O re-buscamento na poesia de Pontes se dá pelo estabelecimento de uma linguagem, que parece apontar para o novo, que parece dar a saída para o fim do túnel. Essa linguagem é a linguagem da ciência, que sempre faz parecer ter conquistado o universo.
"Um asteróide circula
em perinavegação
a lua telefotografada
em seu hemisfério ocullto
e seu lado alviluz
se vê da rocha dormida
o seio
o ventre
o púbis"
O épico ponteano se dá pelo fato de o homem, a partir dos conceitos forjados por ele, na construção do saber científico, ter a ilusão de poder conquistar o espaço, tanto o interior como o exterior. Essa ilusão dá ao homem a possibilidade de escrever a história como uma história particular, ou uma história de feitos de um particular, que sendo importante, será lembrado pela eternidade, transformando o homem, dessa forma em imortal. Toda a história da Epopéia se deu dessa forma, ou seja, para o homem ser homem ele teria de vencer pela luta e pela coragem, para poder se legitimar enquanto tal e poder ser lembrado pela história , do contrário não seria homem, mas massa, matéria disforme, gado . Isso é o que nos mostra o poeta no último conjunto de versos de sua obra chamado Finito/Infinito:
a cavalgar na luz
a cavalgar na luz
Retorno ao rio do tempo
onde a vida cresce e diminui
o meu transporte é a velocidade
e sou um rei
a cavalgar na luz
a cavalgar na luz
sou imortal e tudo sei
faço parar meu corpo no espaço
controlo a vida na velocidade
sou cavaleiro
a cavalgar na luz
a cavalgar na luz
bebo verdes ondas de energia
há um sol diverso em minhas veias
pois reconheço meus ecos de origem
e a minha voz
a cavalgar na luz
a cavalgar na luz
sou imortal e tudo posso
até mesmo lançar o maior passo
ou retornar ao ponto de onde vim
ou nem sequer saber se vivo ou se morri
a cavalgar na luz
a cavalgar na luz
O papel do homem nessas últimas estrofes do verso ponteano é o de domador da ciência (a luz), daquele que se utiliza de todo o arcabouço teórico construído por ele, no decorrer de sua história, para "cavalgar" nas intempéries do que ainda não foi descoberto. Nesse momento o homem governa o universo, pode estar em qualquer lugar a qualquer momento pois é rei, tudo sabe, tudo domina. Ao cavalgar na luz o poeta, como cavaleiro que tem o controle das rédeas de seu animal (a luz da razão), já não constrói mais mundos, já não instaura mais saberes nem reconstrói espaços, pois ele é o saber, o mundo, a compreensão possível do que seja espaço. No entanto o que permanece na viagem possibilitada pela luz (pela razão) é a dúvida de ser ter chegado a desvendar o que como simples homem sempre se buscou: o espaço amado e criado, onde o homem não necessita mais de lançar-se à realidade para dominá-la pois ela, a cavalgar na luz, já se encontra a seus pés. Daí a dúvida: "estou vivo ou morri?" dos últimos versos. Se se chegou a alcançar o que se procurava a busca é finita e como o homem ao ser atingida morre, nesse momento o homem não é mais homem, é deus pois é onisciência, é onipresença. No entanto, se não se chegou a alcançar o que se procurava a busca é in-finita, e o homem como o sujeito que busca, vive, só que iludido pela luz (que ilumina, mas que também cega). Dessa forma o homem não sabe nada, não pode ir a lugar algum, não conhece nada a respeito de si, não instaura saberes nem constrói espaços ou mundos. É simples presença na busca por um teloV" (fim), que dê sentido à sua via. Finito ou infinito é o título do último conjunto de estrofes e, resolver o dilema significaria simplificar a ambigüidade construída pelo poeta.
No entanto, quer nos parecer, o poeta deixa transparecer a crítica, que se apresenta de forma velada, no decorrer de todo o poema, a um saber que pretende dar conta de todo o real, mas por fim acaba por confundir o homem e iludí-lo, até quanto a única certeza que possui : a finitude. Esse saber se nos mostra sempre travestido do entusiasmo, do qual o homem se vale, para vencer a complexidade do real, a complexidade das palavras utilizadas nos versos. Vencê-las é fazer a experiência do épico, transpassá-las é ter a ilusão da eternidade. No entanto, o homem ao ser confundido, se vê diante não da incerteza da infinitude, mas da certeza da finitude e da mortalidade, que o acompanha desde o seu aparecer, que lhe é condição de possibilidade de existência. Tomar contato com a finitude é tomar contato com o espaço mais próprio ao homem, é tomar contato com a mortalidade. Na busca pela infinitude, o que o poeta encontra é a finitude; na busca pelo outro, o que se desvela é o múltiplo, que a cada momento aponta para a origem, para o berço.
Fazer aparecer a ambigüidade é tarefa do grande poeta, desfazê-la é re-criar o que se mostra, na busca in-finita por uma certeza que nos conduza à interpretação que desvele o verdadeiro espaço do homem, o seu verdadeiro hqoV, a sua verdadeira morada.
Bibliografia
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo, Martins Fontes, 1988.
------. A psicanálise do fogo. São Paulo, Martins Fontes, 1994.
------. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo, ed. Brasiliense, 1990.
------. Instante poético e instante metafísico. 3.ed., Rio de Janeiro, ed. Bertrand Brasil, 1991.
BAILLY, Antoine. Dictionnaire Grec-Français. Paris, Hachette, 1950.
ERNESTO, Faria. Dicionário escolar latino português. Rio de Janeiro, FAE, 1991.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 3.ed. Trad. Márcia Cavalcante de Sá. Petrópolis, ed. Vozes, 1989.
HÖLDERLIN, Friedrich. Reflexões. Trad. Márcia Cavalcante de Sá. Rio de Janeiro, ed. Relume Dumará, 1994.
HOMERO. Ilíada. Trad. Fernando C. de Araújo Gomes. s.l., Ediouro, s.d.
MEYER-LÜBCKE, Wilhelm. Romanisches etymologisches Wörterbuch.Heidelberg, Carl Winter Universitätsverlag, 1992.
Os pensadores originários. 2. ed. Trad. Emanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis, Vozes, 1993.
PONTES, Roberto. Lições de espaço. Fortaleza, UFCE, 1971.
WAHRIG, Gerhard. Deutsches Wörterbuch. Munique, ed. Bertelsmann Lexikon, 1991.
Notas
*Márcio dos Santos Gomes é Mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. O presente trabalho é a monografia final que apresentou ao Curso Lírica Contemporânea no referido mestrado.
PENSADORES ORIGINÁRIOS (1993) p.91
PONTES, R. (1971) Livro 2
O grifo é nosso.
MEYER-LÜBCKE, W (1992) p.498. Mesmo significado que toma na maioria das línguas românticas (Provençal, Catalão, Espanhol - obrar) e, também no Alemão opfern (do latim eclesiástico operari, para opfaron no alemão antigo, até chegar a opfern no alemão médio) WAHRIG, G. (1991) p.957.
BAILLY, A. (1950) p.459. A palavra grega dhmiourgia (criação), se relaciona com o verbo dhmiourgew (criar, produzir, fazer um trabalho manual) e com a palavra DhmiourgoV (artesão, representante do povo) que passa, a partir dos Neo-platônicos a designar a divindade criadora do mundo.
Nos deparamos aqui com dois conceitos heideggerianos : o de pre-sença (Dasein) e o de ser-simplesmente-dado (Vorhandenheit). O primeiro nos diz que o homem é o único ser na realidade que está aberto para compreender o que se encontra a sua volta, é o único que tem a liberdade de lançar-se no mundo para desvelá-lo; os outros entes não têm essa liberdade, estão sempre à disposição (diante da mão, como nos diz a palavra alemã) para serem dominados, são simplesmente dados. HEIDEGGER, Martin. (1989) p.77.
O grifo é nosso.
PONTES, R. (1971) Livro 2.
FARIA, E. (1991) p.180.
MEYER-LÜBCKE, W. (1992) p.240.
PONTES, R. (1971) Livro 3, Módulo 1.
Originariamente a palavra cultura surge intimamente ligada à arte da terra. Cultura, stricto sensu, retrata a maneira de uma determinada comunidade trabalhar as técnicas de agricultura em benefício próprio. Tais características por serem diferenciadas, formam as identidades de cada grupo. Daí as idiossincrasias oriundas de cada cultura. A história assumida pelo verbo latino vestire nos mostra exatamente isso, já que dá origem no walésico às palavras êvetí "cultivar o campo "eveti "conduzir o gado aos alpes. (Cf.nota IX, p.775)
PONTES, R. (1971) Livro 1, VIII.
PONTES, R. (1971) Livro 1, IX.
PONTES, R. (1971) Livro 2.
"Por mais que o poeta possa querer ultrapassar a si mesmo, ele jamais se abandona. É bem possível que caia nas alturas ou nas profundezas. Essa última queda só a elasticidade do espírito pode evitar, ao passo que a primeira só se deixa impedir pela gravidade própria de uma sóbria lucidez. HÖLDERLIN, F. (1994), p.24.
"O espírito deve habituar-se a não pretender alcançar, em cada momento singular, o todo almejado e a suportar a incompletude do instante." (nota XV, idem ibidem)
PONTES, R. (1971) Livro 3, T-159
No primeiro capítulo da Ilíada Ulisses pergunta à Atená se ele indo à guerra de Tróia iria morrer ao que ela responde: "Se fores à guerra morrerás, mas como Ulisses, ao passo que se aqui permaneceres irás envelhecer, ter filhos e morrer como ninguém." HOMERO. (s.d.) Canto I.
"uma coisa a todas as outras preferem os melhores : a glória sempre brilhante dos mortais; a multidão está saturada como o gado." (idem nota I, p.65)
PONTES, R. (1971) Livro 3, Finito/ Infinito.