
que, em relação a essa primeira vanguarda (de Huidobro e
Vallejo), a presença nerudiana foi tão impactante e esmagadora,
que seus elementos acabaram ficando ocultos, latentes. Foi necessária
a emergência de Octavio Paz, com toda sua força de poeta,
crítico, ensaísta, para que os vínculos com essa vanguarda
fossem retomados. Paz, ele próprio, em sua ensaística, prestou
reverência mais de uma vez a Trilce e a Altazor, embora não
tratasse especificamente de Girondo ou de En la masmédula, sua obra
mais radical. Mas, de qualquer maneira, as obras de Vallejo e Huidobro
são anteriores. Como já mencionei, En la masmédula
é de 1956, enquanto Trilce foi publicada em 1922 e o poema Altazor,
em 1931 (embora o próprio Huidobro afirmasse que o vinha concebendo
desde 1919, apesar do aspecto duvidoso que estas declarações
possam oferecer quanto à datação do poema).
Assim, a retomada das
linhas de força de uma poesia estrutural, de uma poesia preocupada
com a linguagem que não fosse simplesmente um "estouro de bardo",
como o era no caso de Neruda, foi realizada por Paz. Seu exemplo serviu
muito às gerações jovens, não só latino-americanas,
já que Paz começou a ser muito traduzido e exportado. Hoje,
sua poesia é um ponto de referência para jovens poetas latino-americanos,
para os de língua inglesa e francesa. Sobretudo nessas duas línguas,
há poetas da geração posterior à de Paz que
aprenderam com ele e que são atentos à sua poesia.
Paz, vale enfatizar, representou
um deslocamento de uma área mais retórica da poesia em língua
espanhola na América Latina, para um pólo muito mais essencial
de uma poesia capaz de refletir sobre o seu próprio mecanismo, capaz
de ser metalingüística em relação ao seu próprio
trabalho. Os textos recolhidos em Transblanco têm esse sentido, inclusive
as cartas que troquei com o poeta, nas quais sublinho minha posição.
A mais extensa carta de Paz, em que ele responde a perguntas instigantes
que eu lhe faço, é uma carta muito bonita. Acho que essa
carta é até rara, pois é a primeira vez, creio, que
ele faz, de uma maneira sintética, um retrospecto de toda a sua
poesia, sua carreira, falando inclusive dessa tradição metafórica
e de sua importância no contexto hispano-americano.
RM: Esta carta representa um ponto fundamental
nas comparações que podem ser feitas entre o seu trabalho
e o de Octavio Paz. Mas podemos dizer que o diálogo iniciado nela
ficou um pouco... bem..."cada qual no seu pedaço", não é?
Trata-se de uma atitude de muito respeito e reconhecimento de um pelo outro,
mas que guarda também uma outra relação, entre duas
linhas da vanguarda. A linha seguida pelo senhor, que participa do trabalho
dos formalistas, do futurismo russo e do construtivismo, e a linha na qual
Paz se inseriu, que atravessa o surrealismo. Para mim, isso traz duas visões
da obra de Mallarmé, que podem ser encontradas principalmente em
"Los signos en rotación", que é o epílogo de El arco
y la lira, de Octavio Paz, e nos textos da Teoria da poesia concreta. O
senhor poderia comentar essas duas aproximações de Mallarmé?
HC: Considero que a poesia francesa
poderia ser resumida, embora de uma maneira brutal, em duas grandes linhas,
do ponto de vista da "tradição do novo", sem falar de Baudelaire,
que constituiria uma espécie de tempo ainda anterior a essas duas
linhas. As linhas da modernidade têm, por um lado, Mallarmé,
que dá a vertente mais estrutural, e, por outro lado, Rimbaud, que
dá a alquimia do verbo, de onde viria o surrealismo. Mallarmé
é o construtivismo e Rimbaud é o surrealismo. Mas isso não
significa que essas duas linhas estejam incomunicáveis, que alguém
não possa ser, ao mesmo tempo, herdeiro de Mallarmé e de
Rimbaud.
Paz é um poeta
com uma herança surrealista muito marcada, que presta todo um tributo
a Breton. Embora respeite o trabalho de Breton, meu interesse por ele é
reduzido. Tenho muito mais interesse em Antonin Artaud e em outras linhas
do surrealismo. Entretanto, Paz foi capaz de conciliar, em sua poesia,
essa alquimia verbal de ascendência rimbaudiana com o pensamento
estrutural do poema, que vem de Mallarmé. Daí a diferença
entre Paz e Neruda.
Paz tem uma dupla consciência,
junta o surrealismo de linhagem rimbaudiana ao senso estrutural, metalingüístico
do poema, proveniente de Mallarmé, e traz uma nova vitalidade à
poesia de língua hispânica (em um momento em que ela estava
dessorada, exatamente por esse cânon nerudiano repetitivo) e também
a possibilidade de um novo poema. Trata-se da linha que eu já rastreio
em Libertad bajo palabra, livro que recolhe a poesia de Octavio até
1958, se bem me recordo. Antes da fase que tem Blanco como seu momento
culminante, a poesia recolhida em Libertad bajo palabra mostrava que Paz
tinha, além de um sentido de construção da metáfora,
uma linha de acordo com o poema condensado, à maneira do haikai
japonês. Tinha também uma linha do poema reflexivo, representada
agudamente por aquele texto "Las palabras". E essas linhas serviram de
antídoto àquele dispositivo narcotizante da metáfora
nerudiana. Tratava-se de resgatar o trabalho cada vez mais digno de ser
revalorizado de poetas como o Vallejo, de Trilce, ou como o Huidobro, de
Altazor.
Considero que a contribuição
fundamental de Paz se encontra ali, e foi a partir do reconhecimento dessa
contribuição que o nosso diálogo se travou. Porque
eu vinha de uma tradição completamente diferente, na qual
nunca pesou o surrealismo, pesou o barroco. O García Lorca de Poeta
en Nueva York, Góngora e toda essa tradição da geração
de Lorca tiveram muita importância desde o começo da nossa
poesia. Na leitura de meu livro de estréia, Auto de Possesso (1950),
deixa-se sentir a presença da metáfora, da lição
da metáfora barroquista, neobarroca. E não só na minha
poesia. Essa presença também é forte na primeira poesia
de Décio Pignatari.
RM: Existe uma outra diferença
que acho fundamental. Trata-se de uma certa "religião da poesia"
que Octavio Paz pratica e que já aparece em El arco y la lira. É
um elemento transcendentalista que se reporta à sua experiência
oriental e a uma visão singular de Mallarmé. Depois, em Los
hijos del limo, Paz chega inclusive a citar uma carta de Mallarmé,
na qual o autor francês diz que enfrentou dois abismos: o Nada, ao
que tinha chegado sem conhecer o budismo, e a Obra. Paz, também
com freqüência, refere-se ao sunyata, o "vazio" budista, onde
os contrários convivem. Isso de certo modo explica suas estratégias
textuais ligadas ao paradoxo. O poeta mexicano usa constantemente o paradoxo
como figura lógica em seu discurso. Ao contrário, o senhor
se volta para um trabalho mais direto com a linguagem; não cria
nunca uma metafísica do fazer poético.
HC: Bem observado. De fato, uma outra
grande influência da poesia concreta, e também do meu trabalho
em particular, foi a pragmática poética de Ezra Pound, a
poesia como um artesanato, como uma questão de competência
artesanal. Pound disse em algum momento que "a sinceridade de um poeta
se mede pela sua técnica". A técnica significa também
alguma coisa de ético, quer dizer, praticar um ofício, como
o ofício poético, significa dominá-lo. Assim, embora
eu leia muita filosofia e tenha muitos interesses pela filosofia oriental,
tanto budista como chinesa ou hindu, e pelo zen budismo na sua formulação
japonesa, a minha relação com o Oriente não provém
de uma relação em termos filosóficos, mas em termos
de linguagem. Eu não fiquei meditando ou lendo, tentando reconstituir,
comprender, abranger ou assimilar em termos ocidentais a visão dos
vários tipos de budismo. Fui diretamente estudar japonês.
É diferente. Em vez de ficar especulando sobre a filosofia zen,
o que fiz, como leitor, foi tomar a filosofia zen, o budismo, no sentido
operacional para a minha poesia.
Nos anos de 1956 e 1957,
estudei japonês. Primeiro como aluno da Aliança Cultural Brasil-Japão,
que se abriu aqui em São Paulo em 1956, e depois como aluno particular
do professor José Sant'Ana do Carmo (especialista brasileiro em
língua japonesa). Estava interessado na estrutura e no funcionamento
do ideograma. Foi nessa época que comecei a fazer minhas primeiras
traduções de haikais, e a cogitar em traduzir, no futuro,
uma peça do teatro nô: Hagoromo. E também, embora nunca
tenha estudado chinês, através do estudo que fiz dos ideogramas,
vi a possibilidade de trabalhar com o chinês clássico, que
é muito simples. Tendo uma tradução bilingüe
e sabendo operar com os ideogramas, pode-se trabalhar com bastante eficácia
no campo, já que se trata de poemas muito reduzidos, de poucas palavras.
Cada ideograma representa uma palavra e, com a ajuda dos textos bilingües
e comentados, é possível recriar esses poemas como eu fiz
com os de Li Tai Po e de outros poetas.
Minha ligação
com o Oriente foi feita, seguindo o exemplo de Pound, através do
contato específico com a linguagem, sobretudo com a linguagem japonesa,
com a técnica do ideograma, e a partir daí com as tentativas
de criar métodos e meios para recriar, ou para transcriar, em português,
aquele tipo de poesia vinda do Oriente. Procurei a intervenção
do próprio ideograma dentro de um texto, de uma estrutura poética
espacializada. Assim, fui introduzindo técnicas da poesia concreta,
espacial, para transcriar o haikai.
Se minha relação
com o Oriente deu-se via linguagem/poesia, talvez a relação
de Paz tenha-se dado sobretudo via filosofia ou via meditação
sobre os vários tipos de pensamento oriental, embora também
possa ter sido via poesia. Entretanto, não me consta que Paz, ao
trabalhar com poesia, tenha estudado alguma língua oriental. Seu
trabalho com os haikais e com a poesia chinesa foi mediado pelas traduções
existentes dos textos para o inglês, o francês ou para o próprio
espanhol; ou então ele trabalhava com uma pessoa que conhecesse
japonês ou chinês. Eu fui alfabetizado em japonês, em
seus dois alfabetos, os silabários hirakana e katakana, como qualquer
criança que entrasse na escola. Aprendi japonês na mesma cartilha
que se usava nas escolas para crianças, no Japão. Não
havia métodos audiovisuais naqueles anos da década de 1950
(pelo menos não no Brasil). Me dediquei a estudar o ideograma, o
kanji, a técnica da ordem dos traços, o reconhecimento no
dicionário de um kanji, de um ideograma, comecei a traçar
alguns kanjis mais simples. Aprendi aquilo tudo enquanto técnica
operacional da linguagem, o que foi muito importante para mim. Tudo isso
mostra bem o que você disse: minha perspectiva é uma perspectiva
eminentemente do concreto, do material. Vamos falar do ideograma chinês?
Vamos. Mas, em vez de ficar lendo coisas sobre o ideograma chinês
(e eu li muitas), vamos ver como é que isso funciona, estudando
uma língua em que o ideograma existe como instrumento. Foi exatamente
isso que eu fiz.
RM: Então, poderíamos
dizer que foi através da linguagem que o senhor chegou a uma idéia
filosófica da linguagem, não é?
HC: Foi através da linguagem,
embora isso não exclua o fato de eu ter lido muitos livros sobre
zen budismo, sobre budismo hindu, sobre literatura sânscrita. A entrada
efetiva iniciou-se com a tarefa, às vezes penosa, de freqüentar
duas vezes por semana um instituto junto com alunos, na maior parte meninos.
Eu e minha mulher, Carmen, além de sermos os mais velhos da classe,
éramos os únicos brasileiros de origem. Todos os meninos
eram nisseis, tinham outros interesses. Essa experiência não
foi uma experiência muito fácil, nem muito bem resolvida.
Dois dias por semana à noite (o instituto só funcionava à
noite), nós íamos até a Praça da Sé,
onde estava o instituto (e morávamos em Perdizes!). Freqüentávamos
o curso, fazíamos os exercícios, as lições
de casa. Assim, foi através dessa maneira humilde, digamos, modesta,
mas a única possível para se ingressar em uma língua,
que nos iniciamos no japonês. Não se pode pretender estudar
uma língua sem passar por esses trâmites.
Mais recentemente, nos
anos 80, fiz o mesmo com o hebraico. Fui alfabetizado, aprendi a escrever
e a ler hebraico em dois alfabetos diferentes: um manual e outro de letras
de forma. Passava dias traçando aquelas letras. Eu não soube
como é a poesia bíblica, eu li a poesia bíblica em
hebraico. Não toda, mas a parte que me interessava para os meus
propósitos, e a li em hebraico e a traduzi a partir do hebraico.
Mas para isso tive que ser alfabetizado, tive que passar horas e horas
fazendo exercícios penosos. Meu método foi sempre esse, do
contato direto, o que não impede que eu tenha lido muitas coisas
a respeito da língua. No caso da Bíblia, por exemplo, li
muita coisa sobre hermenêutica, sobre filosofia bíblica, sobre
as questões religiosas que a Bíblia invoca. Até ser
possível traduzir, é preciso perceber como é o funcionamento
da língua no plano da superestrutura ideológica, religiosa,
metafísica, etc. Mas a minha entrada é a "física",
através do foco da linguagem.
Entretanto, isso não
quer dizer que eu ache que um ou outro acesso seja melhor ou pior. Trata-se
de uma questão de propensão. Eu, por exemplo, sempre gostei
de estudar línguas. Para mim, sempre foi uma espécie de esporte.
Eu nunca pratiquei esporte nenhum, nem nunca tive predileção
por jogo algum. Aprendi a jogar xadrez e não gostei, não
gosto de jogar baralho, não tenho nenhum outro tipo de hobby. Meu
hobby é o estudo de línguas estrangeiras. Desde muito cedo,
desde que eu estava na Faculdade de Direito, comecei a estudar alemão,
depois estudei japonês, depois estudei russo, e depois hebraico.
Mais de uma vez estudei grego antigo. Mas isso não atribui um valor
específico à minha experiência, é apenas a minha
maneira de ser, a minha maneira de operar. Naturalmente, Octavio Paz é
um notável poeta-pensador, tem também as suas peculiaridades,
mas formalmente ele tem outros caminhos.
RM: Acho que ele tem uma veia muito
antropológica e também faz isso derivar para a questão
da crítica política. Ele tem desenvolvido essa linha.
HC: São escolhas.
RM: Sim, são escolhas... Porém,
isso provoca indiretamente opiniões por vezes muito maniqueístas.
Quando realizei meu trabalho comparativo da obra do senhor com a de Octavio
Paz, algumas pessoas me perguntavam: "mas como comparar, se eles são
tão diferentes?" Acho que questões como esta tentam colocar
os senhores em um certo nicho classificatório, segundo o qual, Haroldo
de Campos é um poeta concreto, ao passo que Octavio Paz é
um poeta da tradição, porque foi refletir sobre a cultura
asteca e falar de questões antropológicas. Entretanto, o
ponto de confluência representado por Transblanco é o fato
mais evidente que permite questionar esse tipo de classificação.
HC: As pessoas que fazem esse
tipo de pergunta provavelmente ainda estão presas a uma maneira
um pouco redutora de ver as coisas, aqui no Brasil. A poesia concreta,
depois de seu lançamento em 1956 em São Paulo e em 1957 no
Rio de Janeiro, teve um impacto muito violento e polêmico, porque
colocou em questão exatamente a tradição do verso,
num momento em que muitas pessoas estavam tentando reabilitar o soneto,
especialmente a chamada "Geração de 45". Foi uma intervenção
muito violenta e, como ela foi inicialmente muito radical e muito ortodoxa,
colocou a poesia "em pânico".
Nós, pessoalmente,
tínhamos uma carreira anterior à poesia concreta, porque
em 1951 cada um de nós já tinha um livro publicado. Em 1950,
saíram o meu Auto do possesso e O carroussel, de Décio Pignatari,
e, em 1951, Augusto lançou O rei menos o reino. Em 1952, já
tínhamos lançado o primeiro número de Noigandres e
o segundo número, em 1955, continha o meu poema Ciropédia.
A poesia concreta estreou publicamente em 1956 e depois veio a fase mais
radical, com os poemas de poucas palavras, tipo "Nascemorre" e "Branco",
que são poemas bastante mondrianescos, minimalistas. Os primeiros
poemas já inteiramente concretos são, porém, os da
série Poetamenos, de meu irmão Augusto, e datam de 1953 (impressos
em várias cores).
Acho que as pessoas, a
partir daquele impacto, nunca mais se recobraram, nunca foram capazes de
assimilar até a própria evolução de nosso trabalho.
Eu deixei de fazer poesia concreta, no sentido estrito, já no final
dos anos 60. Quer dizer, no momento em que ainda estava fazendo alguns
poemas concretos, eu já estava escrevendo as Galáxias, obra
que comecei em 1963 e cujos primeiros fragmentos publiquei em 1964. As
Galáxias são uma experiência que tem ligação
com a poesia concreta, no plano micrológico, microestrutural, mas
são uma experiência exatamente de sinal oposto, porque, em
vez de ser a compactação minimalista, são a expansão
neobarroca, na sua pulsão mais veemente. Entretanto, algumas pessoas
- muitas delas, inclusive, no meio acadêmico - ficaram com a idéia
errada e são as que mais lentamente assimilam as coisas novas, quando
assimilam... Ficaram com a idéia de que "aquele é um poeta
concreto". É importante observar que Octavio Paz não ficou
marcado como um "poeta surrealista" - embora se saiba que ele foi durante
algum tempo surrealista de preceito, ligado a Breton, e participante de
seu grupo. Ao contrário, eu, Augusto e Décio ficamos marcados
como "concretistas", a exemplo dos Andrades - Mário e o Oswald -
que, em um certo momento, ficaram marcados como "futuristas".
Na verdade, para mim isso
é indiferente. Eu hoje entendo o concreto, não mais naquele
sentido específico de poesia concretista. O concreto existe no sentido
da materialidade da linguagem, e nesse sentido é que eu sempre fui
e serei um poeta concreto. Qualquer poeta, em qualquer tradição,
tem de ser concreto, porque o poeta que não traduz a sua postura
na materialidade da linguagem não faz poesia, faz um discurso sentimental,
um discurso filosófico, mas não faz poesia. A poesia depende
da concreção da linguagem, daquilo que é considerado
a "materialidade" do signo. Nesse sentido mais vasto, continuo poeta concreto,
mas as pessoas, às vezes, perdem a noção de que a
minha poesia teve um antes e tem um depois. Eu publiquei vários
livros como Signância quase céu (experiências das mais
diferentes), posteriormente ao momento mais estritamente concretista.
Mas, voltando à
comparação de minha poesia com a de Octavio Paz, se for traçado
um paralelo entre o seu trabalho e o meu, numa perspectiva mais ampla,
levando em conta, não apenas a fase "concretista", mas os vários
momentos de meu percurso, como se faz com Paz, há muitas coisas
a serem discutidas. Por exemplo, as Galáxias, que eu comecei a escrever
em 1963 e conclui em 1976, representam um caso limite de poesia e prosa
que poderia ser objeto, por exemplo, de uma comparação com
El mono gramático, que é um livro bastante posterior, mas
que tem a característica de ser, não só um livro crítico,
mas um livro produzido nos limites entre a poesia e a prosa. Eis aí
um aspecto, um paralelo, não ao nível da crítica de
influências - pois isso não interessa - mas ao nível
das propostas de cada poeta; um paralelo que pode ser traçado com
fecundidade, porque trata de duas etapas do trabalho representativas de
cada um. Isso também pode ser feito com a poesia visual. Meu trabalho
neste campo, por exemplo, a série "Fenomenologia da Composição"
O âmago do ômega (1955-1956), aqueles poemas que escrevi em
branco sobre preto, podem ser um tema, um ponto de referência para
estabelecer uma conversa a respeito de Blanco de Octavio Paz, e de sua
relação com a poesia visual.
Como se vê, há
vários momentos de meu percurso poético que podem ser comparados
ao percurso de Paz, sem falar do trabalho crítico, da maneira como
vejo a tradução e a tradição. O fato de eu
ser um poeta que em determinado momento praticou uma poesia de extrema
vanguarda, minimalista, não me impediu nunca de traduzir as literaturas
mais remotas, as literaturas mais diversas, as mais aparentemente distantes
do meu próprio trabalho, na medida em que eu acreditava, desde o
início, na confluência de toda poesia na e sobre a linguagem.
Assim, a mesma preocupação de Paz com os astecas, ou com
certos aspectos da cultura mexicana, ou hindu, no meu caso, eu a transferi
para o repertório fundante da literatura ocidental. Traduzi Dante.
Traduzi as cenas finais do Segundo Fausto. Traduzi Mallarmé, Un
coup de dés. Da Ilíada, embora não tenha um projeto
de tradução integral, traduzi o Canto I, a "Ira de Aquiles".
Com a poesia hebraica, eu fiz coisa similar: traduzi o Eclesiastes, o Bere'shith
(Gênese), o "Discurso de Deus" a Jó. Traduzi, ademais, poesia
japonesa e chinesa.
Eu diria que há
muitos aspectos - por mais diferentes que sejam as resultantes, ao nível
da prática poética - de confluência na maneira com
que Octavio Paz vê a literatura e na maneira pela qual eu também
a vejo, na medida em que ambos somos interessados pela tradução,
ambos somos interessados pelo repensamento crítico da tradição,
naturalmente desde a tradição mais remota até o Romantismo
e aquilo que se pode chamar de "tradição moderna". Ora, evidentemente,
na obra de cada um de nós, isso produziu muitas vezes percursos
e resultados diversos, mas também produziu confluências e
momentos de bastante diálogo. O importante é exatamente pensar
tudo isso muito mais em termos de convergência e diálogo,
do que em termos de "influência", entendida esta à maneira
tradicional. E é exatamente isso, a diferença aliada ao diálogo,
o que faz o assunto se tornar interessante.
RM: Não sei se Octavio Paz realmente
conseguiu realizar o projeto de fazer um filme baseado em Blanco. Isso
viria a formar parte de seus trabalhos no campo da poesia visual, campo
em que ele reconhece os esforços dos poetas concretos. Mas se eu
considerar um trabalho como os vídeo-poemas que os senhores estão
desenvolvendo, não acharia nada semelhante na obra de Octavio Paz.
Em Poesía y fin de siglo, Paz comentava que estava começando
a projetar poemas na tela do televisor. O senhor tem alguma notícia
destes trabalhos?
HC: Li em algum lugar que ele tinha
feito experiências desse tipo, mas acho que foram os Discos visuales,
em colaboração com Vicente Rojo. Ele tinha um plano cinematográfico
a respeito de Blanco, mas nunca cheguei a ver nada do que teria sido feito
nessa direção.
RM: E quanto ao tema do barroco? Parece
que a diferença assinalada pelo senhor com respeito ao Oriente,
de certa forma se repete. Em seus trabalhos sobre o barroco, noto a existência
de um olhar dirigido com certa ênfase sobre a escritura e a linguagem.
Em Octavio Paz, a abordagem do barroco, baseada principalmente na análise
da obra de sor Juana Inés de la Cruz, ocorre numa linha muito mais
próxima da história da cultura, da antropologia cultural.
Os aspectos diretamente vinculados à linguagem partem do ponto de
vista da retórica barroca, da métrica. Por exemplo, em um
trecho do livro sobre Sor Juana, Paz fala que, no futuro, talvez os poetas
olhem para ela, vejam a questão da métrica e tentem resgatar
as formas que a poeta levou ao máximo desenvolvimento. A visão
de Paz aproxima-se muito mais da questão retórica, da recuperação
das formas fixas, do que da concepção da "concretude da linguagem"
que o senhor explicou. Não há nele esse aspecto do "verbi-voco-visual"
que os poetas concretos procuraram.
HC: Nunca dialogamos diretamente sobre
o assunto do barroco, inclusive porque quando Paz publicou o livro sobre
Sor Juana, o período de nossa correspondência mais freqüente
já tinha praticamente se encerrado. Ambos estamos mais velhos, mas
Paz, sobretudo, ficou muito absorvido por outras atividades. Passou a ser
um poeta muito assediado pela imprensa e, dada a sua projeção
internacional, teve cada vez menos possibilidade de entabular e manter
correspondência. De minha parte, por questões principalmente
de falta de tempo, também fui me tornando um correspondente mais
difícil. A fase que está documentada no Transblanco é
o momento áureo, digamos assim, da nossa relação epistolar.
Os problemas discutidos naquelas cartas foram os que chegamos a abordar
com suficiente profundidade.
Quanto ao barroco, o diálogo
existe, mas de uma maneira implícita, dada a publicação
de seu trabalho sobre Sor Juana e do meu Seqüestro do barroco. Aí,
evidentemente, temos uma visão até certo ponto concorde em
relação à importância do barroco, e à
necessidade de o barroco ser recuperado com olhos modernos. Por exemplo,
Paz vê no poema "Primero sueño" de Sor Juana uma espécie
de precursor de Un coup de dés, de Mallarmé, como poema da
reflexão, e de Altazor, de Huidobro, em um outro nível. Com
olhos do presente, ele recupera a mensagem do passado, isto é, vê
a diacronia com olhos sincrônicos. Eu realizo a mesma operação,
resgatando o barroco do ponto de vista da modernidade.
Há pessoas que
taxam de "anacronismo" qualquer tentativa de leitura do barroco que estabeleça
seu olhar no presente. Pensam que a idéia de recuperar do passado
aquilo que fala ao presente, como diria Walter Benjamin, aquilo que é
importante para o presente, é perigosa, pois deforma a história.
Alguém dirá que o que Octavio Paz afirma a respeito de Sor
Juana é uma invenção modernizante. Algumas pessoas
reagiram desse modo quando meu irmão Augusto escreveu que Gregório
de Mattos era uma espécie de "primeiro antropófago" da literatura
brasileira. Argüíam que Gregório de Mattos não
tinha aquela atitude oswaldiana, que aquilo obedecia a outro contexto de
época. Lê-lo como um primeiro antropófago era projetar
sobre o Gregório a imagem do Oswald, lendo-o, portanto, anacronicamente.
Essas pessoas não imaginavam que era uma maneira de fazer o Gregório
de Mattos útil para o presente. Ninguém pretendia que o barroco
Gregório de Mattos fosse igual ao vanguardista Oswald de Andrade,
como Octavio Paz jamais projetou Mallarmé sobre Sor Juana para ler
forçadamente o "Primero sueño" como uma espécie de
precursão de Un coup de dés. Octavio Paz reconstituiu o contexto
de Sor Juana e viu que, nele, o "Primero sueño" se projetava como
poema aberto para o futuro. Dessa maneira, no sentido de ver com olhos
sincrônicos a diacronia, houve realmente uma atitude semelhante e,
nesses termos, existe um diálogo implícito entre a leitura
de Sor Juana feita por Octavio Paz e a minha leitura de Gregório
de Mattos no Seqüestro do barroco.
O estudioso Enrico Mario
Santí, numa comunicação sobre Sor Juana, apresentada
num encontro em torno de Octavio Paz, no Escorial (Espanha), afirmou que
Sor Juana, apesar de ter sua poesia editada ainda em vida, foi objeto,
depois, de uma espécie de conspiração de silêncio
ao longo do tempo. Santí dizia que, com Sor Juana, apesar de todas
as diferenças, tinha havido um "seqüestro", como o de Gregório
de Mattos. Foi o livro de Octavio Paz, a releitura feita em Las trampas
de la fe, que a resgatou desse "seqüestro", representando a ruptura
dessa série de barreiras de rejeição e de menosprezo
que a poeta havia sofrido, por razões de tipo religioso, ético
e estético. Nesse sentido, a poesia da Sor Juana teria sofrido um
"seqüestro", um processo de ocultação, um caso de "rasura"
diferente do que ocorreu com Gregório, que nunca chegou a ser editado
em vida e não tem sequer um códice do próprio punho
(todos os seus códices foram recolhidos por terceiros). De qualquer
modo, a "ocultação" funcionou com relação a
ambos.
Em termos da prática
da escritura, desde 1955, no artigo sobre a "Obra de Arte Aberta", eu já
falava de "neobarroco", ou da possibilidade de um "barroco moderno", que
em vez de tender a uma obra fechada, de tipo "diamante", fosse uma obra
aberta. Os traços barroquizantes já aparecem nos meus poemas
dos anos 50. Como exemplos, cito os poemas "Lamento Sobre o Lago de Nemi"
(1949) e "Teoria e Prática do Poema", ambos incluídos em
minha antologia poética Xadrez de estrelas (1976), cujo título
já é uma citação do Padre Antonio Vieira, objeto
da célebre "Carta Atenagórica" da monja mexicana.
Esse traço também
está presente no poema "Ciropédia" e permanece na série
da "Fenomenologia da Composição", em que há um certo
cultivo barroquizante que contrasta com as experiências visuais mais
geométricas, "minimalistas". É claro que explode de uma maneira
veemente, como eu já disse, nas Galáxias. Quanto à
poesia de Paz, vejo uma presença barroquizante no processo escritural,
sobretudo no Mono gramático, embora se possam encontrar muitos elementos
metafóricos, elementos gongorinos, dispersos por sua poesia. Mas,
de fato, talvez seja este o texto onde isso aparece mais concentrado. Certos
traços quevedianos, por exemplo, encontram-se no próprio
Blanco. Quevedo, aliás, é citado e homenageado mais de uma
vez na poesia de Paz.
RM: Em "Homenaje y profanaciones"?
HC: Exatamente. Há aí
uma menção explícita da obra de Quevedo: o soneto
"Amor constante más allá de la muerte".
RM: E no contexto latino-americano,
quais sãos os autores com que o senhor dialoga quanto à questão
do neobarroco?
HC: Dialogo sobretudo com Severo Sarduy.
Trocamos cartas e Sarduy escreveu o texto "Hacia la concretud", publicado
como apêndice ao meu livro Signância, em que fala sobre o neobarroco.
E eu, por meu turno, escrevi um prefácio à edição
brasileira de Escrito sobre un cuerpo, onde abordo a presença do
barroco em sua obra. Temos muitas manifestações dispersas
de correspondência não publicada. O Severo, de fato, é
um escritor totalmente neobarroco. Tudo o que ele faz está marcado
por essa escolha, e aí encontramos um campo de diálogo muito
fecundo.
RM: Entre o que eu tenho lido de Severo
Sarduy, me agrada muito Big Bang. É interessante a junção
do barroco com as modernas teorias científicas que Sarduy faz nesse
livro, uma coincidência muito feliz no trabalho dos senhores.
HC: Big Bang... Ele tem outro livro
inteiro sobre esse tema, chamado La nueva inestabilidad. Aliás,
ele faz uma leitura das Galáxias, em termos de uma teoria cósmica,
cosmológica, nesse texto que está como apêndice a Signância
Quase Céu.
Há um outro autor
que tenho que mencionar, embora não latino-americano. Trata-se de
Andrés Sánchez Robayna, poeta espanhol muito identificado
com os poetas da América Latina, diretor da revista Syntaxis. Ele
é um interlocutor tanto de Sarduy quanto meu, a quem conheço
desde muito jovem. Eu escrevi o prefácio de Tinta, seu primeiro
livro, e sou membro do conselho da revista Syntaxis, desde que ela foi
criada há cerca de dez anos. Robayna tem um texto muito interessante
que saiu publicado em jornal na Espanha e que vai ser republicado no próximo
livro que ele está prestes a editar. É um texto em que Robayna
faz uma confrontação entre o lado concreto e o lado barroco
da minha poesia, ou seja, entre as Galáxias e os poemas mais visuais,
mostrando que entre eles não existe uma oposição,
mas sim uma espécie de secreta inter-relação. São
como se fossem dois pólos de uma mesma postura diante da poesia.
Robayna faz um trabalho
muito bem feito, é especialista em Góngora, especialista
em Sor Juana... Descobriu na biblioteca da universidade, em Tenerife (Ilhas
Canárias), um manuscrito de um poeta barroco canário contemporâneo
de Sor Juana, que fez o primeiro comentário ao "Primero Sueño".
Esse autor, poeta barroco tardio, tentava explicar o "Primero Sueño",
ainda contemporaneamente, dentro do marco do próprio barroco. Quer
dizer, não foi um crítico posterior, foi um crítico
imerso ainda no barroco. E Robayna resgatou esses comentários, então
inéditos, num livro que se chama Para leer Primero Sueño,
editado no México, pela Fondo de Cultura Económica. Com Robayna
tenho estabelecido um longo diálogo sobre o barroco. Ainda recentemente,
trocamos cartas falando de problemas específicos, de autores que
eu estou pesquisando e ele também. Robayna está preparando
mais trabalhos no campo e eu pretendo fazer uma resenha desse livro sobre
o "Primero Sueño", que é um livro dedicado a Octavio Paz.
RM: Como explicar o neobarroco no contexto
da pós-utopia? Como o senhor vê a relação entre
o neobarroco e a pós-vanguarda? Segundo o que li em suas entrevistas
e nos artigos em que o senhor aborda o tema do fim das vanguardas, há
vários elementos que se integram para formar o panorama de uma nova
era, que o senhor chama de pós-utópica, na qual fica inscrito
o neobarroco.
HC: Esse caso da pós-modernidade
e da questão pós-utópica também é um
exemplo de um diálogo implícito com Octavio Paz. Trata-se
de mais um diálogo travado, não por cartas ou pessoalmente,
mas através dos textos. Em 1984, fui convidado a ir ao México
para a celebração dos setenta anos de Octavio Paz e me pediram
para falar sobre a crise das vanguardas. E eu, que havia acabado de ler
o seu livro Los hijos del limo, tomei-o como pretexto e fiz, não
em oposição, mas em correlação com as idéias
de Paz, uma formulação do que eu entendia como a situação
da vanguarda naquele momento, e que me parece que continua sendo a situação
da vanguarda hoje. A minha maior diferença em relação
a Paz estava no fato de que ele de alguma maneira aceitava o termo "pós-moderno",
segundo afirmava no final do livro. Ele aceitava o termo pós-moderno,
embora o considerasse insuficiente para caracterizar a situação
em que se dava a poesia naquele momento. Criticava, mas identificava como
pós-moderno o tipo de trabalho poético realizado depois,
digamos assim, da crise das vanguardas históricas.
Eu propunha uma terminologia
um pouco diferente, que envolvia uma concepção talvez um
pouco distinta da sua, embora não oposta. O termo pós-modernidade
não me parecia aceitável, porque eu entendia que não
era naquele momento, nos anos 80, ou um pouco antes, que estava se delineando
uma pós-modernidade. Eu entendia que moderno era Baudelaire e pós-moderno
era Mallarmé. Baudelaire respeitou a estrutura do soneto, a forma
tradicional da poesia, e implodiu semântica, métrica e sintaticamente
essa forma. Estourou-a a partir de dentro, implodiu-a. Preservou as formas,
mas estourou a temática, os elementos tradicionais que essa forma
continha. Moderno é Baudelaire, o grande pai da modernidade, como
dizia muito bem Walter Benjamin, e pós-moderno é Mallarmé.
Mas não qualquer Mallarmé, o Mallarmé especificamente
de Un coup de dés, de 1897, quando o poeta explode a forma do poema,
dispersa o verso tradicional e as suas medidas tradicionais, e fragmenta
prismaticamente a sintaxe, para realmente abrir a era pós-moderna.
Acho que estamos vivendo essa era pós-moderna, que ainda estamos
na posteridade de Mallarmé. Abordo essas questões no ensaio
"Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação;
o poema pós-utópico" (publicado na Folha de São Paulo,
em duas partes, e na revista Vuelta de Octavio Paz, traduzido por Néstor
Perlongher). Penso em incluí-lo num livro que estou preparando com
meus ensaios sobre literatura universal.
Partindo da tese da associação
da modernidade a Baudelaire, da pós-modernidade a Mallarmé,
e da abertura do espaço da pós-modernidade por Un coup de
dés, passo a examinar as diversas vanguardas, culminando na poesia
concreta, não porque ela seja a mais importante - isso seria descabido
- mas porque ela levou às últimas conseqüências
o problema da linguagem não-discursiva em poesia. Aliás,
segundo o próprio Paz, nem Mallarmé, nem Pound romperam radicalmente
com o discurso. Quem rompeu com o discurso e tentou compor um ideograma
ocidental foram os poetas concretos. Isso não significa que a poesia
concreta seja mais importante do que isso ou aquilo. A poesia concreta,
na sua fase mais característica, de poesia "minimalista" ou "pré-minimalista"
(já que o termo "minimalismo" só foi cunhado posteriormente);
enfim, a poesia concreta em seu momento de maior concentração,
geométrico, de poucas palavras, realmente procurou realizar verdadeiros
ideogramas ocidentais. Nesse sentido, ela foi mais radical, porque rompeu
mais com o discurso do que o próprio Mallarmé, do que o próprio
Pound. Isso, aliás, é uma coisa que o Octavio reconhece numa
carta importante, publicada em Transblanco.
Ora, a partir do momento
em que o processo da chamada pós-modernidade foi levado ao extremo,
eu expando o raciocínio. Após ter examinado as várias
tendências da vanguarda em várias literaturas, inclusive na
latino-americana, eu expando o contexto para refletir sobre o que é
que faz com que uma vanguarda seja vanguarda. A conclusão à
qual chego é de que uma vanguarda depende de uma atitude coletiva
e de um "princípio esperança", ou seja, as vanguardas se
caracterizam por uma idéia de querer não apenas modificar
a linguagem, mas modificar o mundo, ainda que isso possa ser uma utopia
muito tingida de sonho, de idealização. Mas, de fato, todas
as vanguardas dignas desse nome são coletivas e têm um projeto
coletivo, um "projeto esperança". Maiakóvski estava ligado
à Revolução Russa, e os próprios futuristas
italianos, com todos os seus erros ideológicos, estavam ligados
à idéia da máquina, da modernização.
No nosso caso específico,
havia todo um projeto de renovação brasileira, havia a criação
de Brasília, onde o presidente Juscelino Kubitschek teve como artista
predileto o arquiteto Oscar Niemeyer, que era marxista. No Governo Juscelino,
havia uma incorporação democrática e mais ampla de
setores da população antes marginalizados, e uma grande liberdade
no plano das idéias. Celso Lafer estudou os aspectos positivos da
"Era Juscelínica". Depois, tivemos a frustração do
golpe militar, ditatorial, de 1964, que durou vinte anos. Vinte anos de
frustração e sufoco; de censura político-ditatorial,
à direita, e de repressão ideológica "estalinista",
à esquerda.
Houve um momento, então,
em que percebi - estávamos nos anos 70 - que mundialmente e no Brasil
havia uma crise das certezas ideológicas. Octavio Paz também
observaria isso. Paz faria uma crítica ao futuro, afirmando que,
em nome exatamente de um futuro idealizado, as necessidades do presente
acabaram sendo esquecidas, e, em nome de "paraísos" totalitários,
acabaram sendo negadas as tentativas de realização do "aqui
e agora". Concordo com Paz e chego à conclusão de que exatamente
por essas razões, por essa crise das ideologias e das utopias, por
essa urgência de se pensar a poesia do presente e não programar
a poesia do futuro, nós estamos vivendo um momento em que a noção
de vanguarda e a própria vanguarda como atitude coletiva e como
"princípio esperança" entraram em crise.
Não quero dizer
com isso que amanhã não possa surgir uma vanguarda. Suponhamos
que na União Soviética, no que restou da União Soviética,
na Rússia pós-comunista, criem-se novas condições
para uma perspectiva utópica e possa surgir ali uma poesia de vanguarda.
Mas acho difícil que isso aconteça nas condições
internacionais, tais como as via nos anos 80 e as vejo agora. A vanguarda
está em crise, e os poetas não estão dispostos a se
reunir e a abolir suas diferenças, partindo para uma programação
da poesia do futuro. Estão tentando reconquistar aquilo que sobra
do presente, reconstruir o presente, fazer a poesia do presente com os
recursos disponíveis.
Mas pós-utopia
não é simplesmente uma negação da utopia; é
uma negação do aspecto futurológico da utopia. A dimensão
crítica com que a utopia nos permitia pensar o presente e exigir
dele transformações, isso permanece, como seu principal resíduo
vivo. Ou seja, a dimensão crítica da utopia, ínsita,
ou interna ao conceito de utopia, continua presente. A utopia perde um
pouco dessa idéia visionária de ficar projetando para o futuro
aquilo que não pode realizar no presente, mas mantém sua
dimensão crítica e, através dessa dimensão
crítica, pode fazer a recuperação de certas tradições
do passado, que não haviam tido condições de prosperar,
e oferecer instigações para o presente. E eu não vejo
essa operação como um nostágico e eclético
retorno ao passado. Daí eu entender a tradução como
uma operação fundamental para a poesia pós-utópica.
Tudo isso, muito melhor do que estou explicando agora, está exposto
no trabalho "Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação;
o poema pós-utópico", que mencionei. Tradução
como dispositivo crítico de leitura e reprocessamento da tradição
viva.
RM: Complementando esse aspecto utópico
da vanguarda, eu gostaria de fazer algumas perguntas ao senhor no que toca
à vanguarda como educação da percepção.
No começo do movimento da poesia concreta, Décio Pignatari,
Augusto de Campos e o senhor ampliaram seu leque de recursos poéticos,
seguindo as idéias do verbi-voco-visual. Depois, ajustando-se ao
que chamaram de "fisiognomia da nossa época", avançaram na
incorporação das novas tecnologias na produção
poética. Agora, os senhores continuam aquele projeto conjunto na
elaboração dos vídeo-poemas. Experimentaram a televisão,
o laser e, agora, o vídeo e o computador. A imagem, neste último,
já aparece viva, animada, como os senhores a pensaram nos anos 60.
Me parece uma culminação desse trabalho, mas que também
aponta, penso eu, para um determinado impasse na questão da tecnologia
que pode ser aproveitada como um meio para expandir as faculdades perceptivas
do homem. Como o senhor vê esta situação? O trabalho
dos senhores se encerra nesse ponto ou existe algum novo projeto se desenvolvendo
na linha de aproveitamento dos recursos tecnológicos?
HC. As posições de cada
um de nós são diferentes. Minhas preocupações
atuais, no que eu chamo de fase da poesia pós-utópica, da
poesia da presentidade, estão muito ligadas ao meu projeto de tradutor-transcriador.
Estou muito ligado à idéia do verbal, da possibilidade de
refazer o passado no presente, mantendo um ponto de vista crítico.
Reutilizar elementos da minha experiência de tradutor para enfrentar
novos problemas que a minha poesia coloca e que a minha dicção
poética propõe. Por exemplo, entre os novos poemas de minha
coletânea editada pela Global, há dois que se chamam "Rimas
Petrosas" e que são influenciados por minha tradução
da lírica de Dante. Um poema que tem uma epígrafe tirada
do Cântico dos cânticos é também influenciado
pela minha leitura bíblica. E assim por diante.
Enfim, eu estou muito
voltado atualmente para o elemento verbal e para a possibilidade de reaproveitamento
da minha experiência de tradutor na realização da minha
poesia em várias dicções, mantendo sempre, evidentemente,
esse sentido crítico da utopia. Mas, é claro, se por uma
parte o termo "vanguarda" não tem nenhum sentido, por outra, tem
muito sentido. Se me perguntassem: "o senhor é de retaguarda ou
de vanguarda?", eu responderia: "sou de vanguarda". Mas "vanguarda" não
é um termo satisfatório. No meu modo de ver, vanguarda hoje
não exprime exatamente a atitude da consciência crítica
pós-utópica, pela qual me interesso. Porém, se eu
tiver que optar em uma disjunção retaguarda-vanguarda, é
evidente que direi sempre que meu trabalho representa uma vanguarda e sustentarei
isso. Representa a vanguarda possível em um quadro pós-utópico.
De modo nenhum é um trabalho que cultiva a nostalgia - essa sim
de retaguarda -, que se interessa por uma restauração eclética,
de tudo permitido, de "vamos voltar ao soneto", nada disso. Essas posições
nostálgicas são "acríticas" e não me dizem
respeito.
Quanto aos novos media,
às novas tecnologias, eu vejo o seu aproveitamento como uma possibilidade
de meu trabalho, mas não como a única. Sempre tive ligações
e interesses pela música, pela pintura. Além da historiografia
literária, da tradução, da poesia de várias
línguas, sempre me interessei por outros sistemas semióticos.
Nessa linha, tenho desenvolvido um trabalho conjunto com o cineasta Júlio
Bressane. Acabamos de completar, com a atriz Betty Coelho, o segundo vídeo
de uma trilogia baseada em textos das minhas Galáxias: Galáxia
albina, Galáxia dark e Galáxia ruiva. Também tenho
feito outras experiências de vídeo com o grupo de vídeo-makers
que colabora com Júlio Bressane aqui em São Paulo: Cássio
Maradei e Gil Hungria.
No que toca a trabalhos
com computador, tenho realizado alguns, juntamente com Augusto e Décio,
no Laboratório de Computação Gráfica da Escola
Politécnica da USP. Entretanto, não dou a esse tipo de atividade
um caráter principal. Para mim ele é uma linha possível.
Já o caso de meu irmão Augusto é diferente, pois sua
proposta poética é mais intersemiótica, de modo que
o seu trabalho caminha muito para os novos media. Isso fica claro no seu
trajeto, que vai das novas tipografias e grafias ao trabalho em computador.
Há tempos ele adquiriu um computador pessoal e hoje está
trabalhando muito nele, às vezes com a colaboração
de Arnaldo Antunes, o jovem poeta e músico que foi ligado aos "roqueiros"
Titãs. Augusto está fazendo experiências interessantíssimas
neste campo, experiências que interferem em sua atividade como crítico
e tradutor. Por exemplo, seu último livro, sobre Rimbaud, além
de ser um livro de transcriações poéticas, foi planejado
graficamente como uma homenagem intersemiótica a Rimbaud. Augusto
trabalha com outras linguagens, usa o computador para fazer uma espécie
de poema semiótico. Na programação visual do livro
esses interesses pelo computador e pelas novas linguagens computacionais
interferem.
Eu não tenho um
computador, não tenho interesse em ter computador pessoalmente.
Não me afeiçôo a isso. Sou uma pessoa que até
hoje ainda gosta de escrever à mão, bater à máquina.
É claro que o trabalho em computador é importante, mas não
é o que me está seduzindo. Pode ser que no futuro eu venha
até a fazer essa experiência, mas no momento não é
o meu gosto particular.
O caso de Décio
Pignatari é, digamos assim, intermediário, porque ele é,
ao mesmo tempo, poeta e prosador, mas é também pintor, tem
ateliê, gosta de pintar e tem toda uma atividade nesse campo. Ele
tem mais inclinações do que eu nessa área. Décio
participa, conosco, do trabalho conjunto com o grupo da Escola Politécnica,
realizado em supercomputador. Mas, que eu saiba, não está
trabalhando no momento em computador pessoal. No passado recente, interessou-se
pela holografia, experiência que compartilhou com Augusto, e da qual
não participei, por estar envolvido em outros trabalhos.
A diferença de
Augusto e Décio, tenho trabalhado mais com vídeo. Meu envolvimento
com esse tema decorre de minha associação com Bressane. Vem
desde o filme Os Sermões (vida do Pe. Antônio Vieira), em
que tive uma rápida participação; depois, um curta-metragem
sobre Oswald de Andrade, Encontro de Oswald e Isadora, em que dei assessoria
poética ao Bressane, até o projeto da trilogia em redor de
Galáxias. Trata-se de um projeto de poema-cinema, proveniente da
colaboração entre cineasta e poeta (um poeta que, nos vídeos,
se faz também "performer", lendo textos das Galáxias).
Concordo com você
quando diz que as novas tecnologias permitiram que nós realizássemos
muitas coisas que tínhamos entrevisto na época mais ortodoxa
da poesia concreta e que só agora, através do raio laser
(das experiências patrocinadas pela Folha de São Paulo), do
vídeo, do computador, podem encontrar um nível ideal para
sua realização. Isso de fato é verdade. Augusto, que
talvez tenha sido, entre nós, o mais fiel à experiência
original da poesia concreta, até por sua sensibilidade semiótica,
está hoje plenamente integrado às novas tecnologias.
RM: Pode-se dizer que o projeto do senhor
aproxima-se mais de uma linha de trabalho verbal? O que o senhor tem publicado
ultimamente e quais são seus planos futuros?
HC: Meu trabalho se aproxima da linguagem
verbal, mas não em um sentido estrito, um verbal fechado. Um verbal
visando às outras linguagens, verbal com abertura intersemiótica.
O meu medium específico não é necessariamente o computador,
nem o vídeo, é a linguagem e a linguagem servida pelo livro.
Pretendo publicar uma nova coletânea de poemas, em relação
à qual o conjunto de novos poemas que saiu em minha antologia da
Editora Global funciona como uma amostra. Meu projeto, como já disse,
não está ligado necessariamente ao trabalho no computador,
ainda que o livro vá incluir alguns poemas nessa linha. Quanto à
experiência com o vídeo, vou continuá-la, porque para
mim é muito prazeroso trabalhar com Júlio Bressane que, no
meu modo de ver hoje, é o nosso maior cineasta de vanguarda.
Em 1993, publiquei um
conjunto de cerca de vinte poemas que escrevi durante minha visita ao Japão,
em 1990. Eu o intitulei Yuguen: charme sutil e foi publicado em uma versão
para o espanhol, por Andrés Sánchez Robayna, como brinde
dos dez anos de aniversário da revista Syntaxis. Estou inclinado
a fazer uma edição aqui com as fotos que a minha mulher Carmen
tirou desses locais que eu tematizo, as etapas da minha viagem pelo Japão:
os templos, os túmulos de Bashô, de Fenollosa, etc..
No campo da tradução,
lancei uma recriação da peça "Hagoromo", pela editora
"Estação Liberdade". O texto é bilingüe, e vem
acompanhado de um ensaio introdutório meu e de ilustrações
de Tomie Othake. No campo da poesia bíblica, publiquei Bere'shith,
a cena da origem, minha tradução da primeira história
da criação, mais um capítulo do "Livro de Jó"
e ainda um terceiro ensaio sobre a intertextualidade nessa poesia bíblica.
Neste ano realizaram-se
duas reedições: Transblanco, com mais alguns textos sobre
Paz, e Ideograma com um novo prefácio meu. Ainda este ano, ou no
começo do próximo, vai sair a minha reedição
de uma tradução feita por um poeta pré-romântico
brasileiro, José Elói Ottoni, a partir da versão latina
do "Livro de Jó". Essa tradução estava completamente
esquecida e eu a reponho em circulação. Quero também
publicar um trabalho sobre aspectos da tradução poética;
tenho semi-pronto um livro sobre poética da tradução,
um conjunto de ensaios que se chama Da transcriação: poética
e semiótica da operação tradutora. Tenho finalmente
uma coletânea de ensaios, que eu estou organizando, sobre temas de
literatura universal, com o título O Arco-íris branco, que
é uma expressão extraída de Goethe. Sem falar de outra
reedição em projeto: as minhas traduções de
Dante, tanto as "Rimas Petrosas" como os "Seis cantos do Paraíso".
Então já tenho muita coisa a fazer. Trabalho não falta.
Energia (espero) tampouco...
Agosto 1994
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