Demócrito Rocha

Rio Jaguaribe
 
 

O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta 
por onde escorre 
e se perde
o sangue do Ceará.
O mar não se tinge de vermelho 
porque o sangue do Ceará 
é azul ...
 

Todo plasma
toda essa hemoglobina 
na sístole dos invernos 
vai perder-se no mar.
 

Há milênios... desde que se rompeu a túnica 
das rochas na explosão dos cataclismos 
ou na erosão secular do calcário 
do gnaisse do quartzo da sílica natural ...
 

E a ruptura dos aneurismas dos açudes...
Quanto tempo perdido!


E o pobre doente — o Ceará — anemiado, 
esquelético, pedinte e desnutrido —
a vasta rede capilar a queimar-se na soalheira —
é o gigante com a artéria aberta 
resistindo e morrendo 
resistindo e morrendo 
resistindo e morrendo 
morrendo e resistindo...
 

(Foi a espada de um Deus que te feriu
a carótida
a ti — Fênix do Brasil.)
 

E o teu cérebro ainda pensa
e o teu coração ainda pulsa
e o teu pulmão ainda respira
e o teu braço ainda constrói
e o teu pé ainda emigra
e ainda povoa.
 

As células mirradas do Ceará 
quando o céu lhe dá a injeção de soro 
dos aguaceiros — 
as células mirradas do Ceará 
intumescem o protoplasma 
(como os seus capulhos de algodão)
e nucleiam-se de verde
— é a cromatina dos roçados no sertão...
 

(Ah, se ele alcançasse um coágulo de rocha!)
 

E o sangue a correr pela artéria do rio Jaguaribe... 
o sangue a correr 
mal que é chegado aos ventrículos das nascentes ...
o sangue a correr e ninguém o estanca...
 

Homens da pátria — ouvi:

— Salvai o Ceará!
 

Quem é o presidente da República?

Depressa
uma pinça hemostática em Orós!
 

Homens —
o Ceará está morrendo, está
esvaindo-se em sangue ...
 

Ninguém o escuta, ninguém o escuta 
e o gigante dobra a cabeça sobre o peito 
enorme,
e o gigante curva os joelhos no pó 
da terra calcinada, 
e
— nos últimos arrancos — vai 
morrendo e resistindo 
morrendo e resistindo 
morrendo e resistindo