Soares
Feitosa |
Jornal
de Poesia
|
Salomão
Sétimo Movimento
— Os Vaqueiros —
Coronel, das terras
donde veio,
do outro Antônio que
também é Santo,
um dia vi um Coronel-doutor,
Stanislaw,
e o filho dele, Fernando,
e eram brancos,
porque, Coronel, a maldade
não está
na pele,
nem a bondade está
nos olhos-louros;
pois eu vi, Coronel,
Eliézer, nove anos,
os braços em carne-podre,
e nada fede mais no mundo,
Coronel,
do que a carne do homem,
podre;
e os braços de Eliézer,
perfeitamente gangrenados,
fediam por todas as pocilgas
do mundo,
e aquele Coronel, um Conselheiro-gigante,
abaixou-se, acocorado rente
à imundície,
o nariz destampado, o orgulho
destampado, como se ali,
àquela podridão,
só
perfume
e lírio.
E entre olho e mão,
a mão-do-crear, Stanislaw
(como se às pedras
da muralha;
o lombo do mar comigo em
riba),
foi dizendo, foi sorrindo,
ele:
“Corto aqui,
emendo ali,
aproveito
este pedaço,
um jeito,
vai dar certo,
claro que vai,
vamos!”
E os braços de Eliézer
“ressuscitavam” no olhar aturdido das freiras
e “abraçavam” a Santa
Casa e o sorriso
do Coronel e o sorriso;
eu vi, Coronel, Stanislaw e o sorriso.
E o doutor chamou por uma
negra,
ela ajudara a criá-lo,
e também criara os
filhos dele,
e criava-lhe os netos,
ele a chamava madrinha,
e disse:
Madrinha Flora,
faça uma limpeza
nos braços desta
criança.
E a negra voltou assombrada!
Assim
que começou a lavar,
o primeiro pedaço
do braço com a mão
inteira afundou na bacia!
O Professor Eliézer
dá aulas de mestre-escola,
e não tem braços,
nas margens
do Rio Macacos; e o Doutor-coronel
e o filho do Coronel, também
doutor,
brancos como uma pedra de
cal,
não falaram em dinheiro,
nem a revista publicou
o “caso Eliézer”.
Porque, Coronel,
nem a Beleza é branca,
nem
o Bem é preto. Isto
não tem cor.
E das escolhas do
Capitão®
vieram Antônio
e Adolfo, vaqueiros meus.
Capitão, me traga
um moleque espichado,
um negro ligeiro para campear
meus bodes, o “Gabirim”,
o “Pajusca”;
e minha mãe dizia:
— Compadre Adolfo,
o nome deste bode bordado
é Labirinto,
e deste outro malhado é
Pajuçara.
— Ah, comadre Anísia,
com esses nomes bonitos
eles não atendem.
— Gabirim, Gabirim!... —
clamava Adolfo.
E lá se vinha o bodão
comer
na mão do meu vaqueiro,
Capitão meu, escolha
minha.
— E minha comadre,
Coronel, como está ela?
— Morreu, mestre Adolfo,
que todos morremos.
Coronel
— ele disse e se benzeu,
porque, se da morte
falamos, da morte nos benzemos
—
também morreu Francisquim,
que era quase da sua idade
— vocês brincavam,
meninos —,
motorista de ônibus,
ele, em São Paulo,
os ladrões mataram,
para roubar;
dizem que foi a “puliça”.
Porque um dia, Capitão,
nas margens do Rio
Macacos, um aprendiz de
Coronel e seu vaqueiro Capitão
aboiaram um canto vaqueiro
entre uma serra e outra
e desafiavam o eco entre
si, e aboiavam de novo,
e aboiavam outra vez;
até hoje não
se sabem os justos motivos da gritaria;
e se a montanha respondia
de um lado,
o aboio era do outro, de
um Coronel aprendiz
e de seu vaqueiro Capitão...
E assustavam a acauã
com tanto aboio:
ao Século Cem,
de Ésquilo,
talvez fosse.
E o Professor Eliézer
nunca recebeu
uma esmola,
por mais que a Caridade
lhe corresse atrás:
tome,
meu filho, uma esmolinha,
em nome de Deus.
Quero não,
Coronel! Eu não quero pedir.
Eu vou trabalhar.
Professor mestre-escola,
mestre Eliézer,
da raça dos
deuses.
E Francisquim, filho de Adolfo
vaqueiro,
menino do meu tamanho,
aboiou um soluço
suspenso,
sob a tenaz, o cassetete
na noite,
e no solado dos pés,
e o tiro do mundo-Covas:
— Pegaram quanto,
Capitão?
Um nadinha de nada, Coronel,
aqueles negros
do veleiro Diadema, uns
lisos!
Apenas um corretivo, Coronel.
Porque esta é
a canção do ódio.
E o Professor Eliézer nove anos subira no poste
eletrificado sem saber que
eletrificado
estava o poste e penou dez
dias até os braços
apodrecerem completamente
sem um gemido
e a mãe do Coronel
quando soube
ofereceu-lhe o Céu
você vai pro Céu
meu anjo!
Quero não, dona Anísia!
E a mãe do Coronel
despachou Eliézer
em bilhete recomendado boto-lhe
a “benção”
meu filho e me escape o
inocente que ele não vai morrer.
E quando Eliézer chegou
à casa do Coronel
uma carroça
parou e o cocheiro
disse gente sua Coronel
e o Coronel
foi ajudar o pequeno a sair
do coche
e o pegou pelos ombros sob
seus pulsos fortes
para ajudar e maltratou
sem saber
os braços podres
de Eliézer
e o Professor Eliézer
engoliu a língua
engoliu a boca engoliu os
olhos porque
de sua boca jamais um não
nem de seus olhos
jamais um ai e as pernas
do Coronel ficaram
mijadas do mijo daquele
deus-criança
todo mijado para não
berrar.
Porque esta é a canção dos deuses.
E o Coronel aboletou o Professor
Eliézer
com toda a fedentina do
mundo e correram
os hospitais do Ceará
e os doutores escorraçavam
o Coronel com o seu Professor
fedorento
e tapavam o nariz.
E o Coronel mostrava a eles
uns patacões de ouro
mas os corações
daqueles demônios gritavam
fora-daqui e o Coronel não
prestou atenção
na cor do demônio.
E o Coronel engoliu a língua
e engoliu a boca
e os olhos também
ele engoliu e o dia
já amanhecia e o
Coronel
engolia os caminhos no caminho
da Santa Casa onde Stanislaw
e o filho dele.
E o Coronel tomava
umas cervejas em Nova Russas
quando
um cabra disse eu sou de
lá do Rio Macacos
e vim embora por causa
da Seca mas tenho reclamação
porque lá nos matos
tinha escola até
os de-maior estudavam
e o professor não
tem braços
e o professor de lá
dos Macacos se chama E
E o Coronel saltou na palavra
e disse
e engoliu a palavra
e engoliu a língua
e os olhos e a boca
do próprio Coronel
o Coronel também engoliu.
Porque os deuses vivem!
Porque os homens morrem.
E isto não tem —
parece —
nenhuma cor.
Porque esta é a canção nenhuma!
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