Em seu Visões de hoje podemos colher versos com estes, em que [e flagrante a aproximação entre a sua poesia e a de Augusto dos Anjos:
Estendem-se no pó do solo os velhos cultos
Mitos fenomenais espalham-se insepultos
Numa grande extensão de esquálido terreno.
O ar é fino e puro; o espaço azul sereno.
Júpiter, Jeová, Osiris, Buda, Brahma,
Jazem no escuro chão sob esta lousa - a lama!
Como coisas senis, fossilizadas, negras,
Amontoam-se além as bolorentas regras
Da Bíblia, do Alcorão, do A Vesta e Rig-Veda.
Trôpegos, sem valor, curvos de queda em queda,
Fogem, na treva espessa, Adon, Moloque, Siva,
Ormud, Vichnu, Abriman, Baalath...
E mais:
Buscando demonstrar pela transformação
De uma simples monera a gênese do mundo
Orgânico; ensinando o dogma fecundo
Do progresso; afirmando a lei da seleção
E seu correlativo - a luta na existência!
Tentam reconstruir, fiéis à experiência,
O vetusto castelo informe do Direito
Que precisa de ser, sob outra luz, refeito!
Vemos, aqui, - Littré, Spencer, Buckle, Comte;
É a filosofia alevantando a fronte.
Ali - Haeckel, Pasteur, Darwin, Lyel, Broca;
É a ciência pura e refulgente roca
Que serve à fiação metódica dos fatos
Ou feios como a morte ou belos como os cactos. (14)
É bom salientar que essas três fases da Escola projetam-se no futuro, influenciando o ambiente cultural do Recife, do Nordeste e do Brasil, por muitos anos. Nenhum desses períodos se esgota no tempo que lhe foi atribuído mais para efeito didático, vale dizer, quando se iniciou a fase crítico-filosófica ou quando teve começo a fase jurídica, isso não significou o esgotamento dos períodos anteriores. Ao contrário, conjuntamente, as idéias poéticas, filosóficas, críticas, científicas, jurídicas, da Escola estenderam-se em larga por um vasto período da história cultural do País, como teremos oportunidade de salientar a seguir.
O Contato de Augusto com a escola do Recife
Augusto dos Anjos nasceu em 1884, quando já se encontrava em grande ebulição o movimento de que ora aqui tratamos.
Em 1903, com 19 anos, pois, ingressa na Faculdade de Direito do Recife, centro dos grandes debates de idéias, palco das apaixonantes discussões filosófico-cientíticas travadas pelos que faziam a Escola do Recife e seus seguidores.
E aqui nós temos uma comprovação da extensão da influência da Escola por um vasto período de tempo. À época em que Augusto freqüenta a velha academia, longe de arrefecer, o movimento levado a efeito por Tobias Barreto e outros permanecia influenciando, com toda vitalidade, a ambiência cultural do Recife, apesar de decorridos quase vinte anos da morte de sua figura maior.
Um depoimento eloqüente do quadro vivencial constatado àquela época é dadopor Gilberto amado, contemporâneo de Augusto dos Anjos, na Faculdade de Direito:
"O espírito de certas épocas penetra a gente de maneira que se aprende no ar, recebe-se a Doutrina dos tempos pelos poros mesmo sem ter estudado, passado os olhos por livro algum. Quase todo rapaz do meu tempo em Pernambuco era agnóstico, espencerista, monista... Havia, porém, uma minoria que, não chegando aos extremos, refugava o fenomenismo, o mecanismo e afirmava-se espiritualista, teologista. Como se ouve hoje, no Rio, perguntar: "Você é Flamengo ou Fluminense?", ouvia-se na Faculdade do Recife, no velho convento: "Você é monista ou dualista?" Fiquei sabendo como o século XIX, que acabava de morrer, interpretava o que Spinoza chamava substância, Descartes mecanismo, Leibnitz mônada, Kant a "coisa em si" e o que esse século deparava na palavra de Deus a Moisés - Ego sum qui sum".
Terá sido, porém, na Faculdade de Direito o primeiro contato de Augusto dos Anjos com as idéias da Escola do Recife? Terá sido lá o primeiro encontro de Augusto com Haeckel e com Spencer? Terá sido na Faculdade o seu primeiro conhecimento acerca da poesia filosófico-científica defendida tão ardentemente por Martins Júnior?
Certamente que não. Já se tem dito e repetido que Augusto teve um único professor de Humanidades - seu pai, Alexandre dos Anjos que, conforme assinala Francisco de Assis Barbosa, aplicaria o seu cabedal de conhecimentos como preceptor dos filhos desde as primeiras letras aos exames preparatórios e até mesmo ao ensino do Direito.(15) Observa, ainda, Francisco de Assis Barbosa que o "Doutor Alexandre Rodrigues dos Anjos possuía idéias abolicionistas e republicanas. Pelo menos, foi a fama que deixou, como a de ter vasta erudição, verdade que era em letras clássicas além de atualizado com a cultura do seu tempo, leitor de Spencer e até Marx, que citou num artigo "Considerações sobre o salário", por sinal antimarxista, estampado no Almanaque do Estado da Paraíba. Fora contemporâneo de Tobias Barrento, na Faculdade de Direito do Recife". (16)
É natural que, dotado de tal bagagem intelectual, tenha, como professor do filho, transmitido a este conhecimentos a respeito das idéias mais correntes ao seu tempo.
Contudo, essa ação paterna não terá tido força para influenciar a poesia de Augusto. Prova disso é a sua produção anterior ao término do curso de Direito, na qual encontramos versos que falam do amor, da vida, da natureza, de namorados, do mar, do sol, de luz, de estrelas. Aqui e acolá, uma nota de tristeza, de desalento, de desencanto, de desesperança. Jamais, porém, as perquirições de ordem filosófica, as preocupações, as indagações de toda ordem a respeito do homem, da natureza, do ser; jamais o cientificismo, com toda a sua terminologia esdrúxula e que haveria de ser uma das marcas indeléveis de sua poesia.
O que vai influenciar de maneira marcante o espírito de Augusto, assinalando novos rumos à sua poesia, é a sua estada na Faculdade de Direito do Recife, onde o estudo das idéias e das teorias que já lhe fora apresentados, certamente, por seu pai, vai ser revigorado ao sopro dos ventos que, na velha Faculdade, impulsionavam os espíritos jovens de então, consoante o depoimento já visto de Gilberto Amado.
Observa R. Magalhães Júnior que quando após a morte do pai, em janeiro de 1905, Augusto dos Anjos retornou ao Recife, a fim de prestar os exames do segundo ano de Direito, ao chegar ali encontro a tradicional Academia abalada com a morte, no ano anterior, de José Izidoro Marins Júnior, o teórico da poesia científica, como antes enfatizei. E ressalta R. Magalhães Júnior: "Todo o barulho em torno de Martins Júnior - decerto excessivo fruto do entusiasmo generoso e pouco crítico da mocidade estudiosa - deve ter levado Augusto dos Anjos a dar especial atenção a seus versos e às teorias do poeta desaparecido, que influiu também sobre Cruz e Sousa, com quem se relacionou à passagem deste pela capital pernambucana em 1884, como "ponto" da Companhia Julieta dos Santos".(17)
Antes, a imprensa recifense já dera guarida a poesias de tom marcadamente filosófico-cientificista, inspiradas, sem dúvida, no epígono maior - até então - daquele gênero, ou seja, Martins Júnior. O jornal do Recife, por exemplo, publicara em 8 de abril de 1903, um poema de Uldarico Cavalcanti, intitulado Ao verme que primeiro tripudiar sobre o meu cadáver:
Podes tudo roer, verme putrido e imundo!
Esta é a tua missão: devastar a matéria.
Tu primeiro virás, depois virás segundo.
E milhões virão mais tripudiar, no fundo da cova onde
atirar-se a peste ou a miséria!
Podes tudo roer! Nada, nada te impeça
Na tua faina! Roe a mortalha, o caixão
Depois roe-me também: tronco, membros, cabeça
Tudo, enfim, verme, o que à tua gula apeteça
Mas não toques, maldito, o pobre coração.
Se tanto não saciar tua voracidade
Não toque o coração tua boca voraz,
Com o ciúme, as paixões, a tortura e a saudade
Que lá estão devastando a minha mocidade,
Tu te envenenarás! Tu te envenenarás!
E na edição de 24 de setembro de 1904, de autoria de José Gomes de Matos, o Diário de Pernambuco publicava o seguinte poema:
Onto Sentimental
(Ao filósofo e mestre Laurindo Leão)
Quando te vejo, a tábida caveira
Dos meus olhos febris transfigurada
Pelos teus olhos rútilos... Na estrada
Repleta de urzes, cardos e poeira.
Quando te vejo, esvai-se a derrocada
Das leis morais em rápida canseira;
E lá, da treva ao clarão, do fogo à geada,
Vida nova melhor do que a primeira.
Como alguém, pela lei do transformismo,
Fez os seres nascidos das moneras,
Fez da monera um ser todo espontâneo
Tal dos teus olhos, flor do misticismo,
Faço nascido, ao som de mil quimeras,
O amor que vibra do meu crânio!
Como se vê, a poesia científica preconizada por Martins Júnior angariava adeptos e arrebanhava seguidores, mas só alcançaria a culminância com o gênio inigualável de Augusto dos Anjos.
As Idéias da Escola na Poesia de Augusto
Foi Eudes Barros que afirmou ter Augusto dos Anjos tentado versar em um livro de poemas todo o monismo e o evolucionismo de Haeckel e de Spencer. Retirado o que a afirmativa tem de exagero, nós vamos encontrar, efetivamente, na obra de Augusto sinais visíveis e evidente dessa influência, pelo uso de termos e expressões próprios de algumas correntes filosóficas veiculadas no âmbito da Escola, pela referência nominal a alguns pensadores alemães nela acatados, pela adesão irrefutável à poesia filosófico-científica, capitaneada por Martins Júnior.
Termos como monera, substância, mônada, transformismo, homogeneidade, nous, pneuma, noumenalidade, expressões como teleológica matéria, energia intracósmica, energia monística, metafísico mistério, vida fenomênica, energia intratômica, motor teleológico, matéria dissolvida, referências expressas ou simples alusões a Haeckel, Spencer, Hoffimann, tudo isso, além das circunstâncias outras repassadas ao longo destas minhas palavras, reafirmam o óbvio, ou seja, a influência recebida por Augusto da Escola do Recife.
Estão no "Monólogo das Sombras" estes versos:
"Sou uma sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Polipo de recônditas reentrâncias,
Larva do caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!
Os dois tercetos a seguir são de "Agonia de um Filósofo", de 1912:
No hierático areópago heterogêneo
Das idéias, percorro, como um gênio,
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!
O célebre poema "Debaixo do Tamarindo", de 1909,
contém esses dois tercetos:
Quando pararem todos os relógios
De minha vida e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiário que eu morri,
Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade,
A minha sombra há de ficar aqui!
Está em "As cismas do destino", de 1908
Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
É a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo.
Vamos encontrar em "Noite de um visionário", de 1910, estes versos:
Depois de dezesseis anos de estudos
Generalizações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
Na compreensão monística de tudo.
.............................
O motor teleológico da Vida
Parara! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor de matéria dissolvida.
Está em "Os doentes", de 1912:
Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer nem Haeckel compreenderam...
Em "Psicologia de um vencido", de 1909, Augusto proclama-se, materialisticamente,
"...filho do carbono e do amoníaco,"
e em um de seus sonetos, de 1911, considera o filho morto um "Agregado
infeliz de sangue e cal".
No "Último Credo", de 1908, o poeta diz:
Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!
É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um,
Que matou Cristo e que matou Tibério.
Creio como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolue...
Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!
Diversas outras passagens poderiam ser indicadas, se não fosse a premência do tempo com que eu preparei estas considerações, o que, afinal, resultou em proveito da paciência dos que aqui se encontram.
NOTAS
(1) Poetas e prosadores do Brasil, Rio de Janeiro, Conquista, 1968, págs. 70/78.
(2) Toda a poesia de Augusto dos Anjos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, págs.14/18.
(3) Introdução a As Flores do mal, São Paulo, Abril Cultural, 1984.
(4) História da Faculdade de Direito do Recife, recife, UFPe, Ed. Universitária, 1980, I, pág. 27.
(5) id., pág. 22.
(6) História da Faculdade de Direito do Recife, INL, Brasília, 1977, pág. 350.
(7) Clóvis Beviláqua, ob. cit., pág. 350.
(8) Pinto Ferreira, ob. cit. Tomo 2, pág. 83.
(9) Pinto Ferreira, ob. cit. Tomo 2, pág. 46.
(10) Prefácio de A poesia científica, Imp. Industrial, Recife, 1914, 2a. Edição.
(11) Ob. cit., Tomo I, pág. 24.
(12) Apud Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, Mestre Jou, S. Paulo, 1970, verbete "Evolucionismo".
(13) id., ib.
(14) Apud R. Magalhães Jr., Poesia e vida de Augusto dos Anjos, Civ. Brasileira, Rio de Janeiro, 1977, págs. 110/111.
(15) Notas Bibliográficas apensas ao EU, Liv. São José, Rio de Janeiro, 1965, 30a. Ed.
(16) id. Ib.
(17) R. Magalhães Jr., ob. cit., pág. 109.
(18) Zenir Campos Reis, Augusto dos Anjos: Poesia e Prosa, São Paulo, Editora Ática, 1977, pág. 25.
(19) id. ib.
(*) Palestra proferida no Conselho Estadual de Cultura do Estado da Paraíba, por ocasião das comemorações do Centenário de nascimento de Augusto dos Anjos, em 1984.
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