Raymundo Silveira
Ray Silveira. Culto, criativo,
inspirado
(Entrevista cedida ao site Prefácio em
17.10.2005)
O contista e poeta Ray Silveira é
nosso entrevistado. Cearense de Massapê, é médico e, ouvindo-o,
queremos chamar a atenção para seu trabalho literário, além de
homenagear a todos profissionais da medicina pelo seu dia. Ray fala
da profissão, de publicações virtuais e impressas, de seu livro
Contos a Conta Gotas e do blog Mulheres Escritoras. Boa leitura!
Prefácio - Ray, tenho enorme admiração pela
sua inteligência, capacidade, sensibilidade, seriedade e dedicação à
literatura e à ciência médica. Para você, qual é o significado de
fazer literatura?
Ray Silveira - É incrível! Quando o seu e-mail chegou estava
pensando sobre isso. Hoje li e comentei um texto do Soares Feitosa,
grande poeta, meu amigo (quase irmão, pois nos conhecemos desde 1957
quando estudávamos juntos no mesmo internato). O texto do Feitosa se
intitula "Uma Pequena Lição de Cavalaria". Quando acabei de ler e
fui escrever um pequeno comentário, foi como se estivesse lendo uma
antiga definição de literatura criada por Ezra Pound - para mim, a
que mais se aproxima da realidade: “Literatura é a linguagem
carregada de significados até o máximo grau possível”. Respondendo
objetivamente à sua pergunta, o significado de fazer literatura está
implícito na própria conceituação de Pound, ou seja, quanto mais
você enriquecer a sua escrita de conteúdo semântico, mais literária
ela será.
Prefácio - A vida é impossível sem a medicina.
Hoje, Dia do Médico, o que o médico Ray Silveira diz para si mesmo?
Ray - Urda Alice Klueger – uma excelente e bem sucedida escritora
catarinense – escreveu um curto, porém aparentemente bem propositado
comentário ao ler trechos das minhas memórias, onde relato algumas
facetas trágicas dessa profissão: “Nunca tinha pensado que a vida de
um médico pudesse ser assim! Como é que eles resistem?” Ela poderia
muito bem ter acrescentado: por que escolheram esta profissão?
Serão, acaso, masoquistas? Será que você não está exagerando? Sucede
que não existe maior recompensa neste mundo do que salvar uma vida
humana imagine-se quando se trata de centenas delas! Sem falar em
aliviar a dor do semelhante, que é outra função do médico. A
sensação decorrente disto é tão gratificante que chega a constituir
o motivo maior de acharmos que vale, sim, a pena tamanhos
sacrifícios. É uma das raras coisas que nunca enfadam; não caem na
rotina; nem se tornam lugares comuns.
Prefácio - Depois de aproximadamente 500(*)
artigos científicos publicados em revistas médicas, o que motivou o
direcionamento para a literatura convencional?
Ray - Não! Não chegaram nem perto disto. Devo ter no máximo uns 50
ou 60 artigos publicados em revistas médicas e Um capítulo de um
livro. Mas antes de escrever textos científicos já lia muito.
Estudei numa excelente instituição: o Seminário de Sobral. Foi lá
onde desenvolvi o amor pelo estudo e pelas letras. Foi lá onde
conheci os clássicos da nossa literatura. Apesar dos meus 12, 13 e
14 anos (que corresponderam ao tempo que estudei lá), lia Vieira,
Camões, Garret e outros. A civilização grega ainda me era estranha.
Mas nesta época já travara conhecimento com a cultura latina.
Conhecia, inclusive, alguns textos de Virgílio e de Cícero. Em
latim. Certamente este foi o estopim da minha, digamos, mania pelas
letras. Não escrevia por absoluta falta de tempo e, principalmente
de espaço. Quando me aposentei, apareceram os dois: o tempo livre
que eu não tinha, pois era funcionário do ex-INAMPS - onde
trabalhava 40 horas por semana -, e este espaço incrível da
Internet. Sem estes dois elementos (tempo e espaço) até hoje não
teria escrito nada.
Prefácio - O conto DE CARTEIRO A PARTEIRO é
ficção ou realidade?
Ray - Pura realidade.
Prefácio - Fiel adepto do livro eletrônico
(mais de 30 na biblioteca de seu site) o que o levou à publicação
convencional de CONTOS A CONTA GOTAS?
Ray - Bem, "Contos A Conta Gotas" não é exatamente uma publicação
convencional. Surgiram no mercado algumas empresas que fabricam,
artesanalmente, o livro físico. Então mandei fazer meia dúzia.
Somente para mim e os meus familiares. Uma maneira - POR ENQUANTO -
mais cômoda de se ler um livro. E conduzi-lo para onde quiser. Então
trata-se de um episódio fortuito. Além disso, não gastei nada além
de pouco mais de um salário mínimo. Não sou contra o livro de papel.
Compro um ou dois todas as semanas. Sou contra investimentos
onerosos só para ter a vaidade de dizer que se tem um livro
publicado. Continuo um ardoroso adepto do livro eletrônico. Pelo que
eu saiba, "Contos A Conta-Gotas" já foi lido (pelo menos em parte,
pois as pessoas que me escreveram citaram trechos) em Portugal,
Moçambique, Angola, Reino Unido e até no Japão. Se eu tivesse
mandado imprimir, digamos, mil exemplares convencionais, nem sei
onde estariam agora. Não teria onde pô-los.
Prefácio - A professora Maria José Zanini
Tauil escreve no prefácio da obra que seus contos são uma enorme
galeria de tipos: o trágico, o cômico, o louco, o bêbado. Como o
leitor costuma misturar ficção com realidade, e você escreve sempre
na primeira pessoa, não teme a confusão de que fala de si mesmo?
Ray - Nenhum temor. Se eu estivesse na pele dos meus personagens,
além de médico seria também louco e poeta. Até aí tudo bem, pois
disso todos nós temos um pouco, assim dizem. Mas, se entrasse na
pele de todos os outros, não estaria mais nem vivo. Mas, se isso faz
o leitor fantasiar, tudo bem. O importante é ser lido. Cada um que
interprete com quiser.
Prefácio - Você tem um blog chamado MULHERES
ESCRITORAS. É uma espécie de Clube da Luluzinha? Os homens não têm
vez?
Ray - Bem, aqui tenho de me estender um pouco. Até o final da década
de 1950 só existia, no Brasil, uma escritora conhecida e consagrada:
Raquel de Queiroz. Naquela mesma época, uma das maiores e melhores
(senão a maior e melhor) bibliotecas cearenses era a do Seminário de
Sobral, no norte do Estado, onde estudei interno durante três anos.
Apesar dos meus doze, treze e catorze anos, freqüentava-a com alguma
regularidade. É possível que existissem alguns livros escritos por
mulheres: eu nunca vi. Aliás, naquele tempo, nem me passava pela
cabeça que alguma delas fosse capaz de escrever. Afonso Arinos de
Mello Franco dizia ter praticado algumas coisas na vida que o
fizeram se arrepender, porém nada o envergonhava. Pois comigo dá-se
exatamente o inverso: não lembro de ter feito nada de que me
arrependesse, porém me envergonho porque durante aquele período da
minha educação formal, jamais li qualquer coisa escrita por uma
mulher. E aquilo passava despercebido, como se fosse um fato banal.
Uma rotina tão insignificante quanto cortar as unhas. Nem se falava
neste assunto. Se alguma mulher anunciasse que ia publicar um livro,
todo mundo desconfiaria que estivesse contando uma piada. Acho isso
tão absurdo a ponto de me sentir culpado. Principalmente quando me
lembro das minhas 3 filhas e vejo nelas a vocação da escrita. Então,
o que eu puder fazer para incentivar e divulgar a literatura das
mulheres, o farei. É uma questão de justiça. Se tivesse acontecido o
contrário, ou seja, se os homens fossem os discriminados, o Blog
seria "Homens Escritores". Então, fiz uma opção preferencial pelas
mulheres, para tentar reparar uma crise de consciência; para ser
honesto comigo mesmo. Mas não deixo de divulgar também os homens,
embora com menos realce. Tenho outro Blog só de contos: "O Conto Que
eu Gostaria de Ter Escrito", onde divulgo o trabalho de muitos
escritores. Penso que todos os internautas deveriam fazer o mesmo ou
até muito mais. A Internet é a única mídia onde os escritores e
intelectuais, de um modo geral, têm alguma oportunidade de se
destacarem. Não preciso falar das fábricas de analfabetos
funcionais, pois todos já conhecem. Nelas só aparecem (e ficam
milionários) os medíocres. Se um intelectual não divulgar e
incentivar o outro, quem o fará?
(*) Por erro de digitação foi grafado 500, em vez de 50, na
entrevista por e-mail.
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