Soares Feitosa |
Jornal de Poesia
|
Salomão
O
Relato do Bibliotecário
Um
aviso:
Isto
aqui é apenas um rascunho. Com muitos erros, gramaticais até.
Deixo a revisão para depois. Anote-me, por seu favor,
os erros. Mande sugestões, palpites, reprimendas até.
Mando o abraço.
12 - Chegam
os primeiros facínoras. Um deles se diz pintor
famoso. O outro operava muito bem o Corel-Draw
Abruptamente as rezas foram interrompidas
por um senhor de aparência sinistra, um bigodinho
meio ridículo, o cabelo repartido de lado, e atrás
dele, a imitar-lhe todos os gestos, o palhaço conhecido
pelo nome Charles, dito Chaplin.
O sinistro senhor berra, a plenos
pulmões, que ele também era um pintor da
estirpe do Capitão! E que estava ali não como
um coronel chanceler, mas como um pintor consagrado, tão bom
como o Herr Capitão!
A multidão de presos e
guardas já se acotovelava à porta da cela,
como que hipnotizada por aquela voz terrível — e que
voz! Todos em silêncio, alguns já se perfilavam; ouvir-se-ia
o vôo de um mosquito a cem metros de distância.
Ele bradou:
— Qual é, afinal, o Menino
mais poderoso?
O do bigodinho, ele mesmo!, respondeu:
— Pois saibam todos! Os malditos
judeus, que nunca consegui destru... — no que foi interrompido
por um senhor muito bem vestido, recém-chegado.
Era um tal Mr. Vice-President, que mesmo chegado
por último, já tentava impor presença.Antes
porém que o tal Mr. Vice-President conseguisse
juntar palavra com palavra, o senhor do bigodinho partiu
para cima dele, dedo em riste:
— Se a primeira era de basta,
por que a segunda? A primeira, sim, como operação
militar, vá lá que fosse, justa e eficiente! Mas a segunda?
Ódio. De puro ódio!
O sinistro senhor do bigodinho
espumava de tanta raiva, mas o Mr. Vice-President
apenas o olhava, como se não estivesse entendendo
nada. Engalfinharam-se. Um judeu, com a cara de professor,
brandindo uma carta, interferiu. Não conseguiu apartá-los
com "arma" tão singela, apenas aquela folha de papel
de aspecto muito antigo, já desbotando.
O negro do treme-treme fez carreira
para arrebentar a cabeça dos brigões com
a acha de lenha, mas o padre, com grande placidez, pediu
que apenas os apartasse. O treme-treme, o tempo todo segurava
a tocha, uma grande fumaceira dentro da cela, mas quando
alguém tentou ajudá-lo, para que, com mais
facilidade, ambas as mãos livres, desengalfinhasse aqueles
loucos — quem disse que ele deixou?! Com uma mão apenas, deu
um muxicão bem rápido, rapidíssimo,
num e noutro. Ainda fez um rapapé que parecia um bailado,
ante o que aquelas feras, amedrontadas com a velocidade do
negro, ficaram mansas como um cordeiro.
O do bigodinho, porém,
continuou rosnando sobre a segunda bomba. O Mr. Vice-President
resmungava que tinha uma fábrica de bombas, aliás,
várias fábricas. Quando,
inesperado, chegou mais um, de cara sinistra, forte como
um lutador, um bigode espesso, um olhar cruel.
O tal Mr. Vice-President
dirigiu-se imediatamente ao recém-chegado afirmando
que este os enganara a todos porque fizera, antes da luta,
um trato com o do bigodinho. Garantiu que fora muito bem feito que o do bigodinho
o traísse, mas um povo de tanto sofrimento e religiosidade,
como o dele, não merecia o facínora que era.
Comentaram que o tal do bigode
espesso mandara trucidar centenas de oficiais poloneses,
a fina flor do exército, um tiro na nuca, uma vala
comum na montanha gelada. Depois negou tudo e ainda botou
a culpa no pessoal do bigodinho. Disseram também
que ele era um grande programador visual, cuja especialidade
era retirar de fotos históricas, da Enciclopédia, a
figura dos inimigos, amigos porém de outras épocas.
Disseram que ele é que inventara o Corel-Draw, um programa
de computador, de primeira para apagar figuras de um retrato
ou trocar, uma cara por outra, numa paisagem gráfica.
— Mas não foi o Bill Gates
que inventou esse tal Corel, senhor?
Bom, isto depois a gente investigará
no Google, mas já lhes garanto que não
foi o tal Bill Gates quem o inventou. O fato é que o tal do bigode
espesso seria um fino especialista em matar os ex-amigos.
Em seguida os apagava da história, dos livros
de propaganda, de modo que, para saber quem era quem, o
pesquisador teria que consultar as edições
da cada ano. A garantia de que o áulico (ainda) permanecia
vivo era aparecer no retrato atual do grupo do facínora.
Para surpresa, o tal bigode espesso partiu para o Mr. Vice-President:
— Ah, o senhor, com essa pureza
toda!? É o dono da segunda bomba! Sim, os meus crimes,
meu sucessor os historiou todos. Tão verdadeiros que sequer lhes discuto
o mal. Os deste outro — e apontou para o do bigodinho —
também não há como negá-los,
mas o ponto alto de todo o mal do século das trevas
foi a segunda bomba, a sua, seu engomadinho de uma figa!
Para que a segunda bomba? Por que não aguardar a rendição,
se todos sabiam que o terror de uma única era mais do que suficiente?!
O professor judeu continuava brandindo
a carta em direção ao Mr. Vice-President,
que fazia de contas que não era com ele. O do bigodinho,
agora todo amarfanhado com o jab que o negro lhe
dera, ficou insistindo na gratuita perversidade da segunda
bomba. Que bomba? Iriam aqueles loucos dinamitar o Carandiru?
A Biblioteca agüentaria o bombardeio?
O padre Kolbe tentou acalmar o
ambiente. Pediu que a carta fosse lida em voz bem pausada
para que todos a escutassem. O professor judeu declarou que
aquela carta não teria mais valor algum, ali. Contou que escrevera
muitas delas, uma atrás da outra tanto para o Mr.
President, como para aquele ali, o tal Mr. Vice
— e apontou para ele com grande nojo —, pedindo-lhes que
sequer a primeira bomba fosse detonada, quanto mais a segunda.
Contou que aqueles indivíduos
que terminavam de se engalfinhar, e, merecidamente haviam
sido surrados pelo senhor da acha de lenha, mais aquele
outro do bigode espesso, eram a vergonha do mundo, os verdadeiros
genocid.../ Sequer terminou a frase. Ali mesmo caiu fulminado,
Em cima da carta.
Disseram que ele era um cientista
do mais alto valor, de nome Leo, Leo Szilard, um dos que
participaram do invento da bomba. Contaram que ele, assombrado
com o potencial de matança daquela arma, danara-se
a fazer cartas para o presidente americano pedindo que
não a soltasse nunca. O problema é que o presidente
morreu, e o Mr.Vice-President aproveitou para
despachá-las, ligeiras, em cima dos japoneses.
Contudo, o tal judeu, juntamente
com a fina flor da ciência mundial, nas vésperas
do bombardeio, mandaram-lhe várias cartas sugerindo
uma demonstração em campo aberto, com o que — o
poder tão terrível, ali, o imperador do Japão
e seus generais presentes, vendo o destroço que
haveria de causar — render-se-iam, assim imaginara, inocente,
aquele professor judeu, o Doutor Leo Szilard, um sonhador.
Uma música? Bom, entre as
muitas coisas estranhas que apareceram na reunião
da Biblioteca, esta, que ouvi, distante, não sei de onde: «You may say I'm a dreamer,/ but Im not the only one,/ I hope
some day you'll join us,/ And
the world will live as one». E, dos presentes, alguém
dizia em voz baixa: «Você talvez diga que sou um sonhador,/ Mas eu não
sou o único» Uma pena, que o resto não
deu para escutar. Achei parecido com
a boz do Coronel. Ou seria do Profeta. Não deu para distinguir, sob
tanta confusão.
Comentaram que o tal Mr. Vice-President
não quis conversa! Apertou o botão da primeira bomba, e, como
se fosse pouco, despejou a segunda em cima dos japoneses,
que também pintavam ampla miséria, senão
maior, com os prisioneiros, tudo farinha do mesmo saco,
porque na hora da crueldade, todo homem é igual.
13 - Surge
a primeira lista: a do Nobel ou a da Seca do 32?
Alguém fez um gesto de
apanhar a carta, perguntando se não seria uma lista.
(Lista? Lista de quê? Dos alvarás de soltura? —
perguntei-me — o meu?).
No que um dos cegos, o tal novo
Bibliotecário, Jorge, perguntou bem alto se não
seria a lista dos premiados do Nobel, acrescentando que
ele era, que sempre fora candidato. Alguém gritou lá
de trás que o novo Bibliotecário jamais poderia
candidatar-se a lista alguma, porque colaborara com os
generais, os argentinos e os brasileiros. Ao que o cego
disse:
— Mas o outro negou vistos! Mesmo
assim, foi premiado. Começo a desconfiar dessas
listas!
O "outro"? Quem, o "outro"? —
perguntei-me. Então, um dos cegos, desta vez o Cantador,
perguntou se o "outro" não seria um tal Patativa,
um novo Cantador que muitos diziam que seria melhor do
que ele, Aderaldo. Queria saber se o tal Patativa ganhara
o Nobel. Ou, se a "lista" não seria a dos flagelados
da Seca do 32, que ele estava, sim, "alistado no
fornecimento" mas não pagaram o que lhe deviam; que, por
favor, lessem a lista com cuidado, que o nome dele devia
estar lá. Governo ladrão! — completou
o cego Cantador.
O monge cego, Jorge, interferiu
dizendo que ninguém ali estava levando a reunião
a sério; que, se de listas houvesse alguma a procurar,
dissessem logo qual — no que tremeu a voz, e alguém
comentou que ele matara um monte de noviços lá no
convento dele, e que a "lista" adequada talvez fosse
a dos nomes daqueles mortos... que o cego não era tão
"sério" como se fazia parecer. O padre interveio:
— Sempre que alguém falar
em lista, a prioridade deve ser dada a uma única
e verdadeira lista, a Lista do Schindler, um Coronel
que salvou muita gente.
E puxou um papel do bolsão
da velha batina, muito amarfanhado, e disse: eis a lista
verdadeira! Pediu
licença para escrever ao lado do nome do tal Coronel
Schindler, mais outros nomes: um português, um sueco, um
brasileiro e um norte-americano, mais uns três ou quatro
gatos pingados, assim mesmo que ele disse: pingados, os
gatos.
Ficou minutos tentando caçar
na memória outros nomes. Acrescentou o do papa.
Riscou imediatamente sem justificar por que excluíra
o nome do chefe, ainda que fosse só para cumprir a
hierarquia, de baixo para cima, padre a papa. Pegou a lista, agora com
os novos nomes que ele dizia tão dignos quanto o
do Coronel Schindler, o do papa devidamente anotado porém
riscado, ajoelhou-se em cima do velho papel e disse:
— Louvado seja!
O Capitão foi tomado novamente
de grande fúria, como se desejasse desesperadamente
saber a solução de um novo problema monumental,
os olhos completamente esbugalhados:
— Qual é, meus senhores,
o maior pecado?
— ?
— Ninguém me responde?!
Qual é mesmo o maior pecado?
O sinistro senhor do bigodinho,
o não menos sinistro do bigode espesso e o Mr.
Vice-President entreolharam-se.
Nada disseram.
14 - A chegada
do sábio muito tímido. Das exigências contra os
neutros
Foi a vez de um senhor muito estranho,
muito tímido — disseram que ele escrevia sobre baratas
que se transformavam em caixeiros-viajantes; outros disseram
que ele era um profeta que adivinhara tudo que o senhor
do bigodinho mandou aprontar contra seu povo. Ele disse:
— O verdadeiro pecado, pai e mãe
de todos os outros pecados, é a neutralidade! —
e acrescentou:
— O pior do neutro é quando
o juiz da instrução, e todos sabem como os
juízes da instrução são cruéis e rigorosos,
pergunta o que ele fez, e ele simplesmente diz: «Não
fiz nada, magistrado!». Isto mesmo,
o neutro nada fez, e fez, ao mesmo tempo, tudo! Adubo e
rega ao tirano, os neutros. Só há uma única receita
para acabar com o mal do mundo:
—
Exigir que os neutros se decidam! |
14
- Da lei justa e da chegada do cabeça grande
Gritaram que ele seria um anarquista
suíço querendo acabar com o país dele;
outros disseram que seria um banqueiro falido, querendo
arrebentar com os concorrentes. Ele não respondeu. Comentou
que todos os juízes do mundo eram perversos porque
compactuavam, muitas vezes sem o saberem, com a neutralidade.
— Vejam, senhores, a demora da
sentença nada mais é do que uma sinistra
tentativa de neutralidade: jogar na morte rápida de
uma das partes para não julgar nunca! O magistrado diz: Deixarei
o caso para o meu substituto. Estou de mudança para
outro tribunal. E, entre um cálice de vinho
do Porto e uma bela bacalhoada, de comarca em comarca,
vai, barriga e bolso, a cevar!
E continuou:
— A lei justa deveria ser a que
obrigasse o magistrado a julgar, digamos, entre a inicial
e a sentença, em no máximo 3 anos! Se, no
final desse prazo, não soltasse a sentença, o réu
seria dispensado, e preso, no lugar dele, o juiz.
Naquele exato instante, retornava
à sala, isto é, à minha modesta cela,
o engenheiro militar no grau repórter, agora acompanhado de um senhor
baixinho, cabeça muito grande, uma sisudez de mestre-escola.
Disse o baixinho:
— Meu caro agrimensor, o senhor
está enganado. Por que esse prazo de três
anos para prender o magistrado? Fiz um código e
nele não tenho esse prazo, muito menos essa pena contra o
juiz. O senhor justifique, por favor.
Seria ele, de fato, um agrimensor?
Com aquele corpo franzino, só se fosse um daqueles
que assinam o ponto, jogam o paletó no espaldar da cadeira e não
trabalham nunca. Garanto que ele não teria força
para segurar um teodolito, muito menos "espinhaço"
para passar o dia inteiro abaixando-se, mirando lá longe, anotando
os pontos numa cadernetinha; levantando-se bruscamente,
uma carreirinha ligeira até a próxima visada,
abaixando-se novamente, outra vez olhando no "olho mágico"
do instrumento; em suma, andando léguas e léguas
sob o sol quente com aquele tripé. Não e
não, aquele ali, não. Devia ser engano isto
de o baixinho da cabeça grande chamá-lo agrimensor.
15 - Do Agrimensor
cego, uma historinha de agrimensuras
O Capitão contava, num
intervalo de uma palavra cruzada e outra, que essa profissão
de agrimensor era uma das mais perigosas. Em especial se
fosse para delimitar as fazendas de dois coronéis
verdadeiros, como o Coronel Horácio da Silveira
e o Coronel Sinhô Badaró, no Sequeiro Grande, lá
no cacau.
— Só com muita bala, meu
caro Bibliotecário Djalma, só com muita bala!
— dizia o Capitão.
Meu auxiliar de Bibliotecário, o Capitão,
gostava muito de contar as muitas histórias da mãe
do Coronel. Esta, foi só o que me ocorreu quando
vi o cabeça grande chamando aquele tímido
senhor de agrimensor. Não sei se era deboche. Assim
contava o Capitão:
Um dia, um tal Joaquim Lopes resolveu
invadir o macaco da mãe do Coronel, isto é,
a fazenda dela é que se chamava Macacos.
Ela ajuntou dez cabras, todos
armados de soca-soca; vestiu uma calça comprida
por debaixo do vestido, naquele tempo em que mulher alguma
andava de calça comprida; montou-se, escanchada,
no cavalo Bacalhau, num tempo em que as mulheres só
cavalgavam de banda; mandou o Coronel, que ainda era menino,
montar-se no jumento Moleque; encheu três alforjes com
paçoca, carne-seca e rapadura; quatro borrachas de sola com
água da cisterna, e, de tropel, desceram as quebradas
da Serra das Matas fazendo um grande alarde de que o tal
Joaquim Lopes iria saber o que era bom pra tosse.
Em lá chegando, a mãe
do Coronel mandou chamar um cabra que tinha um olho cego,
e o apresentou ao invasor:
— Seu Joaquim, este é o
meu agrimensor.
Os cabras, com as espingardas
entupidas de chumbo miúdo, bucha de capim seco e
pólvora até a tampa, ali, quietos, só
escutando. O tal Joaquim Lopes, evidentemente, disse que sim.
Eu não sei se o Capitão
era um dos que estavam lá, entre os dez das espingardas,
ou se ouvira essa "edificante" história da boca
do Coronel, ou sabe-se lá de quem a ouvira, ou se
ele mesmo a inventara, o fato é que a história corria
no trecho como autêntica. Então, ali presente o
"agrimensor", a mãe do Coronel apontou para três
estacas e disse-lhe:
— Faça rumo, compadre Capuxu,
entre a Volta do Rio e a Pedra Grande! Enfie a primeira
estaca, espie por cima dela bem espiado direto para a Pedra
Grande! Mande botar a segunda estaca bem no
rumo em que estiver espiando por cima da primeira estaca; em seguida
bote a terceira estaca na mesma risca de olho; as três
assim, linheiras, bem aprumadas. Aí, compadre, você
manda o auxiliar arrancar a estaca que está mais
atrás e levá-la lá para a frente,
quando então você se muda para a estaca seguinte
e ajusta as três outra vez na mesma reta. Depois,
recomece tudo de novo e assim por diante. É só ter
o cuidado de emparelhar as três estacas sempre na mesma
linha! Com cuidado, compadre! Tudo bem linheiro, compadre!
Vamos, minha gente! Ligeiro, até terminar! Antes
de o sol se pôr! O tal Joaquim Lopes disse:
— Por favor, senhora, esse cidadão
que a senhora chama de agrimensor só tem um olho.
Quem já viu agrimensor de um olho só?
A mãe do Coronel falou:
— O senhor está enganado.
Não existe profissão mais adequada para um
caolho do que essa de agrimensor! É suficiente que
ele olhe com um olho só, e pronto, porque não terá
nenhum perigo de se distrair com a outra vista. O perigo,
sim, se ele olhasse com os dois, um num rumo, outro noutro.
O tal Capuxu, que jamais havia
tirado rumo algum, agora ali, de "agrimensor", perguntou,
quase trêmulo:
— Comadre, qual é mesmo
a Pedra Grande?
Ela fez um trejeito com o beiço,
apontou para um lajedo que ficava a léguas de onde
o Joaquim Lopes queria o traçado, e disse:
— É lá!
O Joaquim Lopes não disse
mais nada, nem o marido da mãe do Coronel também
disse nada, porque ele mesmo correra do pau há muito
tempo, se mudando desta a melhor no mesmo dia em que o
Coronel nasceu, deixando-o no fogo, aquela história do
batizado que já contei mais atrás. O
Coronel? Ah, o Coronel é quem ajudava, sob o olhar severo da
mãe, a carregar as balizas de madeira para o caolho.
Quando o tal Joaquim Lopes vendo
que nada haveria de conseguir com aquela mulher tão
braba, resolveu ir embora, ela disse:
— Compadre Capuxu, a pedra agora
é aquela ali... (muitos graus abaixo da outra).
O tal Capuxu ganhou um novo apelido:
Cambito, que é aquele pau em forma de forquilha que a gente
coloca nos jumentos para carregar madeira ou cana, porque
o "rumo" que ele fez na fazenda Macacos começava
de um jeito, e, como se fosse um cotovelo, terminava de
outro completamente diferente, "comendo" pela metade a
fazenda do Joaquim Lopes.
No final da "agrimensura" do caolho,
a mãe do Coronel ainda mandou uns desaforos para
o vizinho:
— Da próxima vez, trarei
um cego. É muito mais seguro trazer um cego. Só
o cego conseguirá ser o agrimensor verdadeiro! Basta
colocá-lo no início do caminho, aprumá-lo pelas
omoplatas, olhar por cima de cada ombro, e dizer: Vai em
frente, cego! Em ele sendo cego, não se distrairá
com os passarinhos, nem com as flores do campo, nem com
essas molecas que tomam banho seminuas nessas beiras de
brejos, um atrevimento. Se alguma cobra o morder, não
há de ser nada, posto que todo cego tem pauta com
São Bento, o protetor dos mordidos de cobra. Afinal,
seria uma injustiça permitir que o cego fosse atacado
sem ver a cobra, e ainda morresse da mordida. São
Bento não deixa, claro! O cego é que é o
verdadeiro agrimensor, capaz de traçar rumos linheiros sem
nada a distraí-lo. Da próxima, trarei um!
— Minha senhora, o único
que traça rumos certos sem olhá-los, quase
sempre por linhas enviesadas, é Ele..., o Altíssimo!
— disse o padre, pacientemente, Kolbe.
— Louvado seja!
16 - As crianças
não seriam inocentes?! Ainda no bucho da mãe,
já tramando safadezas?!
Feita esta pequena digressão,
vejamos o que respondeu o "agrimensor" ao da cabeça
grande. Claro que aquela alma assustada, com aquelas orelhas
de abano, aquele sobretudo preto, poderia ser qualquer
coisa... agrimensor? Só se fosse agrimensor dos
canteiros de coentro, de algumas poucas fileiras de alface,
desde que plantados à sombra. Sequer caolho ele
era! Ele disse:
— O problema é que o réu,
nesses três anos, perde necessariamente a inocência.
A demora levá-lo-á a cometer faltas que jamais
cometeu nem cometeria normalmente. A primeira delas é
precisamente blasfemar contra a Justiça! — Fez uma
pausa e disse:
— Veja, o senhor: um recém-nascido,
quem tem dúvidas que ele é inocente? — Ninguém
discordou.
— O perigo é que aos três
anos qualquer criança já tem consciência
do grande pecado, como se tivesse comido
do fruto da árvore do Bem e do Mal, posto que já
sabe, com essa idade, três anos... — no que foi
interrompido pelo cabeça grande que disse que o prazo de
três anos era muito pequeno, que votava por cinco anos.
Armou-se uma grande confusão.
Um senhor de preto, era mais um
judeu, alto, muito elegante, insistindo em fumar uma cigarrilha,
no que foi por mim gentilmente impedido — afinal, fumaça
na minha cela já havia até demais a partir
da estaca que o negro mantinha acesa —, quis, o tal senhor,
interferir.
Então perguntaram-lhe,
antes mesmo que falasse, o que ele achava do limite de
três ou de cinco anos às crianças como marco
inicial da perda da inocência.
O que o tal senhor falou, ele
até parecia respeitável, uma vistosa corrente
de algibeira, muito distinto (logo constatei que era só
por fora!), melhor que eu jamais tivesse escutado. Aqui
no Carandiru tem de tudo, feras e santos, para todo gosto ou desgosto, completos!
Mas isto de dizer que toda criancinha é tarada,
que quer comer a mãe e matar o pai, pelo amor de
Deus!, só pode ser mesmo o fim dos tempos.
Começo a achar que o Carandiru
é um convento de freiras se comparado com o que
aqueles loucos faziam ou diziam que eles tinham feito ou
que eram capazes de repetir, que quanto a isto ninguém
tenha dúvidas que eles o farão novamente. O desgraçado
ainda teve o topete de dizer que a criancinha, lá
dentro da barriga da mãe, à falta do que
fazer, só pensa em safadezas! Claro que esse cara
foi o mais louco dos loucos que apareceram em toda a reunião.
Garantiu que criança alguma é inocente! Um
louco varrido, claro que era.
18 - O Coronel
conta um sonho muito estranho: a fuga da mãe
Pediram ao Coronel para contar
se ele algum dia, por acaso, tivera alguma tara pela mãe.
— Velha minha mãe, que
Deus a tenha! — disse o Coronel — Muito mais fácil
pra mim seria mamar diretamente na onça do Canindé
ou nas penas do carcará fêmea, do que imaginar que
poderia ter o topete de inventar uma "inxirição"
para o lado dela. Não, nem pensar! — E continuou:
— Acho que esse senhor que disse
que o nenê já está de safadeza para
o lado da mãe ainda dentro da barriga, o tempo todo
pensando em matar o pai, está completamente errado. Por
outra, pensando melhor, se for para o lado de uma moleca, aí
sim, acho que é diferente. Nestes séculos
todos, nunca esqueci o pituim da madrinha, nem jamais quis
esquecê-lo, e, se um dia, dele deixar de me lembrar,
muito me aborrecerei.
E, estranho, o Coronel, um homem
aparentemente rude, quando falou na tal madrinha, tremeu
a voz. Mas, prosseguiu:
— Em todo o caso, agora me lembro,
tive uma noite terrível, era muito pequeno, sonhei
com mãe esquipando como se fosse uma mula-sem-cabeça,
num despenhadeiro bem alto, bem íngreme, só
de camisolão de fustão, eu correndo atrás, mas não
era para safadeza, não! Isto nunca! Era o terror
de imaginar que estivesse indo embora sem mim e sem a madrinha.
— Acordei aos prantos. Estava
na rede com a madrinha. Abracei a madrinha com bem força.
Ela não perguntou por que, nem eu disse nada. Sim,
efetivamente, a mãe foi embora, mas pelas mãos
dEle, justo no dia em que Nosso Senhor Jesus Cristo a chamou.
Em seguida, foi a vez da madrinha que também viajou
— disse o Coronel, e se benzeu.
O tal Coronelão — ele não
é alto, mas é entroncado e forte como um bicho bruto
— que todos imaginávamos a brabeza em
pessoa, para vergonha de toda a sala, desculpem, de minha
modesta cela, desmanchou-se num pranto alto e constrangedor.
19 - Os matemáticos,
Blake à frente, demonstram a idade da inocência
— Qual é, afinal, a idade
da inocência? — gritou alguém lá detrás,
não ligando nem um pouco para o vexame do Coronel.
— O Blake! — gritaram —, foi ele
quem escreveu sobre o assunto.
Enquanto o tal não se apresentava,
até pensei que fosse faltar luz na prisão,
um "bleicaute", quem sabe, um novo massacre como aquele
dos 111 — o tal "agrimensor"
disse que o voto dele era pelos três anos. O da cabeça
grande, muito aturdido com tudo aquilo, levantou uma tabuleta,
dessas de jogo de futebol para indicar os minutos de prorrogação,
com o número 5. Sequer falou nada, apenas balançava
no ar, na altura da tocha do negro tremedor, a tabuleta
com o 5.
O Blake, comentaram seria ele
também um feiticeiro, um grande estudioso dos números
mágicos, mas, sobretudo, um pintor e Cantador dos
maiores. Estranho que nunca tenha aparecido aqui na Biblioteca
nenhum cordel da autoria desse tal. Ele disse:
— O 3 e o 5 somados, e temos 8.
Uma média simples e imediata, já temos o
4, de modo que nem tanto ao mar nem tanto à terra.
Mas a solução não é por aí. De fato, se
montarmos o triângulo retângulo com esses números,
teremos 3² + 4² = 5². O cateto menor, 3, representará
a inocência absoluta; o cateto maior, 4, a inocência
relativa; a hipotenusa, 5, a plenitude da neutralidade.
De igual sorte, os 9 anos serão a infância;
os 16, a juventude; os 25, a plena maturidade. Pitágoras,
se aqui presente, confirmaria que a idade da inocência
preenche o cateto menor, 3 anos. Sim, a neutralidade plena
é a partir dos 5 anos! — concluiu.
Alguém lá de detrás
disse:
— Cumpre-me aplaudir a brilhante
demonstração do ilustre matemático.
— Poeta, por favor, e dos maiores!
—, retificou o Coronel, já refeito da crise. Continuou
o "agrimensor":
— Pois bem, o fato é que
a partir dos três anos, a criança já
tem consciência do grande pecado, como se
tivesse comido do fruto da árvore do Conhecimento, posto que
já sabe, ainda que parcialmente, exercitar a neutralidade.
Ela não mais dirá, como dizia até
os dias da inocência: Vô, tu és feio!
Dali para frente, em sendo neutra, não se manifestará
gratuitamente sobre a fealdade do avô, e se o fizer,
será para deliberadamente ofendê-lo, o que
é diferente e até muito honesto, sabe-se
lá o que o velho andou aprontando.
O velhote que falara nos meninos
tarados, que Deus nos defenda, proteja e guarde daquela
fera, puxou um sorriso meio cínico com essa de que
o avô poderia estar aprontando coisas, mas o "agrimensor"
não se perturbou e disse em sua voz tímida
porém inflexível:
— Eis a verdade absoluta:
—
Criança alguma é neutra! |
Limitou-se o tal "agrimensor",
depois da confusa história da idade da inocência,
que, mesmo confusa, nos deixou a todos muito perturbados,
a dizer que muitos dos cidadãos ali presentes, com
todo o respeito, falou assim mesmo, eram acusados de
muita coisa ruim, e que era de admirar que ali não
houvesse nenhum processo, nem o porteiro do tribunal estivesse
presente, sequer o guarda do portão da Lei, para
interrogar qualquer um deles.
— Acusam aos senhores como responsáveis
por grandes morticínios. E os processos? Mataram,
mandaram matar, sem processo algum? Os réus sabiam
que iam morrer? Os réus sabiam, ao menos, que estavam
sob processo? A alguns, consta que falavam num banho depois
de uma longa viagem. Que banho era? Um banho de peia? Ou
seria um banho refrescante, com os aromas, os bálsamos
e os sais? Apenas um banho tradicional, de água
e sabão? Toalhas limpas e enxutas para todos? Doutras
vezes, falavam-lhes em estações de trabalho.
Trabalho? Trabalhavam em quê, os assassinados? Tinham livro
de ponto? Salários? Receberam as horas-extras? Férias,
concederam-lhes as férias?
Ele falava de cabeça baixa,
mas deu para notar que despachou uma espiadela ao senhor
do bigodinho que fez que não viu. Virou-se um pouco,
de modo a ficar quase na visada direta com o Mr. Vice-President,
e disse:
— Noutros casos, os assassinados
estavam candidamente em casa, na faina doméstica;
os meninos, na algazarra juvenil sob o olhar nada complacente
dos bedéis; os jovens, muitos casais de mãos
dadas, nas pracinhas calmas das cidades do interior. Os
meirinhos do Tribunal os notificaram? Os senhores guardaram
os AR’s para comprovar que avisaram? O juiz da instrução
teria sido notificado do morticínio que iria explodir?
Foi a vez de o bigodinho esfregar
sofregamente as mãos em direção ao
Mr. Vice-President. Entreolharam-se.
Iam-se engalfinhar outra vez. O negro da tocha olhou rápida e
severamente para ambos. Acalmaram-se.
Também presentes outros
senhores mal encarados. Entreolhavam-se, só de soslaio,
o tempo todo, e eram vários, muitos; generais com uniformes
vistosos; mais outros não menos mal encarados, quase sempre
de óculos escuros, e cujos nomes não lembro.
Muitos! Nunca pensei que minha cela comportasse tantos.
Puxaram uma lista. Disseram que
a lista verdadeira seria muito maior, metros e metros,
quilômetros se duvidarem, dos nomes da crueldade.
Eles nada disseram apesar do olhar interrogativo do "agrimensor",
que os olhava de cabeça baixa.
— E os processos? Não vejo
nesta sala um único process.../ — e ali mesmo tombou,
sem dizer mais nada aquele senhor do olhar triste e tímido.
19 - Do escritor
mais famoso e do menino maior de todos
Ninguém falou nada. Ninguém
sabia dizer nada. Se sabia ou se não sabia, nada
quis dizer, porque, neutro, não se quis envolver.
Com aquele ar soturno, ele certamente seria mesmo um banqueiro
falido, diziam. O Coronel interferiu dizendo que aquele senhor
era, isto sim, o maior escritor de todos os tempos, quase
tão bom quanto o Menino.
Não sei porque o Coronel
inventou essa idéia de fazer comparações,
logo com esse tal Menino que nem sabemos direito
quem é. Porque cada um naquela sala tinha uma opinião
completamente diferente. Os guardas, do lado de fora da
cela, fizeram um coro intenso gritando o nome de um feiticeiro,
um tal Coelho, dito Paulo. Em suma, temi que ali mesmo
a reunião fosse acabar, porque já vi que nesse campo
de escritores, cada um grita mais forte do que o outro, em
causa própria ou em favor dos apaniguados.
O que salvou a reunião
foi o fato de o sinistro senhor do bigodinho interromper
a gritaria, para, a muito custo retomar o tema do Menino,
de modo que ficamos sem saber quem era
mesmo o maior escritor.
Finalmente, num susto geral, o
do bigodinho, agora para além de apoplético,
gritou, aos berros, um grito terrível de acordar
todo o Carandiru e grandes distâncias:
— Pois saibam todos! Os malditos
judeus, que nunca consegui destruir, sempre estiveram certos,
completamente certos:
—
O menino maior de todos ainda está por vir! |
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