Sábato Magaldi

Drama e Liberdade

(O Drama Romântico Brasileiro, Décio de Almeida Prado, Editora Perspectiva, fone 011.885.83.88 204 páginas, R$ 22,00)

Certos estudos, observadas pequenas diferenças, poderiam ser atribuídos a diversos críticos. O "Drama Romântico Brasileiro" foge a essa característica: apenas Décio de Almeida Prado teria condições de escrevê-lo. O domínio completo do tema e o belo estilo literário, distante do jargão ensaístico habitual, não esgotam as virtudes imprescindíveis para o êxito do livro. Requerem-se do autor outras exigências, ao alcance de poucos.

Um volume de 200 páginas, dessa natureza, e considerando que o capítulo sobre Gonçalves de Magalhães, ao preencher 40 delas, reproduz capítulo idêntico de "Teatro de Anchieta a Alencar" , lançado há três anos pela mesma Perspectiva, reclama não somente grande poder de síntese, mas também uma vida inteira de meditação sobre a dramaturgia e o palco, e sobretudo ampla cultura, sedimentada em longos anos de magistério.

Décio não se limita a analisar exaustivamente a estrutura de um texto. Inscreve-o no momento histórico, investiga-lhe as fontes literárias, perscruta-lhe as implicações filosóficas e sociais, relaciona-o com outras obras e avalia sua eficácia cênica. São 22 as peças examinadas e, se o romantismo teve, evidentemente, uma produção numérica muito superior, todas as sus facetas, no drama, acham-se contempladas, e surge, com nitidez, a essência do movimento.

Era forçoso que o livro se abrisse com a análise de Gonçalves de Magalhães, embora haja quem conceda a primazia da introdução do drama romântico, entre nós, a Burgain. Pela importância o autor de "Antônio José ou O Poeta e a Inquisição", pela repercusão da estréia — e o próprio dramaturgo lembrou "que esta é, se me não engano, a primeira Tragédia escrita por um Brasileiro, e única de assunto nacional"—, a história consagrou a precedência teatral de Magalhães, bem como seu "Suspiros Poéticos e Saudades" inaugurou nossa poesia romântica. Ao intitular o capítulo "Entre Tragédia e Drama", sabendo-se que tragédia é típica do classicismo, ao passo que drama se associou ao romantismo, segundo a exemplar conceituação de Victor Hugo no prefácio de "Cromwell", Décio concluiu, com acerto, "que fica, no balanço derradeiro", "o seu (de Gonçalves de Magalhães) papel de precursor, seja do romantismo, do qual foi meio sem o querer a ponta-de-lança no Brasil, seja, e aqui sem contestação possível, do próprio teatro nacional", acompanhando em parte juízo de José Veríssimo, para quem o teatro brasileiro foi "produto do Romantismo".

Sem entregar-se a didatismo esquemático, Décio distingue muito bem as várias vertentes da escola romântica, situando Martins Pena e Burgain entre drama e melodrama. Gonçalves Dias encarna o drama do amor. Álvares de Azevedo compõe, com "Macário", um drama fantástico. E Agrário de Menezes, José de Alencar, Paulo Eiró e Castro Alves exemplificam o drama histórico nacional. Em "Teatro de Anchieta a Alencar", privilegiara-se, de Gonçalves Dias, "Leonor de Mendonça", e, de Alencar, "0 Demônio Familiar", enquanto do primeiro, em "0 Drama Romântico Brasileiro", as quatro peças por ele deixadas ("Beatriz Cenci" "Patkull" e "Boabdil", além de "Leonor de Mendonça"), e do segundo, "0 Jesuíta", que encerrou sua carreira.

O processo de elaboração crítica de Décio não escamoteia nenhum dado. Antes, ilumina com informação precisa tudo que possa esclarecer seu objeto. Mesmo tratando especificamente de dramaturgia, ele oferece um retrato da vida teatral brasileira da década de 30 à de 60 no século passado. O leitor se move entre as diversas tendências como se estivesse a testemunhar o próprio cotidiano. Encontrando-se na Europa e principalmente na França os modelos que os nossos românticos aproveitaram, Décio os identifica e esquadrinha, quando é o caso, com cuidado semelhante ao que lhes dispensa.

Assim é que, a propósito de Gonçalves de Magalhães, surgem as relações intertextuais com Casimir Delavigne, adepto do ecletismo, já formado no classicismo quando irrompe a revolução romântica. E, junto com o brasileiro, o espanhol Martinez de la Rosa e o português Almeida Garrett, que introduziram o drama romântico em seus respectivos países. A trama de "Olgiato", o segundo texto teatral de Magalhães, gira em torno de um tiranicídio, cuja inspiração intelectual, a par do episódio histórico, contém, segundo Décio, "coincidência ou não, as três formas de afronta que Alfieri enumerou no seu "Tratado da Tirania". Catão e Bruto, descritos em Plutarco, além dos exemplos de Schiller e Alfieri, estão na base da defesa da liberdade exaltada na tragédia. Montano, em "Olgiato", vive a filosofia provinda do idealismo platônico e do estoicismo romano. E o crítico cita finalmente Monte Alverne "como possível fonte de inspiração de Montano", recorrendo até ao étimo comum aos dois nomes.

O capítulo relativo a Martins Pena e a Burgain encerra, entre outras virtudes, a de estabelecer com nitidez as fronteiras entre melodrama e drama histórico romântico. Afirma Décio: "Quanto à natureza humana e à organização da sociedade, o melodrama era otimista, o drama, pessimista. O melodrama acreditava na Divina Providência, o drama mostrava-se fatalista ou cético. O melodrama acabava bem, como a comédia; o drama acabava mal, como a tragédia". Daí Guilbert de Pixerécourt, criador do melodrama, no início do século 19, ter recusado a paternidade do gênero romântico, surgido menos de três décadas depois.

Décio acredita que Gonçalves Dias, "talvez por ter estudado em Portugal, onde era muito maior o fluxo de informações artísticas, situava-se bem mais próximo das matrizes cultas da moderna sensibilidade artística, tal como ela se formava nos primeiros decênios do século 19. Até na escolha dos seus protagonistas ele pouco tem de periférico". Fundamentando esse raciocínio, o crítico invoca Shelley e Stendhall que se ocuparam do tema de "Beatriz Cenci", e Florian, Chateaubriand e Washington Irving, que estiveram às voltas com a personagem de Boabdil. E julga, com acerto, que os textos teatrais do poeta, "escapando à tragédia, pelo formato e pelo liso da prosa, e o melodrama, por unir no desfecho amor e morte, são os primeiros, no Brasil, que se podem classificar seguramente como dramas românticos".

Ninguém ignora que "Leonor de Mendonça" é o melhor drama brasileiro do século passado e um dos mais perfeitos da nossa história teatral. Décio, entretanto, depois de anotar que ele "respira todo tempo o ar do romantismo", empresta-lhe significado justamente mais amplo: "A simplicidade de suas linhas, desembaraçadas de ornamentos, parece remeter ao mais puro classicismo, enquanto que a sua rara capacidade de penetração psicológica e a sua tão clara percepção social fazem-nos recordar de preferência o realismo — não o realismo teatral brasileiro, carregado de moralismo, mas aquele realismo que iria triunfar em 1857, com a publicação de ‘Madarne Bovary’ de Flaubert". Indica o ensaísta, além de toda a modernidade contida no prólogo e expressa no texto de Gonçalves Dias, "tendências sadomasoquistas" , que lhe conferem "espessura e carnalidade", para concluir: " 'Leonor de Mendonça' é uma peça do seu e do nosso tempo, num desses milagres de extemporaneidade de que é capaz a arte".

O livro inclui desde logo Álvares de Azevedo no domínio da literatura fantástica, avessa ao classicismo, e considera "Macário", sua única peça, "a mais puramente romântica entre todas do teatro brasileiro". Se o prólogo se intitula "Puff", remetendo a Shakespeare, e cita Sir John Falstaff, numa réplica não pronunciada por ele em nenhuma das três obras que o acolhem, Décio não tem dúvida em reconhecer que fala, por sua boca, o poeta brasileiro. E no diálogo que mais tarde travam Macário e Penseroso (nome vindo de Milton), tão pouco teatral mas curiosamente teórico, Décio vê uma controvérsia "de natureza literária", que "caberia perfeitamente num ensaio sobre as duas faces do romantismo, a otimista e a pessimista, a nacionalista e a universalizante, a cristã e a demoníaca".

As quatro peças agrupadas por Décio como representativas do drama histórico buscam "dizer alguma coisa sobre o Brasil, enquanto nação ou enquanto nacionalidade nascente, tendo como pano de fundo, distante ou próximo, o fato da Independência". Escritas entre 1856 e 1868, como lembra o crítico, alistam-se com atraso nas fileiras do "romantismo social, desabrochado depois de 1830".

Com respeito a "Calabar", que eleva ao primeiro plano a luta em que portugueses, negros e indígenas se aliaram para expulsar do nordeste os holandeses, no século 17, Décio observa que, "como feitura dramática, possui boas qualidades medianas, o que no Brasil já significava muito". Se o autor, Agrário de Menezes, "não era nenhum gênio, como talvez o fossem alguns dos seus contemporâneos", suas qualidades de homem de teatro eram de quem "sabia armar uma trama que se desenvolve e se desloca no tempo e no espaço durante toda a representação, conforme o modelo do drama histórico".

Décio vincula "0 jesuíta" aos dramas de Victor Hugo e sublinha que, escrita em 1861, quando o próprio Alencar já havia apresentado vários "dramas de casaca", típicos da nova escola realista, a peça estreou somente em 1875, "com quase quinze anos de atraso, fora do prazo de sua validade estética". Não obstante esse juízo severo, o crítico não deixou de reconhecer-lhe qualidades, que a meu ver mereceriam maior realce. Por outro lado, está assinalado, com justeza, ser estranhável "e muito em se referindo ao Brasil", "a ausência do negro entre os deserdados da Europa que a América acolheria", no projeto do protagonista de construir aqui um grande império. E são ponderáveis as conjeturas levantadas acerca da omissão.

Louvável a inclusão de "Sangue Limpo", de Paulo Eiró, no painel dos dramas históricos. Evocada a gênese da peça, por intermédio do prefácio de 1862, Décio exalta-lhe a perspectiva de considerar "o 7 de Setembro um ponto de partida, e não de chegada. Conquistada a Independência, a luta seria agora contra os preconceitos sociais". O modelo do dramaturgo paulista, segundo o crítico, "prima pela ou sadia moral e modernidade , por procederem diretamente do povo as personagens. E o mulato Rafael Proença, que representa em cena o país, em face dos portugueses, antes de 1822, proclama que "0 Brasil é uma terra de cativeiro", e o próprio branco orgulhoso "sofre de má cara e insolência das Cortes e o desdém dos europeus". O que permite a Décio asseverar: "A idéia de liberdade é, como vemos, indivisível: o todo não será de fato livre enquanto uma das partes permanecer cativa. A independência, para Paulo Eiró, trazia embutida em seu bojo a Abolição".

Longa, minuciosa e convincente é a análise de "Gonzaga ou A Revolução de Minas". Precedem-na os episódios biográficos da ligação de Castro Alves com a atriz portuguesa Eugênia Câmara, intérprete do papel de Maria Quitéria, tanto na Bahia como em São Paulo. Comenta Décio os três fios de enredo da peça, "que às vezes se embaraçam, confundindo o leitor ou espectador". E termina por admirar a imaginação do poeta, que chega a beirar às vezes o surrealismo, como quando compara o oceano a um "enorme cão". É certo que o dramaturgo, que ainda não havia atingido 20 anos ao produzir "Gonzaga", estava longe de alcançar a altitude do poeta.

Com síntese brilhante, que repassa a contribuição dos dramaturgos que atuaram entre 1838 e 1868, Décio ressalta que "o teatro foi um dos gêneros prediletos do romantismo brasileiro, somente ultrapassado, na prática literária, pela poesia". A predileção, entretanto, não significou popularidade para as peças escritas. Poucas eram encenadas, criando, para aqueles que não morreram jovens, um sentimento de frustração. O crítico registra, objetivamente: "De fato havia no Brasil dois romantismos dramáticos, que corriam paralelos: o dos atores, alimentado pela dramaturgia popular estrangeira, e o dos autores, que raramente chegava ao palco". Como denominador comum do drama romântico brasileiro, o livro aponta "a idéia de liberdade, modulada de diferentes maneiras".

Mérito apreciável de "0 Drama Romântico Brasileiro" é a sua organicidade, em que todos os capítulos se articulam entre si e com a produção dramatúrgica internacional, com a qual a nossa manteve um diálogo permanente. Da obra importante de Décio de Almeida Prado, que se estende do estudo de Anchieta aos dias de hoje, constituindo o mais profundo mergulho na história do teatro brasileiro, só falta agora ele tornar pública a parte da comédia de costumes e a das primeiras décadas deste século.

In Jornal de Resenhas, Folha de São Paulo 11/10/1996


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