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Um esboço de Da Vinci

 

 

Soares Feitosa

Jornal de Poesia

 

Salomão

 

O Relato do Bibliotecário

Um aviso: 

Isto aqui é apenas um rascunho. Com muitos erros, gramaticais até. Deixo a revisão para depois. Anote-me, por seu favor, os erros. Mande sugestões, palpites, reprimendas até. Mando o abraço.

 

12 - Chegam os primeiros facínoras. Um deles se diz pintor famoso. O outro operava muito bem o Corel-Draw

 

Abruptamente as rezas foram interrompidas por um senhor de aparência sinistra, um bigodinho meio ridículo, o cabelo repartido de lado, e atrás dele, a imitar-lhe todos os gestos, o palhaço conhecido pelo nome Charles, dito Chaplin.

O sinistro senhor berra, a plenos pulmões, que ele também era um pintor da estirpe do Capitão! E que estava ali não como um coronel chanceler, mas como um pintor consagrado, tão bom como o Herr Capitão!

A multidão de presos e guardas já se acotovelava à porta da cela, como que hipnotizada por aquela voz terrível — e que voz! Todos em silêncio, alguns já se perfilavam; ouvir-se-ia o vôo de um mosquito a cem metros de distância. Ele bradou:

— Qual é, afinal, o Menino mais poderoso?

O do bigodinho, ele mesmo!, respondeu:

— Pois saibam todos! Os malditos judeus, que nunca consegui destru... — no que foi interrompido por um senhor muito bem vestido, recém-chegado. Era um tal Mr. Vice-President, que mesmo chegado por último, já tentava impor presença.Antes porém que o tal Mr. Vice-President conseguisse juntar palavra com palavra, o senhor do bigodinho partiu para cima dele, dedo em riste:

— Se a primeira era de basta, por que a segunda? A primeira, sim, como operação militar, vá lá que fosse, justa e eficiente! Mas a segunda? Ódio. De puro ódio!

O sinistro senhor do bigodinho espumava de tanta raiva, mas o Mr. Vice-President apenas o olhava, como se não estivesse entendendo nada. Engalfinharam-se. Um judeu, com a cara de professor, brandindo uma carta, interferiu. Não conseguiu apartá-los com "arma" tão singela, apenas aquela folha de papel de aspecto muito antigo, já desbotando.

O negro do treme-treme fez carreira para arrebentar a cabeça dos brigões com a acha de lenha, mas o padre, com grande placidez, pediu que apenas os apartasse. O treme-treme, o tempo todo segurava a tocha, uma grande fumaceira dentro da cela, mas quando alguém tentou ajudá-lo, para que, com mais facilidade, ambas as mãos livres, desengalfinhasse aqueles loucos — quem disse que ele deixou?! Com uma mão apenas, deu um muxicão bem rápido, rapidíssimo, num e noutro. Ainda fez um rapapé que parecia um bailado, ante o que aquelas feras, amedrontadas com a velocidade do negro, ficaram mansas como um cordeiro.

O do bigodinho, porém, continuou rosnando sobre a segunda bomba. O Mr. Vice-President resmungava que tinha uma fábrica de bombas, aliás, várias fábricas. Quando, inesperado, chegou mais um, de cara sinistra, forte como um lutador, um bigode espesso, um olhar cruel.

O tal Mr. Vice-President dirigiu-se imediatamente ao recém-chegado afirmando que este os enganara a todos porque fizera, antes da luta, um trato com o do bigodinho. Garantiu que fora muito bem feito que o do bigodinho o traísse, mas um povo de tanto sofrimento e religiosidade, como o dele, não merecia o facínora que era.

Comentaram que o tal do bigode espesso mandara trucidar centenas de oficiais poloneses, a fina flor do exército, um tiro na nuca, uma vala comum na montanha gelada. Depois negou tudo e ainda botou a culpa no pessoal do bigodinho. Disseram também que ele era um grande programador visual, cuja especialidade era retirar de fotos históricas, da Enciclopédia, a figura dos inimigos, amigos porém de outras épocas. Disseram que ele é que inventara o Corel-Draw, um programa de computador, de primeira para apagar figuras de um retrato ou trocar, uma cara por outra, numa paisagem gráfica.

— Mas não foi o Bill Gates que inventou esse tal Corel, senhor?

Bom, isto depois a gente investigará no Google, mas já lhes garanto que não foi o tal Bill Gates quem o inventou. O fato é que o tal do bigode espesso seria um fino especialista em matar os ex-amigos. Em seguida os apagava da história, dos livros de propaganda, de modo que, para saber quem era quem, o pesquisador teria que consultar as edições da cada ano. A garantia de que o áulico (ainda) permanecia vivo era aparecer no retrato atual do grupo do facínora. Para surpresa, o tal bigode espesso partiu para o Mr. Vice-President:

— Ah, o senhor, com essa pureza toda!? É o dono da segunda bomba! Sim, os meus crimes, meu sucessor os historiou todos. Tão verdadeiros que sequer lhes discuto o mal. Os deste outro — e apontou para o do bigodinho — também não há como negá-los, mas o ponto alto de todo o mal do século das trevas foi a segunda bomba, a sua, seu engomadinho de uma figa! Para que a segunda bomba? Por que não aguardar a rendição, se todos sabiam que o terror de uma única era mais do que suficiente?!

O professor judeu continuava brandindo a carta em direção ao Mr. Vice-President, que fazia de contas que não era com ele. O do bigodinho, agora todo amarfanhado com o jab que o negro lhe dera, ficou insistindo na gratuita perversidade da segunda bomba. Que bomba? Iriam aqueles loucos dinamitar o Carandiru? A Biblioteca agüentaria o bombardeio?

O padre Kolbe tentou acalmar o ambiente. Pediu que a carta fosse lida em voz bem pausada para que todos a escutassem. O professor judeu declarou que aquela carta não teria mais valor algum, ali. Contou que escrevera muitas delas, uma atrás da outra tanto para o Mr. President, como para aquele ali, o tal Mr. Vice — e apontou para ele com grande nojo —, pedindo-lhes que sequer a primeira bomba fosse detonada, quanto mais a segunda.

Contou que aqueles indivíduos que terminavam de se engalfinhar, e, merecidamente haviam sido surrados pelo senhor da acha de lenha, mais aquele outro do bigode espesso, eram a vergonha do mundo, os verdadeiros genocid.../ Sequer terminou a frase. Ali mesmo caiu fulminado, Em cima da carta.

Disseram que ele era um cientista do mais alto valor, de nome Leo, Leo Szilard, um dos que participaram do invento da bomba. Contaram que ele, assombrado com o potencial de matança daquela arma, danara-se a fazer cartas para o presidente americano pedindo que não a soltasse nunca. O problema é que o presidente morreu, e o Mr.Vice-President aproveitou para despachá-las, ligeiras, em cima dos japoneses.

Contudo, o tal judeu, juntamente com a fina flor da ciência mundial, nas vésperas do bombardeio, mandaram-lhe várias cartas sugerindo uma demonstração em campo aberto, com o que — o poder tão terrível, ali, o imperador do Japão e seus generais presentes, vendo o destroço que haveria de causar — render-se-iam, assim imaginara, inocente, aquele professor judeu, o Doutor Leo Szilard, um sonhador.

Uma música? Bom, entre as muitas coisas estranhas que apareceram na reunião da Biblioteca, esta, que ouvi, distante, não sei de onde: «You may say I'm a dreamer,/ but Im not the only one,/ I hope some day you'll join us,/ And the world will live as one». E, dos presentes, alguém dizia em voz baixa: «Você talvez diga que sou um sonhador,/ Mas eu não sou o único» Uma pena, que o resto não deu para escutar. Achei parecido com a boz do Coronel. Ou seria do Profeta. Não deu para distinguir, sob tanta confusão. 

Comentaram que o tal Mr. Vice-President não quis conversa! Apertou o botão da primeira bomba, e, como se fosse pouco, despejou a segunda em cima dos japoneses, que também pintavam ampla miséria, senão maior, com os prisioneiros, tudo farinha do mesmo saco, porque na hora da crueldade, todo homem é igual.


 

13 - Surge a primeira lista: a do Nobel ou a da Seca do 32?

 

Alguém fez um gesto de apanhar a carta, perguntando se não seria uma lista. (Lista? Lista de quê? Dos alvarás de soltura? — perguntei-me — o meu?).

No que um dos cegos, o tal novo Bibliotecário, Jorge, perguntou bem alto se não seria a lista dos premiados do Nobel, acrescentando que ele era, que sempre fora candidato. Alguém gritou lá de trás que o novo Bibliotecário jamais poderia candidatar-se a lista alguma, porque colaborara com os generais, os argentinos e os brasileiros. Ao que o cego disse:

— Mas o outro negou vistos! Mesmo assim, foi premiado. Começo a desconfiar dessas listas!

O "outro"? Quem, o "outro"? — perguntei-me. Então, um dos cegos, desta vez o Cantador, perguntou se o "outro" não seria um tal Patativa, um novo Cantador que muitos diziam que seria melhor do que ele, Aderaldo. Queria saber se o tal Patativa ganhara o Nobel. Ou, se a "lista" não seria a dos flagelados da Seca do 32, que ele estava, sim, "alistado no fornecimento" mas não pagaram o que lhe deviam; que, por favor, lessem a lista com cuidado, que o nome dele devia estar lá. Governo ladrão! — completou o cego Cantador.

O monge cego, Jorge, interferiu dizendo que ninguém ali estava levando a reunião a sério; que, se de listas houvesse alguma a procurar, dissessem logo qual — no que tremeu a voz, e alguém comentou que ele matara um monte de noviços lá no convento dele, e que a "lista" adequada talvez fosse a dos nomes daqueles mortos... que o cego não era tão "sério" como se fazia parecer. O padre interveio:

— Sempre que alguém falar em lista, a prioridade deve ser dada a uma única e verdadeira lista, a Lista do Schindler, um Coronel que salvou muita gente.

E puxou um papel do bolsão da velha batina, muito amarfanhado, e disse: eis a lista verdadeira! Pediu licença para escrever ao lado do nome do tal Coronel Schindler, mais outros nomes: um português, um sueco, um brasileiro e um norte-americano, mais uns três ou quatro gatos pingados, assim mesmo que ele disse: pingados, os gatos.

Ficou minutos tentando caçar na memória outros nomes. Acrescentou o do papa. Riscou imediatamente sem justificar por que excluíra o nome do chefe, ainda que fosse só para cumprir a hierarquia, de baixo para cima, padre a papa. Pegou a lista, agora com os novos nomes que ele dizia tão dignos quanto o do Coronel Schindler, o do papa devidamente anotado porém riscado, ajoelhou-se em cima do velho papel e disse:

— Louvado seja!

O Capitão foi tomado novamente de grande fúria, como se desejasse desesperadamente saber a solução de um novo problema monumental, os olhos completamente esbugalhados:

— Qual é, meus senhores, o maior pecado? 

— ?

— Ninguém me responde?! Qual é mesmo o maior pecado?

O sinistro senhor do bigodinho, o não menos sinistro do bigode espesso e o Mr. Vice-President entreolharam-se.

Nada disseram.


 

14 - A chegada do sábio muito tímido. Das exigências contra os neutros

Foi a vez de um senhor muito estranho, muito tímido — disseram que ele escrevia sobre baratas que se transformavam em caixeiros-viajantes; outros disseram que ele era um profeta que adivinhara tudo que o senhor do bigodinho mandou aprontar contra seu povo. Ele disse:

— O verdadeiro pecado, pai e mãe de todos os outros pecados, é a neutralidade! — e acrescentou:

— O pior do neutro é quando o juiz da instrução, e todos sabem como os juízes da instrução são cruéis e rigorosos, pergunta o que ele fez, e ele simplesmente diz: «Não fiz nada, magistrado!». Isto mesmo, o neutro nada fez, e fez, ao mesmo tempo, tudo! Adubo e rega ao tirano, os neutros. Só há uma única receita para acabar com o mal do mundo:

 

Exigir que os neutros se decidam!

 


 

 

14 - Da lei justa e da chegada do cabeça grande

 

Gritaram que ele seria um anarquista suíço querendo acabar com o país dele; outros disseram que seria um banqueiro falido, querendo arrebentar com os concorrentes. Ele não respondeu. Comentou que todos os juízes do mundo eram perversos porque compactuavam, muitas vezes sem o saberem, com a neutralidade.

— Vejam, senhores, a demora da sentença nada mais é do que uma sinistra tentativa de neutralidade: jogar na morte rápida de uma das partes para não julgar nunca! O magistrado diz: Deixarei o caso para o meu substituto. Estou de mudança para outro tribunal. E, entre um cálice de vinho do Porto e uma bela bacalhoada, de comarca em comarca, vai, barriga e bolso, a cevar!

E continuou:

— A lei justa deveria ser a que obrigasse o magistrado a julgar, digamos, entre a inicial e a sentença, em no máximo 3 anos! Se, no final desse prazo, não soltasse a sentença, o réu seria dispensado, e preso, no lugar dele, o juiz.

Naquele exato instante, retornava à sala, isto é, à minha modesta cela, o engenheiro militar no grau repórter, agora acompanhado de um senhor baixinho, cabeça muito grande, uma sisudez de mestre-escola. Disse o baixinho:

— Meu caro agrimensor, o senhor está enganado. Por que esse prazo de três anos para prender o magistrado? Fiz um código e nele não tenho esse prazo, muito menos essa pena contra o juiz. O senhor justifique, por favor.

Seria ele, de fato, um agrimensor? Com aquele corpo franzino, só se fosse um daqueles que assinam o ponto, jogam o paletó no espaldar da cadeira e não trabalham nunca. Garanto que ele não teria força para segurar um teodolito, muito menos "espinhaço" para passar o dia inteiro abaixando-se, mirando lá longe, anotando os pontos numa cadernetinha; levantando-se bruscamente, uma carreirinha ligeira até a próxima visada, abaixando-se novamente, outra vez olhando no "olho mágico" do instrumento; em suma, andando léguas e léguas sob o sol quente com aquele tripé. Não e não, aquele ali, não. Devia ser engano isto de o baixinho da cabeça grande chamá-lo agrimensor.


 

15 - Do Agrimensor cego, uma historinha de agrimensuras

 

O Capitão contava, num intervalo de uma palavra cruzada e outra, que essa profissão de agrimensor era uma das mais perigosas. Em especial se fosse para delimitar as fazendas de dois coronéis verdadeiros, como o Coronel Horácio da Silveira e o Coronel Sinhô Badaró, no Sequeiro Grande, lá no cacau.

— Só com muita bala, meu caro Bibliotecário Djalma, só com muita bala! — dizia o Capitão.

Meu auxiliar de Bibliotecário, o Capitão, gostava muito de contar as muitas histórias da mãe do Coronel. Esta, foi só o que me ocorreu quando vi o cabeça grande chamando aquele tímido senhor de agrimensor. Não sei se era deboche. Assim contava o Capitão:

Um dia, um tal Joaquim Lopes resolveu invadir o macaco da mãe do Coronel, isto é, a fazenda dela é que se chamava Macacos.

Ela ajuntou dez cabras, todos armados de soca-soca; vestiu uma calça comprida por debaixo do vestido, naquele tempo em que mulher alguma andava de calça comprida; montou-se, escanchada, no cavalo Bacalhau, num tempo em que as mulheres só cavalgavam de banda; mandou o Coronel, que ainda era menino, montar-se no jumento Moleque; encheu três alforjes com paçoca, carne-seca e rapadura; quatro borrachas de sola com água da cisterna, e, de tropel, desceram as quebradas da Serra das Matas fazendo um grande alarde de que o tal Joaquim Lopes iria saber o que era bom pra tosse.

Em lá chegando, a mãe do Coronel mandou chamar um cabra que tinha um olho cego, e o apresentou ao invasor:

— Seu Joaquim, este é o meu agrimensor.

Os cabras, com as espingardas entupidas de chumbo miúdo, bucha de capim seco e pólvora até a tampa, ali, quietos, só escutando. O tal Joaquim Lopes, evidentemente, disse que sim.

Eu não sei se o Capitão era um dos que estavam lá, entre os dez das espingardas, ou se ouvira essa "edificante" história da boca do Coronel, ou sabe-se lá de quem a ouvira, ou se ele mesmo a inventara, o fato é que a história corria no trecho como autêntica. Então, ali presente o "agrimensor", a mãe do Coronel apontou para três estacas e disse-lhe:

— Faça rumo, compadre Capuxu, entre a Volta do Rio e a Pedra Grande! Enfie a primeira estaca, espie por cima dela bem espiado direto para a Pedra Grande! Mande botar a segunda estaca bem no rumo em que estiver espiando por cima da primeira estaca; em seguida bote a terceira estaca na mesma risca de olho; as três assim, linheiras, bem aprumadas. Aí, compadre, você manda o auxiliar arrancar a estaca que está mais atrás e levá-la lá para a frente, quando então você se muda para a estaca seguinte e ajusta as três outra vez na mesma reta. Depois, recomece tudo de novo e assim por diante. É só ter o cuidado de emparelhar as três estacas sempre na mesma linha! Com cuidado, compadre! Tudo bem linheiro, compadre! Vamos, minha gente! Ligeiro, até terminar! Antes de o sol se pôr! O tal Joaquim Lopes disse:

— Por favor, senhora, esse cidadão que a senhora chama de agrimensor só tem um olho. Quem já viu agrimensor de um olho só?

A mãe do Coronel falou:

— O senhor está enganado. Não existe profissão mais adequada para um caolho do que essa de agrimensor! É suficiente que ele olhe com um olho só, e pronto, porque não terá nenhum perigo de se distrair com a outra vista. O perigo, sim, se ele olhasse com os dois, um num rumo, outro noutro.

O tal Capuxu, que jamais havia tirado rumo algum, agora ali, de "agrimensor", perguntou, quase trêmulo:

— Comadre, qual é mesmo a Pedra Grande?

Ela fez um trejeito com o beiço, apontou para um lajedo que ficava a léguas de onde o Joaquim Lopes queria o traçado, e disse: 

— É lá!

O Joaquim Lopes não disse mais nada, nem o marido da mãe do Coronel também disse nada, porque ele mesmo correra do pau há muito tempo, se mudando desta a melhor no mesmo dia em que o Coronel nasceu, deixando-o no fogo, aquela história do batizado que já contei mais atrás. O Coronel? Ah, o Coronel é quem ajudava, sob o olhar severo da mãe, a carregar as balizas de madeira para o caolho.

Quando o tal Joaquim Lopes vendo que nada haveria de conseguir com aquela mulher tão braba, resolveu ir embora, ela disse:

— Compadre Capuxu, a pedra agora é aquela ali... (muitos graus abaixo da outra). 

O tal Capuxu ganhou um novo apelido: Cambito, que é aquele pau em forma de forquilha que a gente coloca nos jumentos para carregar madeira ou cana, porque o "rumo" que ele fez na fazenda Macacos começava de um jeito, e, como se fosse um cotovelo, terminava de outro completamente diferente, "comendo" pela metade a fazenda do Joaquim Lopes.

No final da "agrimensura" do caolho, a mãe do Coronel ainda mandou uns desaforos para o vizinho:

— Da próxima vez, trarei um cego. É muito mais seguro trazer um cego. Só o cego conseguirá ser o agrimensor verdadeiro! Basta colocá-lo no início do caminho, aprumá-lo pelas omoplatas, olhar por cima de cada ombro, e dizer: Vai em frente, cego! Em ele sendo cego, não se distrairá com os passarinhos, nem com as flores do campo, nem com essas molecas que tomam banho seminuas nessas beiras de brejos, um atrevimento. Se alguma cobra o morder, não há de ser nada, posto que todo cego tem pauta com São Bento, o protetor dos mordidos de cobra. Afinal, seria uma injustiça permitir que o cego fosse atacado sem ver a cobra, e ainda morresse da mordida. São Bento não deixa, claro! O cego é que é o verdadeiro agrimensor, capaz de traçar rumos linheiros sem nada a distraí-lo. Da próxima, trarei um!

— Minha senhora, o único que traça rumos certos sem olhá-los, quase sempre por linhas enviesadas, é Ele..., o Altíssimo! — disse o padre, pacientemente, Kolbe.

— Louvado seja!


 

16 - As crianças não seriam inocentes?! Ainda no bucho da mãe, já tramando safadezas?!

 

Feita esta pequena digressão, vejamos o que respondeu o "agrimensor" ao da cabeça grande. Claro que aquela alma assustada, com aquelas orelhas de abano, aquele sobretudo preto, poderia ser qualquer coisa... agrimensor? Só se fosse agrimensor dos canteiros de coentro, de algumas poucas fileiras de alface, desde que plantados à sombra. Sequer caolho ele era! Ele disse:

— O problema é que o réu, nesses três anos, perde necessariamente a inocência. A demora levá-lo-á a cometer faltas que jamais cometeu nem cometeria normalmente. A primeira delas é precisamente blasfemar contra a Justiça! — Fez uma pausa e disse:

— Veja, o senhor: um recém-nascido, quem tem dúvidas que ele é inocente? — Ninguém discordou.

— O perigo é que aos três anos qualquer criança já tem consciência do grande pecado, como se tivesse comido do fruto da árvore do Bem e do Mal, posto que já sabe, com essa idade, três anos... — no que foi interrompido pelo cabeça grande que disse que o prazo de três anos era muito pequeno, que votava por cinco anos. Armou-se uma grande confusão.

Um senhor de preto, era mais um judeu, alto, muito elegante, insistindo em fumar uma cigarrilha, no que foi por mim gentilmente impedido — afinal, fumaça na minha cela já havia até demais a partir da estaca que o negro mantinha acesa —, quis, o tal senhor, interferir.

Então perguntaram-lhe, antes mesmo que falasse, o que ele achava do limite de três ou de cinco anos às crianças como marco inicial da perda da inocência.

O que o tal senhor falou, ele até parecia respeitável, uma vistosa corrente de algibeira, muito distinto (logo constatei que era só por fora!), melhor que eu jamais tivesse escutado. Aqui no Carandiru tem de tudo, feras e santos, para todo gosto ou desgosto, completos! Mas isto de dizer que toda criancinha é tarada, que quer comer a mãe e matar o pai, pelo amor de Deus!, só pode ser mesmo o fim dos tempos.

Começo a achar que o Carandiru é um convento de freiras se comparado com o que aqueles loucos faziam ou diziam que eles tinham feito ou que eram capazes de repetir, que quanto a isto ninguém tenha dúvidas que eles o farão novamente. O desgraçado ainda teve o topete de dizer que a criancinha, lá dentro da barriga da mãe, à falta do que fazer, só pensa em safadezas! Claro que esse cara foi o mais louco dos loucos que apareceram em toda a reunião. Garantiu que criança alguma é inocente! Um louco varrido, claro que era.


 

18 - O Coronel conta um sonho muito estranho: a fuga da mãe

 

Pediram ao Coronel para contar se ele algum dia, por acaso, tivera alguma tara pela mãe.

— Velha minha mãe, que Deus a tenha! — disse o Coronel — Muito mais fácil pra mim seria mamar diretamente na onça do Canindé ou nas penas do carcará fêmea, do que imaginar que poderia ter o topete de inventar uma "inxirição" para o lado dela. Não, nem pensar! — E continuou:

— Acho que esse senhor que disse que o nenê já está de safadeza para o lado da mãe ainda dentro da barriga, o tempo todo pensando em matar o pai, está completamente errado. Por outra, pensando melhor, se for para o lado de uma moleca, aí sim, acho que é diferente. Nestes séculos todos, nunca esqueci o pituim da madrinha, nem jamais quis esquecê-lo, e, se um dia, dele deixar de me lembrar, muito me aborrecerei.

E, estranho, o Coronel, um homem aparentemente rude, quando falou na tal madrinha, tremeu a voz. Mas, prosseguiu:

— Em todo o caso, agora me lembro, tive uma noite terrível, era muito pequeno, sonhei com mãe esquipando como se fosse uma mula-sem-cabeça, num despenhadeiro bem alto, bem íngreme, só de camisolão de fustão, eu correndo atrás, mas não era para safadeza, não! Isto nunca! Era o terror de imaginar que estivesse indo embora sem mim e sem a madrinha.

— Acordei aos prantos. Estava na rede com a madrinha. Abracei a madrinha com bem força. Ela não perguntou por que, nem eu disse nada. Sim, efetivamente, a mãe foi embora, mas pelas mãos dEle, justo no dia em que Nosso Senhor Jesus Cristo a chamou. Em seguida, foi a vez da madrinha que também viajou — disse o Coronel, e se benzeu.
      O tal Coronelão — ele não é alto, mas é entroncado e forte como um bicho bruto — que todos imaginávamos a brabeza em pessoa, para vergonha de toda a sala, desculpem, de minha modesta cela, desmanchou-se num pranto alto e constrangedor.


 

19 - Os matemáticos, Blake à frente, demonstram a idade da inocência

— Qual é, afinal, a idade da inocência? — gritou alguém lá detrás, não ligando nem um pouco para o vexame do Coronel.

— O Blake! — gritaram —, foi ele quem escreveu sobre o assunto.

Enquanto o tal não se apresentava, até pensei que fosse faltar luz na prisão, um "bleicaute", quem sabe, um novo massacre como aquele dos 111 — o tal "agrimensor" disse que o voto dele era pelos três anos. O da cabeça grande, muito aturdido com tudo aquilo, levantou uma tabuleta, dessas de jogo de futebol para indicar os minutos de prorrogação, com o número 5. Sequer falou nada, apenas balançava no ar, na altura da tocha do negro tremedor, a tabuleta com o 5.

O Blake, comentaram seria ele também um feiticeiro, um grande estudioso dos números mágicos, mas, sobretudo, um pintor e Cantador dos maiores. Estranho que nunca tenha aparecido aqui na Biblioteca nenhum cordel da autoria desse tal. Ele disse:

— O 3 e o 5 somados, e temos 8. Uma média simples e imediata, já temos o 4, de modo que nem tanto ao mar nem tanto à terra. Mas a solução não é por aí. De fato, se montarmos o triângulo retângulo com esses números, teremos 3² + 4² = 5². O cateto menor, 3, representará a inocência absoluta; o cateto maior, 4, a inocência relativa; a hipotenusa, 5, a plenitude da neutralidade. De igual sorte, os 9 anos serão a infância; os 16, a juventude; os 25, a plena maturidade. Pitágoras, se aqui presente, confirmaria que a idade da inocência preenche o cateto menor, 3 anos. Sim, a neutralidade plena é a partir dos 5 anos! — concluiu.

Alguém lá de detrás disse:

— Cumpre-me aplaudir a brilhante demonstração do ilustre matemático.

— Poeta, por favor, e dos maiores! —, retificou o Coronel, já refeito da crise. Continuou o "agrimensor":

— Pois bem, o fato é que a partir dos três anos, a criança já tem consciência do grande pecado, como se tivesse comido do fruto da árvore do Conhecimento, posto que já sabe, ainda que parcialmente, exercitar a neutralidade. Ela não mais dirá, como dizia até os dias da inocência: Vô, tu és feio! Dali para frente, em sendo neutra, não se manifestará gratuitamente sobre a fealdade do avô, e se o fizer, será para deliberadamente ofendê-lo, o que é diferente e até muito honesto, sabe-se lá o que o velho andou aprontando.

O velhote que falara nos meninos tarados, que Deus nos defenda, proteja e guarde daquela fera, puxou um sorriso meio cínico com essa de que o avô poderia estar aprontando coisas, mas o "agrimensor" não se perturbou e disse em sua voz tímida porém inflexível:

— Eis a verdade absoluta:

 

Criança alguma é neutra!

 

Limitou-se o tal "agrimensor", depois da confusa história da idade da inocência, que, mesmo confusa, nos deixou a todos muito perturbados, a dizer que muitos dos cidadãos ali presentes, com todo o respeito, falou assim mesmo, eram acusados de muita coisa ruim, e que era de admirar que ali não houvesse nenhum processo, nem o porteiro do tribunal estivesse presente, sequer o guarda do portão da Lei, para interrogar qualquer um deles.

— Acusam aos senhores como responsáveis por grandes morticínios. E os processos? Mataram, mandaram matar, sem processo algum? Os réus sabiam que iam morrer? Os réus sabiam, ao menos, que estavam sob processo? A alguns, consta que falavam num banho depois de uma longa viagem. Que banho era? Um banho de peia? Ou seria um banho refrescante, com os aromas, os bálsamos e os sais? Apenas um banho tradicional, de água e sabão? Toalhas limpas e enxutas para todos? Doutras vezes, falavam-lhes em estações de trabalho. Trabalho? Trabalhavam em quê, os assassinados? Tinham livro de ponto? Salários? Receberam as horas-extras? Férias, concederam-lhes as férias?

Ele falava de cabeça baixa, mas deu para notar que despachou uma espiadela ao senhor do bigodinho que fez que não viu. Virou-se um pouco, de modo a ficar quase na visada direta com o Mr. Vice-President, e disse:

— Noutros casos, os assassinados estavam candidamente em casa, na faina doméstica; os meninos, na algazarra juvenil sob o olhar nada complacente dos bedéis; os jovens, muitos casais de mãos dadas, nas pracinhas calmas das cidades do interior. Os meirinhos do Tribunal os notificaram? Os senhores guardaram os AR’s para comprovar que avisaram? O juiz da instrução teria sido notificado do morticínio que iria explodir?

Foi a vez de o bigodinho esfregar sofregamente as mãos em direção ao Mr. Vice-President. Entreolharam-se. Iam-se engalfinhar outra vez. O negro da tocha olhou rápida e severamente para ambos. Acalmaram-se.

Também presentes outros senhores mal encarados. Entreolhavam-se, só de soslaio, o tempo todo, e eram vários, muitos; generais com uniformes vistosos; mais outros não menos mal encarados, quase sempre de óculos escuros, e cujos nomes não lembro. Muitos! Nunca pensei que minha cela comportasse tantos.

Puxaram uma lista. Disseram que a lista verdadeira seria muito maior, metros e metros, quilômetros se duvidarem, dos nomes da crueldade. Eles nada disseram apesar do olhar interrogativo do "agrimensor", que os olhava de cabeça baixa.

— E os processos? Não vejo nesta sala um único process.../ — e ali mesmo tombou, sem dizer mais nada aquele senhor do olhar triste e tímido.


 

19 - Do escritor mais famoso e do menino maior de todos

 

Ninguém falou nada. Ninguém sabia dizer nada. Se sabia ou se não sabia, nada quis dizer, porque, neutro, não se quis envolver. Com aquele ar soturno, ele certamente seria mesmo um banqueiro falido, diziam. O Coronel interferiu dizendo que aquele senhor era, isto sim, o maior escritor de todos os tempos, quase tão bom quanto o Menino.

Não sei porque o Coronel inventou essa idéia de fazer comparações, logo com esse tal Menino que nem sabemos direito quem é. Porque cada um naquela sala tinha uma opinião completamente diferente. Os guardas, do lado de fora da cela, fizeram um coro intenso gritando o nome de um feiticeiro, um tal Coelho, dito Paulo. Em suma, temi que ali mesmo a reunião fosse acabar, porque já vi que nesse campo de escritores, cada um grita mais forte do que o outro, em causa própria ou em favor dos apaniguados.

O que salvou a reunião foi o fato de o sinistro senhor do bigodinho interromper a gritaria, para, a muito custo retomar o tema do Menino, de modo que ficamos sem saber quem era mesmo o maior escritor.

Finalmente, num susto geral, o do bigodinho, agora para além de apoplético, gritou, aos berros, um grito terrível de acordar todo o Carandiru e grandes distâncias:

— Pois saibam todos! Os malditos judeus, que nunca consegui destruir, sempre estiveram certos, completamente certos:

 

O menino maior de todos ainda está por vir!

 

 

 

 

 

20.2.2005