Roberto Pontes


Verbo Encarnado, a Lição da Liberdade



por Angela Gutiérrez
O próprio poeta Roberto Pontes lembra, em "Nota posterior" a seus poemas de Verbo Encarnado, que "encarnado é sinônimo de vermelho, havendo nas festas populares acirradas disputas entre os partidos azul e encarnado". Aceitando o mote, ressalto que, além da acepção bíblica de "verbo que se fez carne", junta-se à significação do título do livro de Roberto, a idéia da cor vermelha que, no imaginário ocidental, é a cor da paixão, reiterada, no encarnado, pela etimologia ligada à carne. A acepção de encarnado, como aquilo que é representado, ou penetrado por um espírito, o brasileirismo que considera como encarnado aquilo que assedia, importuna, o simbolismo do encarnado como cor dos partidos de esquerda, tudo isso converge para o título da coletânea de poemas que, hoje, chega ao público cearense. O verbo poético de Roberto é verbo vermelho na palavra-luta; é verbo de carne, na palavra-dor e na palavra-paixão, é verbo que nos assedia, ao exigir, em diferentes modulações, a lição da liberdade.

A mesma "Nota posterior", além de informar sobre datas, nomes e fatos ligados à gestação dos poemas, sendo, portanto, um adendo genético, funciona, também, como uma poética do autor. Nela, Roberto afirma que a poesia não é "exercício para narcisos", mas "fala insubmisssa" que age como "resistência" e como "incitação das consciências". Quem viveu a adolescência e a juventude durante "os anos de chumbo" – entre 64 e 84 – e recorda a sensação do medo, da revolta, da impotência da boca amordaçada que nos afligia nessa "página infeliz de nossa história" (na bela expressão de Chico Buarque em seu samba Vai passar), entende que os poemas de Roberto, escritos entre 64 e 83, são intérpretes dessa "memória corporal" e nos fazem não só recordá-la como reencarná-la.

Em Verbo Encarnado, o poeta nega-se o direito de contemplar a própria imagem; nunca é um só, é sempre um entre muitos: é cidadão do mundo em "Soul por Luther King", "Lembrança de Neruda", "O Pássaro Amarelo" (poema dedicado a Ho Chi Minh); cidadão do Nordeste e de Fortaleza, em "Composição sobre a Peixeira", "Os Nossos Meninos Azuis", "Chula da Rendeira", "Poema para Fortaleza" e tantos mais.

O poeta, naqueles tempos de revolta, traveste seu verbo em arma, como em "A Bala do Poema":

A palavra há de ser a consistência da bala ..................................... A palavra há de trazer o peso do chumbo a quentura a explosão do peito enquanto o amor não for reconhecido. Ou, como em "Dedicatória": Pixe muros faça hinos dê combate à ditadura enforque em cordas de aço toda forma de opressão. Ou, ainda, como em "Definição": trago um chicote inquieto na mão

Mas se, em "Ultrapassagem", o poeta canta o momento feliz da fartura contra a guerra, da liberdade contra o medo, do mundo novo sem miséria, esse é o tempo do futuro:

quando o homem se souber indigno do que até hoje cometeu

Apesar da delicadeza, quase diafaneidade, do poema "Os Ausentes", dedicado a Frei Tito –

Dos ausentes fica sempre um sorriso como as pinturas recheias de surpresa, reencontro e irreal.

– e que abre o livro, na versão em francês, o tom dominante de Verbo Encarnado é o que explode nas imagens audaciosas do ciclo apocalíptico, em "Antevéspera", "Véspera" e "O Dia":

e o ágape servido será dor e veneno. No dia e após o dia a vida irá sumindo lentamente e cheios de medalhas os cus dos generais apodrecendo.

Essas são as últimas palavras do último poema do livro e, apesar de vertidas no futuro, são as que impregnam a nossa memória do passado que o livro do Roberto nos traz, dolorosamente, ao presente.


ANGELA GUTIÉRREZ é Professora Adjunta de Literatura Brasileira no Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará. Doutora em Literatura Comparada pela UFMG. Pertence ao quadro de especialistas da Associação Brasileira de Literatura Comparada – ABRALIC. Autora de O mundo de Flora (romance) e Vargas Llosa e o Romance Possível da América Latina (ensaio).


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